Livro de memórias de Danuza Leão merece o título de “Quase Santa” e não de “Quase Tudo”
07 novembro 2018 às 19h07
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Danuza Leão “corrige” sua história, faz de Samuel Wainer um herói, fala de sua paixão por Antônio Maria, relata caso homossexual de Marlon Brando e diz que adora solidão
A jornalista e ex-modelo Danuza Leão é uma estrela e, como tal, desperta o interesse dos mortais. Seu livro de memórias, “Quase Tudo” (sugestão do amigo Millôr Fernandes), publicado pela Companhia das Letras, será best seller. O título não é incorreto, pois Danuza não conta tudo, certamente isto é impossível, mas ficaria melhor se fosse outro: “Quase Nada” ou “Quase Santa”. Como na maioria dos livros de memorialistas, Danuza tenta “ajeitar” sua história, colocando-se no centro dos acontecimentos e transformando Samuel Wainer numa espécie de herói, o homem perfeito, e, ao mesmo tempo, um coadjuvante de certo fôlego. É como se, ao “limpar” a história de Wainer, também “limpasse” a sua. A Ava Gardner (o mais belo animal do universo, segundo Jean Cocteau) da periferia pôs cornos em Wainer? Não. Não. O nosso Sinatra não teria sido traído, e sim abandonado, quando Danuza o trocou pelo jornalista, cronista e compositor Antônio Maria. Ajustando ou não as histórias, a colunista da “Folha de S. Paulo” escreve com leveza e graça.
Há fofocas muito boas. Mas fofoca só funciona se o “santo” for revelado. Danuza conta a história de uma amiga que dormiu com o ator americano Warren Beatty, mas não revela seu nome. Também não informa o nome do senador (depois, governador) que dormiu com uma amiga em sua casa. E, afinal, transou com o tucano José Serra ou não? Tudo indica que sim, mas o descartou. Era muito jovem — tinha 23 ou 24 anos e Danuza, balzaca, 31 anos (“saímos juntos algumas vezes”, admite Danuza. “Mas eu me achava muito velha para ele”). No capítulo das inconfidências, relata que, aos 72 anos, estando em Paris, encontrou um cubano e dormiu com ele. Paixão de uma noite. Nas histórias de alcova, é econômica. Além de Antônio Maria, com viveu quatro anos, cita mais Tarso de Castro, com quem nada nua no mar da Bahia, o ator francês Daniel Gélin (ator de “La Ronde”, de Mar Ophüls), com quem usou heroína, e só. Rubem Braga, apesar de ser um devorador de mulheres (Tônia Carrero foi uma de suas paixões), não conquistou a bela que encantou tantos homens da República.
“Perdido, casado, cheio de charme e sedução, daqueles a quem não se resiste — e eu não resisti. Toda mulher deveria conhecer um homem assim na vida. Menos nossas filhas, claro”, diz Danuza sobre o ator Daniel Gélin. Na França, com menos de 20 anos, procurou Jacques Fath e descolou um emprego de modelo. Ganhava uma ninharia, mas ficou famosa… no Brasil. A revista “Manchete” publicou: “Danuza conquista Paris”. “Não era bem assim, mas os brasileiros acreditaram”, admite a ex-modelo. “Foi em Paris que conheci o mundo da sofisticação.” Lá, entre outros, viu o ainda jovem Bobby Short cantando e tocando piano, no Mars Club.
Na França, amiga de famosos, Danuza colheu histórias mui instigantes, dessas que abalam (putz!) o mundo. A manequim Nina Dyer casou-se com o industrial alemão Heini Thyssen e lhe pôs chifres bem longos. Esbanjando a grana do marido, Nina deu um avião de presente a Christian Marquand, seu amante. Marquand, que foi o amor de Brigitte Bardot no filme “Et Dieu… Créa la Femme”, era amante de Marlon Brando. “Apaixonado”, Brando “botou o nome de Christian em seu primeiro filho”. O milionário, ou bilionário, Heini depois quis ficar com Danuza. A história é mal explicada, mas Danuza tenta achar um nexo: “… me dei conta de que nunca tive vocação para milionária”. Sua tese: “É preciso ter vocação e capacidade de grandes renúncias para casar com um homem rico — e, quanto mais rico, pior. As mulheres de homens ricos passar a usar os vestidos mais lindos e as joias mais maravilhosas, mas têm de abdicar de suas vontades, abandonar todas as amizades do passado, e se tornam um objeto na vida desses homens”.
