Brasil, esse caos ladrando no quintal

07 outubro 2018 às 00h00

COMPARTILHAR
Contos de “Duelos”, da mineira Eltânia André, trazem personagens assaltados por conflitos e mazelas, compondo um retrato visceral e alarmante de um País que vai às urnas neste domingo

Sérgio Tavares**
Especial para o Jornal Opção
É desolador constar que os temas explorados pela mineira Eltânia André, em “Duelos”, não se restringem ao âmbito da ficção. Basta o leitor saltar do caderno de cultura para as outras seções do jornal, que ali os motes dos contos aparecem de maneira rotineira e incontrolável: crimes de ódio, violência contra a mulher, ascensão do fascismo, discriminação entre classes, desemprego, injustiça, corrupção, tortura, balas perdidas, crianças mortas.
A autora retrata o Brasil que vivemos, este “caos ladrando no quintal”, de modo a efetuar um raio-X das mazelas e dos conflitos que tomaram as rédeas da nossa sociedade. São textos marcados por tamanha verossimilhança, que classificá-los de ficcionais soa como escapismo ou mera licença poética.
O livro abre com o exasperante “Uma das mil e uma noites”. A caminho da casa de um amigo, após ter se apresentado num show de transformismo, um jovem é perseguido e espancado por um grupo de agressores homofóbicos. A narrativa mescla sequências de brutalidade – “Um dos pontapés atingiu o crânio. Outro quebrou uma costela. O chute na cara. Bicha.” – a um fluxo de consciência convoluto, de quem tenta entender o que está acontecendo ao mesmo tempo que pede socorro. Colocado na posição inescapável de testemunha, o leitor se vê de mãos atadas, sem outra opção senão presenciar, de maneira ultrarrealista, a face mais horrenda da (des)humanidade.
“O trabalho liberta”, que vem em seguida, também trata de covardia, mas numa chave mais introspectiva. Um operário, que cativou a ilusão de que a aposentadoria lhe compensaria com um tipo de paz e segurança, pega-se obrigado a continuar trabalhando para sustentar a família. O caso é que o chefe bem mais novo, ao saber da concessão do benefício, decide demiti-lo, desencadeando uma combustão de incertezas e revolta, que irá resultar num ato incontornável.
Notadamente, o texto de Eltânia tem um expressivo viés crítico, contudo a autora demonstra total domínio narrativo para transmitir essa voz por meio da prosa ficcional, nunca deixando-a soar como uma opinião ou um grito partidário. Mesmo quando incorpora à sua escritura dados científicos, a exemplo de “Matança de passarinhos”, sobre vítimas infantis da guerra nas favelas cariocas, seu veículo de protesto nunca deixa de ser a ficção.
Tal recurso se consolida em “Os fantasmas da rua Azevedo”, que narra a ruína de uma família assombrada pelos fantasmas do nazismo, a partir de uma base documental. A matéria histórica serve de pano de fundo para a investigação anímica dos personagens, reféns eternos dos horrores praticados na Segunda Guerra. E esse é o aspecto central dos contos de “Duelos”: decifrar o outro através de seus terrores particulares, um exercício de alteridade executado na mirada do embate consigo e com o mundo.
Cidades sitiadas e dramas femininos

Autora: Eltânia André
Editora: Patuá
Valor: R$ 38,00
Eltânia é uma habilidosa construtora de personagens, capaz de, em poucas linhas, definir personalidade e dimensão psicológica. Na narrativa-carrossel “Sono profundo”, o foco corrediço sobre os funcionários de uma empresa captura seus medos e angústias, as intrigas e o desafetos durante a maratona de sobreviver em tempos de crise, endividados, apavorados com a possibilidade de perder o emprego, num clima opressivo de pesadelo.
É o lema do “Salve-se quem puder”, o apito da sirene nas áreas de risco, onde muitos morrem soterrados pela lama ou perdem tudo, a exemplo dos personagens de “Águas de dezembro”. “Barreira liberada” e “Entre o cais e o comboio” compõem painéis das metrópoles enquanto mosaicos da criminalidade e da desigualdade social, nas quais malabaristas de sinal dividem espaço com ambulantes, engravatados com pedintes, uma fauna urbana em fluxo e contrafluxo que para quando o poder paralelo manda parar. “A cidade e suas vibrações reverberando em nós o universo de sustos e sombras e seus contrários”.
A forma de narrar também tem seus contrários. Próximo ao fim, os textos tomam liberdades formais e se configuram em roteiro de teatro, notícia de jornal, versos. A diversidade estética, no entanto, não afeta o teor literário da autora, que busca uma certa voltagem poética, densidade e arrojo. Por mais tensos e desesperançosos que possam ser os temas, a composição textual nunca é plasticamente tempestuosa, cortante. Há uma sutileza na maneira que Eltânia escreve, ainda que, sim, vigorosa.
Esse estilo aparece com mais intensidade nos contos protagonizados por mulheres. Os dramas femininos surgem em histórias duras e comoventes, marcadas por fraturas, por aflições, por abusos de diversos níveis. Há desde o relato confessional da ruptura da maternidade a um ciclo de violência que se converte em legado. “Mãe, por que o tio Tuíca fez aquilo? Não sei, filha, ele é nervoso, e pensa que as mulheres têm o couro duro”, uma personagem tenta explicar o inexplicável.
“Duelos” é alarmante, neste sentido; por não inventar nada que não esteja ao nosso alcance, por apenas replicar a realidade no território da ficção. Neste domingo em que o país vai às urnas, o livro de Eltânia André denuncia, ao mesmo tempo que se mostra um produto da sociedade de hoje. O futuro pode ser escrito de outra forma. Que o leitor reflita e torne o conteúdo destes contos em registros de um passado imemorável.
**Sérgio Tavares é escritor e crítico literário