Por Valério Luiz

"E quest`é il fiore del partigiano, morto per la libertá! (e esta é a flor do resistente, morto pela liberdade!)"

Talvez seja este o próprio paradoxo do justiceiro: é preciso poder pra fazer Justiça, mas o poder só toma a si mesmo por Senhor

Quem sabe o Destino não seja bem um livro com nossas vidas já escritas desde sempre, mas um redemoinho a nos puxar para o centro de nós mesmos: só se pode tornar-se quem se é
[caption id="attachment_103108" align="aligncenter" width="620"] “Death Note”, série de mangá escrita por Tsugumi Ohba e ilustrada por Takeshi Obata[/caption]
Segundo as reflexões místico-dionisíacas de Nietzsche em seu livro de estreia, A Origem da Tragédia, Édipo talvez tenha atraído a desgraça sobre si por ser sábio demais. A Esfinge que aterrorizava Tebas com enigmas era a personificação do mistério desta vida humana na Terra e quando o filho de Laio matou não só seu próprio pai mas também a charada nunca antes resolvida, vencendo o monstro divino, foi como se tivesse alcançado uma sabedoria e uma condição acima das naturais para um homem, afastando-se, assim, de sua humanidade individual, contingente, e rompendo o equilíbrio dos seres na Natureza. O trágico seria a resposta desta para aniquilar tal concentração de poder e restabelecer o fluxo original de forças entre humanos e deuses.
Prometeu também rompeu esse equilíbrio ao roubar o fogo dos deuses e dá-lo aos homens, sendo então castigado por Zeus, que temia a ascensão dos mortais. Na tradição cristã, o que era o “fruto proibido”no Jardim do Éden? O sexo? Ora, não se trata de uma conclusão compatível com a ordem “sede fecundos e multiplicai-vos”(Gênesis, 9, 7). Uma análise mais atenta de Gênesis revela que o fruto pertencia à “árvore do conhecimento”. A serpente, ao tentar Eva, asseverou: “Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão, e serei como deuses, conhecedores do bem e do mal”. Ouvindo isso, a mulher notou que o fruto era “bom para comer, agradável aos olhos”e, principalmente, apropriado para “abrir a inteligência”, “dar entendimento”.
Sejam os gregos pré-socráticos na Tragédia ou os cristãos com o Pecado Original e a Queda, diferentes culturas curiosamente desenvolveram um mesmo sentimento, o de que existe algo de abissal, demoníaco e perigoso no poder, no conhecimento e, em decorrência dos dois, no ato de julgar o que é o bem e o que é o mal, como se tais fenômenos não pertencessem naturalmente a nós e fossem centelhas usurpadas dos deuses, similarmente a Light usando o caderno Shinigami. O garoto, após escrever as primeiras sentenças, entrou em conflito interno e questionou se tinha o direito de impor julgamento aos outros, tirando-lhes a vida. Apesar da tentação de continuar, alguma coisa já dizia a Yagami que aquele poder não seria suportável por um ser humano.
Sintomático é o plano de se tornar o “Deus do novo mundo”, expressão através da qual o estudante deixa transparecer a sua consciência do caráter sobre-humano e divino inerente à empreitada com o Death Note. Para julgar as pessoas, não poderia continuar sendo um simples homem. Afinal, com que autoridade qualquer um de nós decidiria, sozinho, sobre a vida e a morte dos nossos semelhantes? Era necessário transformar-se, ultrapassar a humanidade individualmente herdada, triunfar onde falharam Édipo, Adão e Eva. Esse é o sentido de Yagami Raito deixar-se chamar massivamente pelo nome Kira (variante japonesa para a palavra inglesa killer), referência não à sua identidade humana, mas à divina que quer alcançar como um fruto no alto da árvore.
Não por acaso, o mangá e o anime são recheados de simbologias com maçãs, a comida preferida do Shinigami Ryuk, dado que decidir sobre vida e morte fazia parte de sua natureza transcendental. Light, ao contrário, se quisesse ficar com as “mãos vermelhas” (expressão contida no episódio 10 do anime, “Dúvida”; e no 3º volume do mangá), tanto de sangue quanto do fruto proibido, precisaria terminar a travessia até a inumana persona Kira. Seria possível? Aqui nos lembramos do Übermensch (além-do-homem) nietzschiano e, especialmente, do empreendimento criminoso de Raskólnikov, um pobre estudante russo que, inspirado em Napoleão, concebeu esta divisão fundamental para a raça humana: abaixo, a massa de pessoas ordinárias; acima, as extraordinárias.
