Declaração infeliz do primeiro-ministro de Israel trouxe à tona um personagem que estava perdido e que de certa forma influenciou o Terceiro Reich

Mufti Haj Amin al Husseini e Adolf Hitler: sócios no terror nazista
Mufti Haj Amin al Husseini e Adolf Hitler: sócios no terror nazista

A História e o passado são territórios comuns. Tão intrínsecos que são, as vezes podem causar confusão. O revisionismo do Holo­caus­to, e as tentativas de tirar dos nazistas e da Alemanha o peso da culpa pela morte de milhões de pessoas, não são novidades entre historiadores e estudiosos. Mas, há duas semanas, num dos discursos mais polêmicos desde que asssumiu o cargo, o primeiro-ministro de Israel, Benyamin Netanyahu, surpreendeu o mundo inteiro, ao dizer que o Holocausto não foi uma ideia de Adolf Hitler e seu establishment, e sim do líder religioso palestino, o grão Mufti de Jerusalém, Haj Amin al Husseini.

Em tempo: Um mufti é um acadêmico islâmico a quem é reconhecida a capacidade de interpretar a lei islâmica (Charia), e a capacidade de emitir fataawa (“fatwas”), ou seja, um pronunciamento legal.

O premiê discursava para ativistas que participavam do Congresso Mundial dos Sionistas, em Jeru­salém, quando apresentou ao povo judeu um grande problema ou dilema: como interpretar o Holocausto e celebrar a memória dos que pereceram a partir de agora?

Até então, do cinema aos livros, tudo o que se conhecia era a terrível máquina de extermínio nazista e os testemunhos chocantes dos que sobreviveram. Pensava-se que era Hitler o autor da “Solução Final”, e que os alemães não só sabiam como deixaram que acontecesse. Mas estávamos errados. De acordo com Netanyahu, Hitler queria apenas expulsar os judeus da Europa, mas ao se encontrar com o Mufti de Jerusalém em 1941, mudou de ideia ao ouvir do religioso que para acabar com os judeus deveria queimá-los. O premiê de Israel ainda foi além, e disse que Hitler foi apenas o chefe das operações, e que o cérebro era, sim, o Mufti. “E por ainda ser uma figura admirada pelos palestinos como o patriarca da nação, e tendo Mahmoud Abbas, o presidente da Autoridade Palestina, como seu sucessor, então, todos os palestinos são culpados pela morte de seis milhões de judeus, assim como todos os outros problemas enfrentados por Israel desde a sua criação em 1948.”

O calhamaço de absurdos ditos naquele dia, não parou por aí. Netanyahu ainda afirmou que a mais recente onda de terror que os israelenses enfrentam é o resultado do incitamento que começou lá atrás, com o Mufti, e que continua até hoje. Portanto para o primeiro-ministro de Israel tudo não passa de “incitação”. Afinal, todos nós sabemos que a situação dos palestinos é “excelente” e que gozam de um “alto padrão de vida”. Todos são felizes. Não há opressão, abuso, apropriação indevida de terras, checagem noturnas em casas de civis, nem postos de controle, desemprego, pobreza e um estresse constante. Muito menos esgoto a céu aberto, colonos que queimam até a morte famílias inocentes, casas, mesquitas e oliveiras. Realmente, foi apenas a “incitação” septuagenária que os levou a mais recente onda de ataques. Ne­tanyahu, filho de um professor de história, gosta de dizer que é importante reconhecer os fatos históricos, então, vamos a eles.

Muitos e muitos séculos atrás, os cristãos já praticavam o ódio aos judeus, bem antes dos muçulmanos. Os assassinatos, a humilhação, a tentativa de extermínio, a expulsão e a inquisição também foram realizadas por cristãos e não muçulmanos. Hitler formulou a ideia do extermínios dos judeus enquanto escrevia “Mein Kampf” em 1923, como parte de sua ideologia racista. O plano para a Solu­ção Final emergiu em 1941, e foi implementado, primeiramente, na União Soviética, assim que o país foi invadido, em junho de 1941.

Nos últimos anos é crescente o número de publicações literárias que ilustram como certos aspectos do nazismo e da história da Alemanha estão interconectados com governos de outras partes do mundo, inclusive o islâmico. Não há como negar, por exemplo, a profunda conexão entre a história da Alemanha e da Turquia. O genocídio que os turcos cometeram contra os armênios, cem anos atrás, abriu o caminho para os nazistas, que, menos de 30 anos depois, estariam fazendo o mesmo, só que em escala industrial. Os alemães e os nazistas em geral, estavam bem informados sobre o genocídio dos armênios em 1915, e certamente tiraram conclusões e se inspiraram no massacre. No começo do século passado a Alemanha era um dos maiores aliados dos otomanos, mas depois da Primeira Guerra Mundial, os alemães resolveram “lavar as mãos” afim de se eximir da culpa por associação ou responsabilidade indireta no genocídio. Em 1921, Taalat Pashar, o ex-grão-vizir e ministro do Interior foi assassinado por um armênio em Berlin. O crime levou a Alemanha ao debate e a conclusões perigosas como por exemplo encarar com naturalidade o genocídio, e que se realizado, poderia ser justificado como uma ferramenta política.

