Para entender a história do jornalista é preciso explicar o que aconteceu no Brasil nos governos de Vargas, Juscelino e Jango Goulart

Samuel Wainer (1912-1980) era tanto jornalista, entendia do metier, quanto empresário de comunicação, sabia lidar com o mercado e o governo federal. Certamente não criou o jornal “Última Hora” tão-somente para apoiar o presidente Getúlio Vargas, pois, homem inteligente, obviamente sabia que os governos e os homens do poder (e todos os outros) são provisórios. Já as instituições jornalísticas, se efetivamente sérias, são feitas para durar, para extrapolar o tempo em que foram fundadas.

“Última Hora” era um jornal moderno, revolucionário tanto na forma quanto no conteúdo. Samuel Wainer contratou alguns dos melhores jornalistas da praça e o jornal começou a deslanchar. Era inclusive mais bonito plasticamente do que os outros, com desenho criativo de Andrés Guevara, que o empresário importou.

Getúlio Vargas e Samuel Wainer (à direita) | Foto: Reprodução

Em suma, Samuel Wainer sabia fazer jornal, e dos melhores e mais modernos. Mas encontrou pela frente seu predador, Carlos Lacerda.

É provável que Carlos Lacerda não fosse um ás em fazer jornal, em comparação com Samuel Wainer. Mas, diferentemente do rival, era um deus da guerra, um articulista de primeira linha. Era um míssil ambulante, um demolidor. Sua boca era uma metralhadora — que queimava reputações (o suicídio de Getúlio Vargas deriva, em parte, das catilinárias do jornalista-político). Sua escrita destruía honras e adversários (e até aliados que ele julgava ser apenas parcialmente aliados).

Samuel Wainer observa a impressão da “Última Hora” | Foto: Reprodução

Carlos Lacerda ganhou uma biografia gigante, escrita pelo brasilianista John W. F. Dulles. Mas os dois volumes são lacunares. Espera-se que o jornalista Mário Magalhães apresente uma biografia menos burocrática. O político que governou a Guanabara e fez o impossível para devastar os governos de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek é examinado de maneira fria pelo scholar americano. Falta emoção à biografia. Não a emoção da paixão, do excesso, mas aquela que capta o personagem como se ainda estivesse vivo.

O jornalista Augusto Nunes funcionou como ghost-writer na elaboração do livro “Minha Razão de Viver”, memórias de Samuel Wainer. Trata-se de uma obra excelente, mas, propositadamente, parcial. É a versão dos fatos pelo criador da “Última Hora”.

Samuel Wainer acabou “encurralado” por seus adversários políticos | Foto: Reprodução

Agora, chega às livrarias “Samuel Wainer — O Homem Que Estava Lá” (Companhia das Letras, 576 páginas), da jornalista Karla Monteiro. Pela quantidade de páginas, parece se tratar de uma obra alentada. Não li, mas já entrou para minha lista penelopiana.

Samuel Wainer ficou famoso pela história de que, com uma entrevista, devolveu Getúlio Vargas ao cenário político do país. Em 1945, militares usaram o fim da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) — sugerindo que a democracia vencera na Europa e no Brasil prevalecia uma ditadura — para derrubar o presidente. Ora, os que derrubaram o ditador haviam participado de seu governo e, alguns, eram mais entusiasmados com os países do Eixo, notadamente a Alemanha e a Itália, do que com os Aliados, ao menos até 1941-1942. O presidente seguinte, o general Eurico Gaspar Dutra, velho aliado de Getúlio Vargas, havia sido, até pouco tempo, um entusiasta das ideias nazistas.

Com a queda, Getúlio Vargas praticamente exilou-se em São Borja, no Rio Grande do Sul. De lá, havia contribuído para a vitória de Eurico Dutra.

Karla Monteiro: biógrafa de Samuel Wainer | Foto: Facebook

O repórter Samuel Wainer trabalhava para Assis Chateaubriand, mas tinha suas próprias ambições. Enviado para cobrir um acontecimento no Paraná, teria se desviado, por conta própria — há quem tenha visto o dedo e o olho atento de Chatô —, para São Borja. De lá, voltou com uma entrevista bombástica. O “Velho” estaria voltando. Quando leu a entrevista, se não for folclore, Getúlio Vargas teria dito que gostara do que dissera e até do que não dissera. A partir de então, passou a chamar Samuel Wainer de Profeta. As verdades e as lendas — que, de tão ditas, se tornaram verdades no mínimo culturais — certamente são apontadas no livro por Karla Monteiro.

Getúlio Vargas candidatou-se a presidente, em 1950, e derrotou o brigadeiro Eduardo Gomes (que era “bonito e solteiro”, como dizia seu slogan, mas era ruim de voto, como a UDN, seu partido). Samuel Wainer, que estava no lugar certo na hora certa, tornou-se queridinho da corte getulista. Para fazer e manter a “Última Hora”, o jornalista-empresário contou com recursos públicos e de empresários ligados ao establishment governista.

Tudo ia muito bem, até Samuel Wainer esbarrar numa montanha drummondiana: Carlos Lacerda. Roberto Marinho, o poderoso dono de “O Globo”, também não aprovava o sucesso do jornalista.

O que teria se tornado Samuel Wainer se não tivesse encontrado Carlos Lacerda pelo caminho? Como a história está dada, finalizada, sabemos que o jornalista quebrou. Mas possivelmente teria se tornado um Roberto Marinho antes daquilo em que Roberto Marinho se tornou — potentado número um da mídia patropi. Carlos Lacerda não era competidor para Roberto Marinho, pois era político e “só” um escrevinhador de artigos explosivos, mas Samuel Wainer tinha visão empresarial e jornalística. Poderia ter ido mais longe do que foi. Mas em 1964 teria outra montanha pela frente — os governos militares.

As melhores biografias são aquelas que, a partir da vida de um indivíduo, contam, com mestria, o período em que viveu. Por meio de “Samuel Wainer”, a biografia escrita por Karla Monteiro, certamente ficaremos sabendo mais sobre os governos de Getúlio Vargas, Eurico Dutra, Juscelino Kubitschek, João “Jango” Goulart e dos militares. Ele morreu antes do fim da ditadura, mas pegou a Abertura. Viveu menos de 70 anos.

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