A chave psicológica da obra Crime e Castigo é o arrependimento progressivo do pretensioso Ródia aos poucos sufocando-o, mas não no campo consciente, e sim em seu coração. Mesmo após se entregar, cumprindo pena na Sibéria, o assassino jamais se retrata quanto à teoria moral “napoleônica”. Sem saber por quê, ele só não suportou conviver com o que fez. É de se supor que Raskólnikov percebeu-se como um homem ordinário, no fim das contas. Nesse ponto, Dostoiévski acompanha as tradições trágica e cristã, subentendendo que, independentemente da sofisticação dos nossos raciocínios ou ao quão alto aspiremos, a ação humana possui limites naturais e quem os ultrapassa atrai para si uma reação contrária, tanto interna quanto externa, de reequilíbrio.
Existindo forças divinas, é fácil imaginá-las reagindo contra os que ameacem a ordem geral de Deus para os seres. Mas e se a configuração das coisas no Universo for aleatória, alheia a uma Vontade Superior? Ainda assim, trata-se do resultado de bilhões de anos. Afinal, o mundo presente é a história inteira do mundo, e talvez os seres estejam dispostos no balanço possível dadas as contingências deste desenvolvimento espontâneo. Por que um jabuti é um jabuti? Por que tem casco, patas e não outro formato? Alguém o quis assim? Não sabemos. Sabemos, contudo, que, se estiver em cima de uma árvore, vai cair. E não porque um Deus quer que caia, mas simplesmente porque, sendo o que é, não reúne as condições para permanecer naquela posição.
Do mesmo modo, sendo Light humano, como reuniria as condições para perpetuar-se na posição de um deus? Diferentemente do estudante russo, o japonês torna-se empedernido e, para conseguir calar a voz interior, justifica os assassinatos com o “bem maior” de um idealizado mundo sem crime, o que não evita, entretanto, o rápido aparecimento desta força reativa externa, igualmente poderosa, a lhe antagonizar: L, o maior detetive do planeta, mente de habilidades dedutivas e indutivas tão agudas que beiram o sobrenatural. O mau agouro de Ryuk aqui começa a tomar forma. Quem sabe o Destino não seja bem um livro com nossas vidas já escritas desde sempre, mas um redemoinho a nos puxar para o centro de nós mesmos: só se pode tornar-se quem se é.
(continua)

Desde os pré-socráticos a tradição trágica tem esse pressentimento, antevisão do mau agouro lançado por Ryuk a Light: “As coisas não costumam acabar bem para os humanos que usam o Death Note”
[caption id="attachment_101381" align="alignleft" width="620"] "Death Note", série de mangá escrita por Tsugumi Ohba e ilustrada por Takeshi Obata[/caption]
“The human whose name is written in this note shall die (o humano cujo nome for escrito neste caderno morrerá)”.
Esta é a primeira instrução constante no Death Note, um caderno oriundo do mundo dos Shinigami, deuses da morte. O que você faria se páginas como estas caíssem em seu poder? Escreveria o nome de alguém? Tal foi o dilema apresentado a Light Yagami (ou Yagami Raito), um jovem prodígio japonês que por acaso encontrou o “caderno da morte”. Light decidiu usar a arma sobrenatural para criar um “novo mundo” livre de maldade e injustiça, um mundo onde existiriam apenas pessoas “boas e gentis”. Com esse ideal, logo nos primeiros dias o estudante já havia proferido folhas e folhas de penas capitais contra acusados de crimes repercutidos nos jornais em Kanto.
Não que Light fosse escolhido ou predestinado. Um Shinigami chamado Ryuk (ou Ryuku), dono original do caderno, o deixara cair na Terra por pura diversão, simplesmente porque estava achando o mundo dos deuses sombrios meio parado, sem sentido. Por mais que matasse escrevendo nomes no Death Note, uma coisa Ryuk não conseguia matar: seu tédio. Yagami, por sua vez, o mais brilhante aluno do Japão, primeiro lugar nos exames admissionais para a prestigiosa Universidade de To-Oh, também estava entediado, sem desafios. Aqui ambos parecem cientes da shakespeariana gratuidade por trás de toda ação, seja humana ou divina, como se parafraseassem as famosas falas de Macbeth: “a vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, significando nada”.