Se Hitler foi influenciado pelo Mufti como diz Netanyahu, ninguém, de fato, sabe. Mas nos do­cumentos e depoimentos que hoje fazem parte do acervo que con­ta a história do julgamento de Nu­remberg, ( uma série de tribunias militares, realizado pelos Aliados depois da Segunda Guerra Mun­dial, onde proeminentes mem­bros da liderança política, militar e econômica da Alemanha nazista foram julgados), o líder máximo da comunidade árabe-palestina daquela época, Haj Amin Al Husseini, o Mufti de Jerusalém, firmou um pacto com Adolf Hitler no dia 28 de novembro de 1941.

Os documentos do acordo entre Hitler e o Mufti acabaram se tornando preciosas evidências que foram usadas contra ele no julgamento de Nuremberg, apesar de sua ausência. No pacto, Hitler exterminaria os judeus da Europa, enquanto o Mufti receberia ajuda dos nazistas para acabar com os judeus da Palestina. O plano seria concluído com o estabelecimento de um Estado Palestino nos moldes da Alemanha “Judenrein” —sem judeus.

“O Mufti passou algum tempo no bunker de Hitler, e de lá ele recrutou uma unidade da SS Islâmica, e através das rádios nazistas ele fazia pronunciamentos em árabe, e incitava muçulmanos a se juntarem aos nazistas, e se preparar para um assassinato em massa de judeus na Palestina.” Essa é apenas uma citação dos autos dos protocolos de Nuremberg que foram publicados em 1946 pelo jornalista Maurice Pearlman no livro, “O Mufti de Jerusalém”.

Pearlman conta que uma testemunha, que trabalhou com a SS como subordinado de Eichmann, Hampsturmfuerer Dieter Wisli­ceny, presenciou o Mufti organizando o massacre sob a orientação do seu chefe Himmler, que exigiram do palestino o extermínio de todos os judeus da palestina.

“O Mufti foi um dos incentivadores do extermínio sistemático dos judeus, ele influenciou os alemães, e foi um colaborador permanente, além de conselheiro de Eichmann e Himmler na execução do plano….Na minha opinião, o Grande Mufti que desde 1941 esteve em Berlin, teve um papel decisivo sobre o governo alemão, e isso não pode ser descartado. Ele pediu, diversas vezes, em inúmeros encontros com Himmler, Rib­bentrop e até mesmo Hitler, o extermínio dos judeus da Europa. Ele considerava isso a solução para o problema palestino. O Mufti era um dos melhores amigos de Eichmann e o incitava para acelerar o extermínio”, disse Wisliceny ao testemunhar em Nuremberg.

Quase todos os historiadores preferem negar que, nos autos de Nuremberg estão, de fato, os relatos dessa testemunha-chave. Mas os discursos do Mufti, transmitidos pelas rádios nazistas e o recrutamento de muçulmanos para a formação de uma unidade islâmica da SS estão registrados. Ao que parece ele sabia da Solução Final, apoiava a ideia e trabalhou para levá-la ao mundo árabe. Mas ele não pode ser responsabilizado diretamente pelo Holocausto, e o fez erroneamente o primeiro-ministro de Israel. O fato histórico, por si só, é fascinante. Pouco se fala dessa relação de Hitler e o Mufti de Jerusalém. Além disso, a ideia de que o Holocausto foi uma atrocidade 100% nazista já está tão estabelecida, que qualquer perspectiva, com o foco diferente ou pouco mais amplo, provoca distúrbios e leva à confusão.

É claro que o equívoco não é só de Netanyahu. Muitos grupos anti-muçulmanos usam a história do Mufti, dos otomanos, do genocídio armênio, e publicam em seus blogs na Europa, nos Estados Unidos e também no Brasil, para difamar muçulmanos. Mas eles não são o primeiro-ministro e muito menos filho de um historiador famoso.

A verdade é que os nazistas não pre­cisavam do Mufti para trilhar o ca­minho que levou ao Holocausto. Os alemães estavam determinados, e novas pesquisas, em nenhum mo­mento, questionam isso, pelo menos no que diz respeito aos autores e a resposabilidade pelo Shoah (holocausto em hebraico) e outros cri­mes e atrocidades cometidas pelos nazistas.