Nossa preocupação não deve ser com o planeta. A Terra não precisa do homem; é a humanidade quem necessita dela

Mulheres indígenas e a água: relação harmônica com a fonte da vida | Foto: Sérgio Vale

Brotando das entranhas da terra ou precipitando na forma de chuvas, granizo e neve, a água se nos apresenta na roupagem de vários personagens: pingos gotejando, fonte jorrante, torrente rugidora, cascata, lagos, rios e mares.

Quando pura e límpida, estimula a inteligência; quando suja, mata de maneira avassaladora, sendo responsável por 1,7 milhão de mortes por ano. É o único elemento encontrado no estado gasoso, sólido e líquido.

Sua origem se deve a fissura de minerais silicatados, em cuja composição entram átomos de hidrogênio e oxigênio, expelidos pelos vulcões ou lançados à atmosfera primitiva da terra pelo impacto de meteoros e meteoritos. Isso aconteceu no alvorecer da história do nosso planeta. De lá para cá, passaram-se quase 5 bilhões de anos, até que um dia, entre os seres viventes do planeta Terra, surgiu o gênero Homo, fruto de processos evolutivos complicados, antecedidos de adaptações e mutações coroadas de êxito.

Esse fato se deu há pouco tempo, geologicamente falando: 2 milhões de anos, numa época denominada Pleistoceno, caracterizada por mudanças climáticas que afetaram todo o planeta e, de forma decisiva, o continente africano, berço da humanidade.

Os primeiros representantes do gênero humano, conhecidos como Homo habilis, se apossaram das águas do antigo Lago Turkana, impedindo que seus parentes, os Australopithecineos, fizessem também uso dessa água. E assim, pela força sedimentada no egoísmo, nosso primeiro ancestral conduz à extinção nossos parentes próximos e, com base na competição, se estabelecem à margem do lago, transformando-o no seu território primordial e com isto, a humanidade ainda no seu alvorecer, na disputa pela água, comete o “pecado original”, fundamentado no egoísmo e no desejo de não compartilhar.

Do alto do seu poderio, o Homo habilis se transforma em Homo erectus, conquistando, além da África, a Ásia Menor, o Extremo Oriente e a Europa, sempre migrando ao longo de antigas fontes de águas cristalinas. Por volta de 200 a 150 mil anos antes do presente, o Homo erectus dá origem ao Homo sapiens primitivo, exímio caçador, nômade, cujo consumo de proteína animal o transforma num guerreiro fabuloso, mas extremamente dependente da água, quer para saciar sua sede, quer para suprir suas necessidades alimentares.

Por volta de 30 mil anos, o Homo sapiens primitivo, agora transformado em Homo sapiens sapiens, já se encontra disperso pelos quatro cantos do planeta. Os vestígios arqueológicos demonstram que, por muito tempo, nossos antepassados escolhiam seus locais de acampamentos ou locais para construir suas aldeias e cidadelas, levando em consideração a qualidade da água. Como artimanha, usavam sacrificar um animal e examinar seu fígado: se estivesse azulado, poderia ser indício de água ruim; mas, se o fígado do animal se apresentasse com aspecto saudável, significava que ali tinha água de boa qualidade.

E assim, a humanidade foi estabelecendo uma relação de forte amor com a água. Não é de se estranhar, portanto, que os primeiros documentos escritos dos sumérios já contivessem normas sobre a utilização da água. Os camponeses sediados às margens do Nilo, do Eufrates e do Tigre tinham de evitar que esses rios, por ocasião de suas enchentes, invadissem suas lavouras. Para isso, inventaram primitivos mas eficientes pluviômetros, para medir o volume de vazão da água.

São incontáveis os dados registrados em antigos documentos escritos que assinalam o significado que se emprestava ao uso da água. No Eufrates, por exemplo, foi encontrada uma lápide em calcário de mais ou menos 4,3 mil com a seguinte inscrição: “Ur-Namu foi quem ordenou que se realizassem as obras dos canais; mas ele cede aos deuses a honra de fornecer a dádiva que é a água abençoada, que dá fertilidade as terras.”

Também, no Velho Testamento se encontram inúmeros indícios da importância que se conferia à água. Eis um exemplo: “Empreendi grandes obras, edifiquei casas, plantei vinhas, fiz jardim e pomares e nestes plantei árvores frutíferas de toda espécie. Fiz açudes para regar com eles os bosques em que reverdeciam as árvores (Eclesiastes, capítulo 2, versículos 4 a 6).