O nada, o vazio. É dele que tudo surge, foi por senti-lo que Ryuk resolveu pregar sua peça e Light arriscar-se em um Juízo Final particular. Quando o jovem perguntou quais seriam as consequências pelo uso do Death Note, se lhe custaria a alma ou algo similar, o Shinigami desentendeu: “O que é alma? Mais alguma invenção de vocês humanos?”. Uma segunda instrução do caderno era: “All humans will, without exception, eventually die. After they die, the place they go is MU –nothingness (Todos os humanos vão, sem exceção, em algum momento morrer. Depois de morrerem, o lugar para onde vão é MU – o nada)”. O deus da morte indicara, assim, que não existia alma a ser perdida ou salva, tampouco Céu ou Inferno, e portanto nenhum julgamento divino sobre as ações terrenas.
Por que havia então o mundo Shinigami, de onde escreviam nomes humanos em seus Death Notes? Pela mesma razão justificadora do nosso mundo: nenhuma. Deuses carrascos existiam porque existiam e ao seu alvedrio escreviam as sentenças, aleatoriamente. E de fato, a morte é justa, respeita algum padrão de merecimento? Canalhas e criminosos podem prosperar por 100 anos enquanto nada impede o adoecimento e o falecer de uma criança. O universo de Death Note não tem ordem moral preestabelecida, imanente, como o nosso parece não ter. Sob esse ponto de vista, Ryuk e os outros Shinigamis são deuses semelhantes aos dos gregos, que não encaravam a vida humana como algo a se julgar e redimir, mas não raro como um espetáculo com o qual brincavam e se entretinham.
O Deus cristão é o próprio Logos: “No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus (...)/Todas as coisas foram feitas por ele (...)/Nele estava a vida, e a vida era a luz dos homens./E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreendem” (João 1, 1-5). A expressão grega logos se referia originariamente à palavra escrita ou falada, ao “verbo”, e filosoficamente foi ganhando a acepção de “razão”, de princípio organizador. Teologicamente, por fim, Logos passou a significar a Ordem do Cosmos. Quando o apóstolo João diz que “no princípio era o Verbo (ou o Logos)”, o Deus dos Evangelhos é revelado tanto como a fonte quanto como o princípio organizador de tudo o que existe e por isso não submetido a nenhuma conjuntura além de si mesmo.
Já na Teogonia grega, escrita por Hesíodo, os deuses não criaram o Universo, mas surgiram a partir de suas estruturas. Mesmo ao mais antigo deus, Caos, é atribuído um “nascimento” e tal divindade, como o nome sugere, não é um princípio de criação racional. Por consequência, na mitologia grega tanto os homens quanto os deuses estão submetidos a conjunturas naturais e cosmológicas que não controlam, ou seja, estão presos ao Destino. Esse também parece ser o caso do macabro deus Ryuk, pois embora seja o proprietário natural do Death Note, não pode criar regras de funcionamento para o caderno, nem modificá-las. E como Shinigami, lhe é vedado estender o tempo vital de seres humanos, sob pena de desintegrar-se em areia, desaparecendo para sempre.
Essa própria constituição arenosa dos Shinigami aponta que nasceram a partir dos elementos do seu mundo, um escuro deserto. A imemorial consciência desse fatalismo talvez seja o que inspirou Ryuk em sua única advertência a Light: “Você sentirá o medo e a dor que só os humanos portadores do Death Note conhecem”. O ímpeto do jovem prodígio Yagami não se abalou com o vaticínio. Ao contrário, cresceu na determinação de criar um “novo mundo”. Se Ivan Karamázov concluiu que, sem Deus, “tudo é permitido”; Light Yagami foi mais longe ao imaginar que, sendo Deus, tudo é permitido. Afinal, se não existia alma, Céu, Inferno, nem punição sobrenatural alguma, quem poderia impedi-lo de dizer o que é o “bem” e o que é o “mal”, passando seus julgamentos com o poder do Death Note?
