Em 2014 dei uma entrevista para o Jornal Opção, de Goiânia, que alcançou uma grande repercussão. Antes,  já havia escrito vários artigos científicos, sobre a extinção do cerrado, sobre queimadas,  sobre  temas climáticos, todos com repercussão baixíssima, em comparação  à entrevista.

 Não sei se foi por causa da linguagem, ou se foi em virtude do alcance  do jornal. O fato é que, a repercussão da entrevista, rendeu várias indagações e atitudes,  em diferentes pessoas e grupos de pessoas e até movimentos em algumas partes do Brasil.

 Volta e meia depois de alguma palestra, proferida no Brasil e no exterior, surge sempre uma pergunta com base naquela entrevista, o que obriga a explicar tudo novamente, só que num espaço de tempo mais curto, limitado ao tempo de uma resposta rápida, no contexto de uma palestra.

Essas perguntas, também me causavam muitas indagações e inquietações, que aliadas aos princípios de honestidade e responsabilidade que sempre me acompanharam, revisitei  principalmente nos últimos cinco anos,  alguns locais estratégicos, citados na  entrevista, mas que me inquietavam, em virtude da falta de dados mais precisos. Os dados que  obtinha eram provenientes de notícias vagas, me enviadas por ativistas ambientalistas, surgidos  posteriormente à entrevista.

Confesso que cada situação que constatava, era mais degradante que a descrita na entrevista, fato que sempre me deixou muito triste, pois pude constatar que minhas palavras não foram levadas a sério e que o ato da educação, vai muito além das palavras.

Recentemente recebi dois desafios, um foi um convite do próprio Jornal Opção, para uma entrevista sobre o mesmo tema, para analisar a situação do cerrado hoje, passados dez anos, da entrevista. O outro desafio foi da Fundação Osvaldo Cruz, que me convidou para responder sete questões sobre o Cerrado, não tenho certeza se possuíam conhecimento sobre a entrevista. O fato é que as questões giravam em torno das preocupações expressas na citada entrevista.

Resolvi então, destacar as duas primeiras questões, e organizar por escrito para o Jornal Opção, depois de falar para a Fundação Osvaldo Cruz. As respostas seriam também uma comemoração, ao influente JORNAL OPÇÃO, que está completando 50 anos de um grande trabalho.

Se você pudesse viajar cem anos para frente no tempo e identificar que suas visões e previsões deram certo, qual seria a cara dos cerrados em 2125? E se as piores previsões se confirmarem, o que você veria?

Ano 2.125: há dois cenários possíveis. A encruzilhada do primeiro cenário diz respeito à retirada total da cobertura vegetal, já afetou de forma decisiva, a já reduzida recarga dos aquíferos, cujas reservas chegarão a um nível crítico, pois as águas pluviais que conseguirem penetrar através do solo, serão de imediato absorvidas por estes, dado aos seus estados de aridez em função da insolação. A pouca umidade retida se evaporará de forma rápida devido às mesmas causas. No início, os problemas oriundos dessa situação, tentarão ser contornados com a construção de barramentos através de curvas de níveis e pequenos açudes, para reter as águas das chuvas. Entretanto, os ambientes que surgem desse processo têm caráter bêntico, fato que origina a argilicificação e a consequente impermeabilização do fundo dos poços, que associada à forte insolação, resultará numa ação de nula eficácia. 

O primeiro aquífero a ter suas reservas diminuídas será o Urucuia até o quase total desaparecimento, seguido do aquífero Bambuí e do aquífero Guarani.

 Com o desaparecimento do lençol freático, seguido da diminuição drástica da reserva dos aquíferos, os rios iniciarão um processo de diminuição da perenidade, oscilando sempre para menos, entre uma estação chuvosa e outra e desaparecendo quase por completo na estação seca.

Este fato afetará primeiro os pequenos cursos d’água, depois os de médio porte e em seguida os grandes rios.

Os fenômenos ocorridos nos chapadões centrais do Brasil, em função do desaparecimento do cerrado, afetarão de forma direta várias partes do continente.

A parte sul da calha do rio Amazonas, representada pelos baixos chapadões, terá uma rede de drenagem, insignificante no que diz respeito ao volume d’água, uma vez que os grandes afluentes da margem direita que tem suas nascentes e seus alimentadores situados no cerrado, deixarão de existir ou terão seus volumes diminuídos de forma significativa nos cursos superiores e médios. Os grandes afluentes do rio Amazonas pela sua margem direita, serão alimentados apenas nos seus cursos inferiores, fato que reduzirá em mais de 80% suas vazões.

A floresta equatorial deixará de existir na sua configuração original, sendo paulatinamente substituída por uma vegetação rala tipo caatinga, salpicada em alguns locais, por espécies de plantas adaptadas a um ambiente mais seco.

O vale do Parnaíba englobando a bacia geológica Parnaíba-Maranhão será invadido na direção sul/norte por dunas arenosas secas, provenientes da formação Urucuia existente no Jalapão e Chapada das Mangabeiras. E, na direção norte/sul por sedimentos arenosos litorâneos que caracterizam os Lençóis Maranhenses e Piauienses, que em virtude de condições favoráveis terão facilidade de transporte eólico em direção ao interior. Os atuais poços jorrantes do vale do Gurguéia, deixarão de ser fluentes. O próprio rio Gurguéia desaparecerá, projetos como o MATOPIBA, será um dos responsáveis por esse processo.

Com o desaparecimento dos principais afluentes do rio São Francisco, pela sua margem esquerda, que cortam o arenito Urucuia, a ausência de alimentação constante, associada ao assoreamento, contribuirão para o desaparecimento do grande rio, nos seus aspectos originais. Permanecerão algumas lagoas e cacimbas onde o terreno tiver característica argilosa, ou outra rocha impermeabilizante originária da metamorfose do calcário Bambuí.

