Recep Erdogan: a Turquia tem um sultão
29 novembro 2014 às 11h14
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Envolvido em casos de corrupção, presidente está colocando a discriminação contra as mulheres praticamente como uma política de Estado
“Não há como comparar homens a mulheres e muito menos colocá-los em pé de igualdade, simplesmente porque foram criados de formas diferentes. E ao fazê-lo estamos agindo contra a natureza… nossa religião definiu, há tempos, a posição da mulher na sociedade: apenas ser mãe. Muitas pessoas entendem isso; mas outras, não” Se eu dissesse que a declaração acima foi feita por um líder tribal, que segue as regras do Islã à risca, em um vilarejo perdido no Paquistão, no Afeganistão, até faria sentido. Mas a frase infeliz fez parte do discurso do presidente da Turquia, Recep Taype Erdogan, que participou de uma conferência em Istanbul, na semana passada, onde a discussão era justamente o status da mulher na sociedade turca. As centenas delas que foram até ali para ouvir o presidente louvar suas qualidades, saíram de lá ofendidas.
“O paraíso está de braços abertos para as mães. Se eu pudesse beijaria os pés da minha mãe porque eles exalam o aroma do paraíso”, continuou Erdogan, que na sequência criticou as feministas: “Os que não podem entender essa condição são as feministas de plantão. Não precisamos de igualdade entre os sexos, mas de igualdade entre as mulheres e igualdade entre os homens”, disse o presidente ao “criar” uma nova teoria social.
Há muita “igualdade” no discurso de Erdogan, que ainda pediu, ao final, com uma plateia enfurecida, que as mulheres tenham ao menos três filhos e que o aborto seja definido como um crime. Dois anos atrás, seu governo propôs que o aborto fosse legal somente nas quatro primeiras semanas de gravidez. Anteriormente a lei previa que o procedimento pudesse ser realizado em até dez semanas de gestação.
Erdogan tem apreço especial pelas mulheres que são mães. Em 2008, chegou a declarar que a comemoração do Dia das Mães apenas uma vez por ano era um insulto. Mas a realidade está bem distante do discurso populista do líder turco. Três anos atrás, durante o Fórum Econômico Mundial, a Turquia passou um aperto. Dos 136 países que participaram do encontro, apenas 16 estavam em situação pior que os turcos quando o assunto foi o direito das mulheres.
De acordo com dados oficiais, só nesse ano 800 mulheres turcas foram assassinadas, e 28 mil sofreram algum tipo de violência doméstica. Há três meses, o primeiro-ministro Bulent Arinc surpreendeu as mulheres da Turquia com uma nova determinação: “As mulheres não podem rir em público, devemos aprimorar os valores morais e uma mulher ao rir em público está automaticamente se expondo”, afirmou o premiê ao vivo pela TV. Em resposta, sua conta na rede social Twiter foi invadida por fotos de mulheres dando gargalhadas.
O termo “valores morais” vem ganhando espaço nas discussões da sociedade turca, apesar de que até agora ninguém tenha conseguido definir muito bem o que é isso. Recentemente o goverrno decidiu que casamentos de turcos com estrangeiros só pode acontecer se o casal se submeter aos “critérios morais” da Turquia. Muita gente por lá teme que em breve estarão pedindo aos estrangeiros atestados do país de origem que garantem que a pessoa não cometeu nenhum crime moral. As regras poderão afetar até mesmo os que já estão casados oficialmente, ao impedi-los de se beijarem em público.
Jornalistas que criticam o governo viraram o alvo principal de Erdogan e sua turma. Os que ainda fazem isso, atuam anonimamente. Dezenas já perderam seus empregos ou a própria liberdade ao escreveram artigos que o líder turco não gostou. Mas os colegas não são as únicas vítimas do presidente: juízes, tribunais e até mesmo a própria lei estão na mira de Erdogan. Acusado de corrupção, ele sabe que tem contas a acertar em diversos tribunais. O presidente e alguns ministros são suspeitos em vários casos ainda não esclarecidos de corrupção ativa, que envolvem até mesmo seu filho. Recentemente passou a desrespeitar decisões julgadas pelo Conselho de Estado e chegou a dizer que “a lei do país não é o que importa, mas sim a forma e a conduta dos que a implementam é mais importante”. Os turcos temem que, como presidente, Erdogan esteja planejando se comportar como um sultão, acima da lei. E ele ainda conta com um aliado especial: o premiê Ahmet Davutuglo, que acima de tudo obedece às ordens do líder turco. Desde a época em que era primeiro-ministro nunca escondeu a admiração por Kemal Ataturk, o fundador da Turquia moderna. Erdogan chegou a utilizar a aparência fisíca parecida com Kemal e passou a se comparar com ele. Ataturk, que quer dizer “pai dos turcos”, devolveu ao país seu maior patrimônio, ao conectar a Turquia com a história dos hititas e dos assírios. Recep Erdogan quer fazer o mesmo, mas dessa vez pretende criar uma conexão ainda maior da Turquia com o islamismo. No mês passado ele afirmou que foram os muçulmanos os verdadeiros descobridores da América em 1178, algo em torno de 300 anos antes de Colombo. A prova? “Colombo menciona a existência de uma mesquita na costa cubana”, disse o presidente da Turquia num dos seus “momentos”. Um jornalista turco pesquisou e logo publicou uma reportagem em que afirmava que Colombo na verdade, avistou um morro que lembrava uma mesquita. Mas a “descoberta” das Américas pelos muçulmanos já tinha virado fato na Turquia. A reportagem chegou tarde demais.