A advertência de Ryuk escondia, no entanto, profundidade. A falta de ordem moral e racional intencionalmente preestabelecida na disposição das coisas do mundo não significa que nestas inexista uma natureza e um funcionamento assentados, que podem tragar quem desafie seu curso. Light preocupou-se apenas se um Deus o julgaria pelos pecados, mas o Shinigami sabia que mesmo um Cosmos sem esse Deus é maior do que os indivíduos e os destrói quando atentam contra o equilíbrio de seus papéis no Destino, para voltarmos à teogonia e à mitologia gregas. Desde os pré-socráticos a tradição trágica tem esse pressentimento, antevisão do mau agouro lançado por Ryuk a Light: “As coisas não costumam acabar bem para os humanos que usam o Death Note”.
(continua)

A sofisticação dos programas de TV é um fenômeno relativamente novo; série tomando qualidade de cinema. Breaking Bad é a primeira grande peça desse novo caminho da indústria do entretenimento
Já estudei muito tragédia grega. Dois livros são essenciais neste tema: "A Origem da Tragédia", do Nietzsche, onde há uma análise sob o ponto de vista filosófico e religioso; e "Poética", do Aristóteles, onde se analisa os caracteres técnicos da construção do drama, principalmente na obra de Sófocles.
Os poetas trágicos não criavam argumento, que é o mote sobre o qual se desenvolve a ação. Faziam seus textos sempre a partir dos mesmos mitos tradicionais, e as competições eram sobre quem desenvolvia com mais habilidade as variações de ação sobre os argumentos já conhecidos do público.
Criar argumento é perigoso, pois há grande chance de ser artificial e, portanto, irrelevante. As boas narrativas em geral trabalham motes clássicos, como o amor, o ciúme, dilemas morais, as guerras, a vingança. Pra pegar um exemplo pop, Tarantino fez dois grandes filmes a partir de argumentos muito básicos: Kill Bill (vingança) e Bastardos Inglórios (II Guerra).
Breaking Bad conseguiu a façanha de um argumento modernoso e inovador na aparência, além de curioso (um professor de química que, ao se descobrir com câncer de pulmão, começa a fabricar metanfetamina), e, no fundo, clássico: um homem encarando a própria mortalidade.
Aqui entra também um dilema "dostoievskiano" sobre se, perante a mortalidade e a perspectiva de desaparecimento, vale a pena jogar pelas regras. Essa pergunta atormenta Walter White e os consequentes dramas de consciência, justificações e tentativas de redenção são muito bem trabalhados.
Quanto à estrutura narrativa, Aristóteles dizia que dois recursos são essenciais pra provocar a "catarse" no público: o reconhecimento e um desenlace inesperado. O "reconhecimento" se dá quando um personagem conhecido da trama revela sua verdadeira identidade, para a surpresa de todos. A identidade verdadeira deve ser relevante.
Um exemplo famoso na cultura pop é o "Luke, i`m your father", do Star Wars. Em Breaking Bad há dois reconhecimentos. O primeiro no episódio "Mandala", quando Walt senta na mesinha dos Pollos Hermanos com Gus Fring, que, até então fingindo não conhecê-lo e ser um mero dono de fast food, de repente muda a expressão e solta o "I don't think we`re alike at all, Mr. White. Your partner was late. And he was high".
O segundo é quando Hank acha o "Leaves of Grass" no banheiro de Walt e percebe que ele é, na verdade, Heinsenberg. Neste ponto há também o que Aristóteles chama de "desenlace", o fato que desata o nó da trama, no caso, como Heinsenberg seria descoberto e pego pela DEA.
E Gilligan acha uma solução perfeita, verossímil, a partir de um elemento casual presente na trama, sem recorrer ao que chamamos de "Deus ex machina", uma solução mirabolante vinda de fora dos fatos já fornecidos. Solução "ex machina" seria, por exemplo, se Hank sonhasse que Walt era Heisenberg e isso desencadeasse sua investigação e perseguição.
Enfim, isso é o básico, eu poderia escrever um livro sobre cada ponto do Breaking Bad. Não existe nenhuma série à altura ainda, apesar de eu nunca ter visto Família Soprano, que dizem ser do mesmo patamar. A sofisticação dos programas de TV é um fenômeno relativamente novo; série tomando qualidade de cinema. E, pra mim, Breaking Bad é a primeira grande peça desse novo caminho da indústria do entretenimento.