Na Espanha, para onde correu atrás de Daniel Gélin, que fazia o diabo com a modelo e a traía abertamente, Danuza viu Ava Gardner (os chifres de Frank Sinatra eram maiores do que os dos bois da raça gir) dando em cima de toureiros e “bebendo manzanilla e dançando flamenco em cima das mesas até amanhecer”.
Samuel Wainer e Getúlio Vargas
Em 1953, Samuel Wainer estava preso (“por ter se ter negado a responder a umas perguntas da CPI de seu jornal, a ‘Última Hora’”) e Danuza, que não o conhecia, foi visitá-lo, para acompanhar o amigo Sérgio Figueiredo. “Fiquei fascinada por aquele homem tão inteligente, com uma visão tão diferente da minha, e, se naquela mesa toca da delegacia tivesse uma garrafa de uísque, gelos e copos, teríamos ficado conversando até alta madrugada.” Danuza diz que o dinheiro para a criação do jornal ‘Última Hora’ não saiu dos cofres do governo de Getúlio Vargas. É falso. O presidente da República financiou o jornal do Profeta, ainda que indiretamente, mas, no final, como até hoje, tudo, ou quase tudo, sai dos cofres públicos. Danuza tinha 19 anos e Wainer, 41.
Wainer pensava 24 horas por no dia no jornal, mas, casado com uma mulher jovem, aventurava-se pela praia. “Samuel na praia era um acontecimento, pois não tinha a menor intimidade com o mar e a areia. Não sentava na toalha, dali a pouco estava parecendo um frango à milanesa; não sabia mergulhar, fura onda, nem pegar jacaré, mas com o tempo foi aprendendo.”
Danuza poderia contar mais histórias do poder, mas é econômica. Aqui, transcrevo uma das histórias da realpolitik: “Quando Samuel e eu nos casamos, a ‘Última Hora’ continuava a apoiar Vargas, mas Samuel e Getúlio, que chegaram a ser bons amigos, já pouco se viam. Com toda a imprensa contra a ‘UH’, a amizade deles acirrava os ânimos da oposição, e um chegou a hora da separação; de corpos, pelo menos. Samuel, que costumava frequentar o Catete sem se fazer anunciar, se afastou; Getúlio não o chamava mais, só se falavam por intermédio de sua filha Alzira; ela passou a ser a ligação entre os dois. Samuel deve ter sentido o baque, mas nunca demonstrou. Ele gostava muito do presidente, os dois foram importantes um para o outro, mas sabia que havia se tornado um aliado incômodo e tinha consciência de que isso faz parte do jogo político”.
Quando a turma de Gregório Fortunato atirou em Carlos Lacerda (sujeito palavroso), Wainer, ao ser avisado, perguntou se o udenista tinha morrido. Ao ser informado que não, que só havia sido ferido, disse: “Merda”.
No capítulo das pequenas histórias, Danuza admite a falsificação da cidade. Pois é, Danuza era gata, duplamente. Bela, charmosa, convenceu um policial federal a reduzir 10 anos em seu passaporte. Hoje, acredita que não tem 72 anos, e sim 35 (nasceu em 26 de julho de 1933). É mais jovem que muita jovem de 35 anos. Pelo menos de alma, embora, como sabe, o que importa mesmo, em termos de beleza e saúde, é o corpo.
Danuza passa o livro inteiro sustentando que o casamento com Wainer foi feliz. “Samuel, além de muito inteligente, era daqueles homens que se dão bem em qualquer roda. (…) … eu apresentei Samuel à vida glamourosa e sofisticada, e ele me apresentou o poder”, diz Danuza, julgando-se, quem sabe, um par de Wainer. Ele fez um presidente, Getúlio Vargas, e um jornal, a inovadora “Última Hora”. Ela fez o quê? Com sua beleza, abalou corações, o que, sabe-se, é muito. A irmã, Nara Leão, princesa da bossa nova, cantou e encantou o país. Permanecerá na história da música popular brasileira. Danuza — como Madame de Stäel e, quem sabe, o café — passará. Mas deixará um rastro de perfume, rebeldia e beleza. Não é pouco.
