“Bacurau” e o cinema que não se vê

22 setembro 2019 às 00h00

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Filme vencedor do Prêmio do Júri do Festival de Cannes joga com a capacidade interpretativa do espectador
Ricardo Silva
Especial para o Jornal Opção
Toda obra de arte negocia com seu espectador, com aquele que a consome. É um jogo no qual não existe a possibilidade de recusa. Ao consumir um produto da arte — ainda que muitos encarem a ideia de “produto” com desdém, pelo peso industrial da palavra —, se estabelece ali uma trama de interpretações na qual o repertório do que vê se imiscui com as referências daquele que expõe a sua produção.
“Bacurau”, última coqueluche do cinema nacional a explodir além das nossas fronteiras, é um exercício que eleva o jogo interpretativo numa poderosa malha onde se misturam certezas, preconceitos, estereótipos e imprecisões, que colocam o espectador num balanço contínuo, que o deixa mareado depois da sessão.
Os diretores do longa, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, conseguiram dar cabo a um projeto de dimensões atemporais. Planejado desde 2009, Bacurau dialoga perfeitamente com os acontecimentos contemporâneos da política brasileira, mas vai além disso. A saga de uma pequena cidade nordestina fadada a sumir do mapa e servir como campo de caçada humana, revela um enredo que facilmente encontra ressonâncias reflexivas em qualquer público, de qualquer lugar do mundo.

Não cabe ao crítico adiantar trechos do roteiro, destrinchar elementos da trama. “Bacurau” se constitui como um monumento de referências óbvias, que vão de John Carpenter com pitadas de Glauber Rocha, até Sergio Leone e os seus close-ups inesquecíveis — a abertura do filme tem seus resquícios de “Star Wars” com suas transições e a abertura dos créditos com o fundo estrelado. Contudo, a verdadeira potência do longa de Mendonça Filho e Dornelles está no que não diz.
O espectador menos deslumbrado ou com expectativas mais realistas sobre o longa nacional perceberá que toda a costura do enredo de KMF e Dornelles é propositalmente frouxa. Os arcos narrativos começam e não terminam, se iniciam em nenhum lugar e vão para lugar nenhum. Isso, afirmam os detratores do filme, é indicativo da falta de cuidado na coesão do roteiro. Seria sintomático da falta de profundidade da película. Bobagem.
O filme de KMF e Dornelles transcende ao panfleto político — ter se encaixado no caos brasileiro atual é algo que diz muito mais sobre nossa condição política do que a capacidade premonitória do filme — e se impõe como uma série de escolhas estéticas muito bem, ao que me parece, pensadas para desnortear.
O western, que faz as vezes de terror e filme-de-cerco, produzido pelos cineastas pernambucanos é um jogo que brinca com as certezas do espectador. Não existe alienígena, nem disco voador, nem político bom de lábia, tudo isso não se mostra em cena. Quem fica com essa segurança é o espectador. “Bacurau” procura com a própria trama explicar-se no não-dito. Está tudo lá, mesmo que lá nem tudo esteja.
Ainda que brinque com o conceito de clichê, “Bacurau” não se fecha ou se prende nele — Domingas é a lésbica fora da imagem clássica de uma mulher gay, a trans da entrada da cidade tem outra função narrativa que, olha só que coisa, não é ser trans, e até mesmo Lunga, o justiceiro, está mais para uma estética Mad Max do que para Lampião.
“Bacurau” é um filme autoconsciente dos gestos que imprime na tela. Não existe aleatoriedade no jogo baixo dos caçadores e do fato de eles serem norte-americanos, menos aleatória ainda é toda a história se passar num terra abundante mas que carece e perece na fome e na sede. Não creio que a comunidade de Bacurau seja uma reencarnação cinematográfica de Canudos e a sua mui brava resistência — mas não exime a possibilidade dessa leitura, que tem ocupado muitos críticos de cinema mundo afora. “Bacurau” é a própria força nordestina e a sua capacidade de reinventar-se, característica tão forte nestas sofridas terras tupiniquins.
O filme de KMF e Dornelles não é um filme-protesto. É um filme de exercício estético que, por sorte, encaixou-se no necessário protesto dos nossos tempos. É um filme-documento que agora insere-se nas prestigiosas linhas da história do cinema nacional, deixando registrado que o melhor da sétima arte está na sua capacidade de mostrar o que não se vê na grande tela. Isso é um feito que realoca o cinema brasileiro, mais uma vez, naquilo que facilmente se pode considerar a vanguarda artística do mundo. Pontos para Pernambuco e seu cinema explosão, pontos para o Brasil e a sua loucura infinita.
Ricardo Silva, crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.