A noção de que se devia economizar água estava profundamente arraigada na mentalidade dos nossos antepassados da antiguidade. O antigo provérbio grego dizia: “O melhor, porém, é a água, melhor dos que os jogos olímpicos e do que o ouro.”

Foi Aristóteles o primeiro a estabelecer as relações entre a água da chuva e a água subterrânea. Hipócrates faz inúmeras menções às fontes e seus poderes curativos. Ainda na antiguidade, as fontes mereciam a veneração dedicada às mães que, por sua vez, eram as protetoras dos lagos.

A água durante séculos foi utilizada como fonte de purificação. Motivou João Batista, no Rio Jordão, a expurgar o pecado original, usando-a como símbolo do batismo. Todas as religiões da Terra a usam, com seus poderes mágicos nos seus rituais. É a madrinha dos querubins.

Foi nas margens do Rio Níger, em Timbuctu, que Ibn Batuta, pregador do Islã pelas terras do norte da África ao Iêmen, criou no século 11 a primeira universidade do mundo, para estudar a relação dos povos com  a água e seus costumes.

E assim, acumulando conhecimentos, o homem da pedra lascada quase que num passe de mágica transforma-se em agricultor; promove, no início, a revolução muscular, depois a revolução mecânica, a revolução elétrica e, nas últimas décadas, a cibernética, matriz da revolução eletrônica.

Entretanto, a tecnologia que o possibilitou sair de seu planeta e fincar bandeirolas em outros  rincões do sistema solar trouxe também o consumismo voraz como modelo de desenvolvimento e progresso. E, em nome deste, uma pequena parcela da humanidade moderna, de posse dessa alta tecnologia e representada por grandes empresas multinacionais desvinculadas dos Estados e, por isso, sem responsabilidade social e moral, se apossaram das águas modernas, poluindo os rios, construindo represas, desviando e transpondo o curso das águas, sem levar em consideração as histórias evolutivas particulares de cada lugar.

O fato é que hoje temos conhecimento suficiente para afirmar que a água é um recurso finito, que em breve vai faltar em várias partes do mundo; que os aquíferos que sustentam os rios estão na base mínima de suas reservas e que, com a retirada da vegetação nativa, a recarga desses aquíferos se torna impossível.

Sabemos que necessitamos de água em nossas casas; também necessitamos dela para a produção de alimentos, para a indústria, para a produção de energia etc., mas também sabemos que, sem saneamento, a água fonte da vida se transforma num veneno letal.

Os donos do mundo já estão falando em privatização das águas. Ou seja, querem considerar a água apenas um bem comercial, em contraposição aos que veem a água como patrimônio da humanidade e que, por isso, deve ser preservada e não privatizada nem transplantada.

Agindo dessa forma, os grupos poderosos, que, em nome de um falso progresso, já desestruturaram o território, orquestram agora o controle do planeta, pela privatização da água. Será o princípio do fim, porque a ganância associada ao egoísmo no seu mais elevado grau, fará o gênero humano se destruir pelo “pecado mortal”.

O mais impressionante é que esses grupos ou seus representantes se arvoram em ser os defensores do planeta Terra. Temos de salvar o planeta, apregoam, nos seus sistemas de comunicação, tomando medidas enganosas e paliativas.

Ora, a Terra tem 4,6 bilhões de anos e durante sua trajetória evolutiva sofreu várias percalços: já foi Pangeia, Laurásia, Gondwana, viu quase que a total extinção da vida, pelo impacto de meteoros, vulcões, furacões etc., mas nosso planeta, utilizando-se como parâmetro o tempo da natureza, se refez, mesmo que de forma diferente, continuou sobrevivendo e assim continuará.

Ainda que um dia sequem todas as fontes de água potável, com alguns milhões de anos, a velha Terra será capaz de se recuperar. Portanto a preocupação não deve ser com o planeta. A Terra não precisa do homem, o homem necessita dela. Por isso, a preocupação deve ser com o gênero Homo. Este sim, merece uma nova oportunidade, pois o modelo econômico predatório no qual está inserido o encurrala num beco sem saída.

A água, berço da vida na terra, poderia fazer renascer, na cabeça da contemporaineidade, novas mentalidades. E, na iminência da sua falta, quem sabe, novas consciências pudessem brotar, fazendo emergir a liberdade e a luta pela vida.