A atriz Kim Novak no carnaval de rua
No Rio de Janeiro, Danuza conhece, por meio de Jorginho Guinle, a atriz Kim Novak (aquela que Juscelino Kubitschek tentou, mas não conseguiu, levar para conhecer o aposento íntimo). “A atriz estava no auge do sucesso. Tinha acabado de estrelar o filme ‘Picnic’, com William Holden, e era considerada uma das mulheres mais lindas do mundo — os fotógrafos não a deixavam em paz. Como ela queria ver o Carnaval de rua, armamos um plano. Jorginho levou-a para nossa casa, ela vestiu uma calça e uma camisa de Samuel, botou um lenço na cabeça, um chapéu de palha em cima, e pintou o rosto com carvão. Nós também nos vestimos quase como mendigos e fomos curtir os blocos de sujos na Avenida Rio Branco. Ninguém podia imaginar que debaixo daqueles andrajos se escondesse Kim Novak. Ela era muito boazinha mas burrinha. Um dia me viu com uma calça dourada de Saint Laurent, se encantou, me pediu emprestada e nunca devolveu.” Nascida em 1933, como Danuza, Marilyn Pauline Novak, a Kim Novak, provavelmente não ficou sabendo da história contada no livro e não pôde responder à acusação de que, diria Alfred Hitchcock, diretor de “Um Corpo Que Cai”, era uma pequena ladra.
Wainer, homem poderoso, levou Danuza à China. Lá, encontraram-se com Mao Tsé-tung, o “rei” do comunismo orintal. “Na hora de tirar a foto com Mao”, conta Danuza, “dei logo um jeito e ficar a seu lado, e, quando fomos convidados para sentar por alguns minutos com ele, fiquei apavorada e perguntei: ‘Samuel, o que é que eu digo?’. Samuel foi rápido: ‘Elogie suas poesias’. Foi o que fiz, e Mao deu um grande sorriso de satisfação”. Danuza certamente nunca leu a poesia de Mao, comparável, em mediocridade, à de J. G. de Araújo Jorge (a de Erivaldo Nery, garantem seus confrades, como Carlos Willian e Iúri Rincon Godinho, é bem superior).
Em Nova York, com Wainer a tiracolo, conheceu James Baldwin (negro e gay), escritor americano celebrizado pelo romance “O quarto de Giovanni”. Era “atormentado”, diz Danuza. Conheceu também Miles Davis. “Meu Deus, como ele era elegante.”
Bossa nova nasce na casa de Nara Leão
A bossa nova nasceu, de algum modo, segundo Danuza, na casa de seus pais. Os artistas eram atraídos pela tímida Nara Leão. A história, contada pela “historiadora” Danuza: “Não sei se exagero, mas acho que a bossa nova levaria bem mais tempo para se firmar se não fosse a liberalidade de meus pais, que haviam se mudado para um grande apartamento na Avenida Atlântica e era os únicos a abrir a casa para uma garotada que se reunia todas as noites e varava as madrugadas tocando violão e cantando. Nessas reuniões não rolava nenhuma espécie de bebida, e madrugava alta iam todos para a cozinha fazer um macarrão. Muitas vezes, quando meu pai saía para trabalhar, eles ainda estavam por lá, tocando e cantando. Minha mãe me contou que um dia acordou e tinha um piano na sala. Como o piano subiu, ninguém sabe, ninguém viu”.
Mais sobre a bossa nova: “Para mim, eles não passavam de um bando de crianças. Tom [Jobim], João Gilberto e [Roberto] Menescal era apenas os amigos de minha irmãzinha mais nova, aquela tímida que quase não falava e que iria se tornar um monumento da música brasileira. Aliás, soube naquela época que João Gilberto implicava quando ouvia passarinhos cantando: passarinhos, segundo ele, são muito desafinados”.
Aos 27 anos, com Antônio Maria, o jornalista e compositor, por perto, Danuza passou a se sentir sozinha. Mulato, 120 quilos distribuídos em 1,80m, feio, Antônio Maria sabia adular uma mulher.
“Antônio Maria também sabia ouvir: qualquer problema meu, fosse minha insatisfação com a babá de meus filhos, fosse uma rusga com meu pai, ele tinha todo o tempo do mundo não só para só para escutar como para discutir, sugerir, às vezes aconselhar. Era exatamente o que eu não tinha de Samuel, era exatamente do que eu precisava — e Antônio Maria sacou”, afirma Danuza.
Por que o charmoso e poderoso Wainer perdeu para o gordíssimo Antônio Maria? Danuza tem sua explicação, que é convincente (há outra, relata por amigos, talvez inimigos: Maria, como era conhecido, era um demônio na cama, como Tarso de Castro, que cantou e seduziu a atriz Candice Bergen e a própria Danuza): “Venceu Antônio Maria, com o argumento simples sem que isso precisasse ser explicado — de que não poderia viver sem mim. E existe algo mais forte?” Viveram quatro anos juntos.
Antônio Maria era ciumento e os dois se tornaram, por assim dizer, escravos um do outro. Danuza diz que, ao deixá-lo, teve de fazer uma opção entre a paixão e a vida. Logo depois, Antônio Maria morreu, aos 43 anos. Era, como ele mesmo dizia, “cardisplicente” (o termo está na biografia “Antônio Maria — Noites de Copacabana”, do jornalista Joaquim Ferreira dos Santos). Morto mais tarde, Wainer deixou de herança apenas um telefone. Estava pobre.
Glauber Rocha e o cheque sem fundos
Em 1967, convidada por Glauber Rocha, aceita participar do filme “Terra em Transe”. “Na hora de dizer as falas, era uma verdadeira tragédia, eu não era capaz de memorizar nenhuma. Problema? Claro que não. Glauber decidiu que meu personagem não diria uma só palavra.”
Um dia, Paulo Autran deu uma sugestão, o que desagradou o diretor Glauber Rocha. “Demita esse cara”, disse, irado, Glauber para o produtor Zelito Viana. Danuza recebeu, pelo trabalho, um cheque sem fundos.
Caetano Veloso uma vez chamou Paulo Francis de “bicha travada” e, assim, o polêmico jornalista ficou com uma imagem, digamos, efeminada. Tudo papo-furado, segundo Danuza Leão. Ele era namorador. Além de tentar seduzir a mulher de Tarso de Castro, Bárbara Oppenheimer, namorou, entre outras, Gilda Grillo e Lena Chaves. “Francis só namorava ao som de ópera”, o que certamente espantava parte das mulheres. Francis morreu casado com a jornalista Sonia Nolasco.
O terceiro marido de Danuza Leão, Renato Machado, apesar de sofisticado, tinha um defeito, grave, para ela: era muito “galinha”. Especialista em vinhos, ele trabalha na TV Globo.
Na página 148, embora não esteja muito claro, Danuza parece assinalar que Juscelino Kubitschek participou de uma festa em 1977. Ele morreu em 1976.
Danuza, cujo pai se matou, perdeu o filho Samuca Wainer, repórter da TV Globo, num acidente. Tornou-se alcoólatra e demorou muito tempo para se recuperar. “Uma parte de mim foi enterrada com Samuca.” A morte da irmã Nara Leão, que tinha um tumor na cabeça, também a derrubou. Sobre a morte da mãe, Altina, Danuza escreve algo bonito: “… fiquei espantada quando vi minha mãe no caixão. Seus olhos não estavam totalmente fechados, e eram verdes, verdes, mais verdes do que eu jamais percebera, talvez por causa dos óculos de lentes grossas que ela usava. E como estava bonita: parecia que tinha remoçado trinta, quarenta anos”.
Mãe de Pinky (que organizou o livro do pai, o que o jornalista Augusto Nunes deu o texto final) e Bruno Wainer, Danuza, depois da depressão, substituiu Zózimo Barroso do Amaral na coluna do “Jornal do Brasil”. Fez sucesso. Do “JB”, que começou a atrasar salários, foi para a “Folha de S. Paulo”. Danuza gosta de Fernando Henrique Cardoso, tido como um gentleman, mas não se interessa pelos petistas. ‘Jamais cheguei perto de Lula — nem me interessa.”
“Quase Tudo” é o melhor livro de fofocas do ano. Com a vantagem de ter sido escrito com inteligência e graça, muita graça. Apesar de minhas ligeiras restrições, é uma obra deliciosa, de uma delicadeza astuta. Alguns trechos parecem conter lições de auto-ajuda, mas elas são, em seguida, corroídas por um certo ceticismo.
Resenha publicada na edição de 27 de novembro a 3 de dezembro de 2005. O leitor deve ficar atento à data, pois, quase 13 anos depois, a vida de Danuza Leão mudou. Ela não é mais colunista da “Folha de S. Paulo”, por exemplo. Alterei o título de “Quase Santa” para “Livro de memórias de Danuza Leão merece o título de ‘Quase Santa’ e não de ‘Quase Tudo’”.