A Caatinga que já caracteriza parte do curso inferior do rio São Francisco avançará um pouco mais em direção ao norte, transicionando paulatinamente para a formação de uma grande área desértica, que certamente abrangerá o centro, o oeste, o sul da Bahia e norte e centro de Minas Gerais.

A região da Serra da Canastra permanecerá com alguns elementos originais como uma espécie de enclave geoecológico, com clima subúmido.

Nas áreas correspondentes aos formadores e bordas da Bacia Hidrográfica do Paraná, as desintegrações intensas dos arenitos Botucatu e Bauru, que já formaram na região durante os períodos Triássico e Cretáceo, grandes desertos, abrangendo um período de tempo compreendido entre 245 a 70 milhões de anos antes do tempo atual, com pequenas variações de tempo, acordarão de um sono profundo, expandindo seus grãos de areia, em várias direções provocando erosões colossais, assoreamento e acúmulos de sedimentos na configuração de dunas. Do curso médio da Bacia do Paraná até a parte superior de seus afluentes, haverá muitas áreas desérticas, separadas por formações rochosas ostentando vegetação de características áridas e semiáridas.

A sub-bacia do rio Paraguai, alimentada pelo aquífero Guarani, sofrerá as mesmas consequências das demais regiões hidrográficas do Cerrado, transformando o atual Pantanal Mato-grossense numa área de desertos arenosos, tal como já ocorreu na região durante o Pleistoceno Superior, onde ali existia o deserto do Grande Pantanal.

Logo após o desaparecimento por completo das comunidades vegetais nativas, fato que poderá ocorrer entre dez e trinta anos, a agroindústria terá seus dias de grande apogeu em termos de produtividade.

Os núcleos urbanos criados ou dinamizados como suportes destas atividades, atingirão também seu apogeu em termos de aumento demográfico e em termos de ofertas e oportunidades de serviços de natureza diversa.

Passado certo tempo, contado em alguns poucos anos, esta realidade experimentará um grave processo de modificação. A produtividade agrícola começará a diminuir assustadoramente, causando ondas de demissões nas empresas estabelecidas. Isto acontecerá porque a água dos lençóis subterrâneos não é mais suficiente para sustentar a produção no sistema de rotatividade de antes. Não há água para fazer funcionar os pivôs centrais. A atividade agrícola sobrevivente se restringirá à época da estação chuvosa, que já se manifesta com instabilidades sazonais.

Os solos, outrora preparados intensivamente para os cultivos, serão ocupados em pequenas parcelas, deixando exposta uma grande superfície desnuda. Da mesma forma as pastagens que sustentavam a pecuária, encontrarão afetadas, provocando a redução paulatina do rebanho.

Esta situação começará a refletir de forma visível nos polos urbanos. Haverá racionamento de água, em função da diminuição da vazão dos rios, que por sua vez provocará a redução do nível dos reservatórios. O racionamento de energia elétrica, também será imposto pelas mesmas causas. O desemprego e os serviços, antes fartos e variados afundarão numa crise sem precedentes.

Este fato provocará o aumento de pessoas ociosas e vadias nas cidades, situação que criará enormes embaraços sociais desagradáveis. Há a intensificação da criminalidade  de todas as espécies, desde pequenos furtos , saques , assaltos e assassinatos. A prostituição se generalizará trazendo consequências consideráveis para a saúde pública, que se apresenta cada vez mais decadente.

Os serviços públicos incluindo a educação, por falta de arrecadação e manutenção começarão a beirar o caos.

Depois de aproximadamente uma década, a ausência de água nos rios criará uma paisagem desoladora. Áreas outrora ocupadas pelas lavouras, serão caracterizadas agora por formas vegetacionais rasteiras e exóticas, típicas de formações desérticas, com um ciclo vegetativo muito curto.

Grande parte dos campos agrícolas abandonados, sem a cobertura vegetal necessária para fixar o solo, passará durante algumas épocas do ano, a ser assolada por ventos e tempestades fortes, que criarão uma atmosfera escura carregada de grãos finos de poeira em extensões quilométricas.

Será possível ainda avistar um ou outro ser humano vivente, utilizando água empoçada, provavelmente de chuvas e exercendo pequenas atividades de subsistência. Também será possível encontrar uma ou outra família desgarrada e solitária, sobrevivendo de restos que ainda poderão ser obtidos. Os mais bem situados economicamente migrarão para  outros locais.

Os polos urbanos serão assolados por diversas epidemias, que provocarão índices alarmantes de mortalidade. A maioria da população sucumbirá diante da miséria crescente.

A fauna nativa praticamente desaparecerá, mas ainda será possível observar alguns urubus e outras aves de rapina. A população de ratos aumentará descontroladamente, num primeiro momento, contribuindo também para o aumento da população de felinos, outrora domésticos. A mesma sorte, porém não é compartilhada pelos cães, que no início desenvolverão alguns hábitos selvagens, mas não terão êxito na sobrevivência.

Passadas aproximadamente duas décadas, praticamente não existirão mais formas efetivas de população humana.

A população de ratos e gatos diminuirá de forma brusca e outros grupos de animais como répteis, tanto pequenos lagartos e cobras, começarão a aparecer em certos locais. Também será possível observar aracnídeos e insetos, dentre estes, pequenos besouros e escorpiões.

Segundo cenário: a encruzilhada da tecnologia

Um outro cenário que também já desponta no horizonte, poderá de certa forma, amenizar, os impactos mais violentos do primeiro cenário descrito, trata-se dos frutos originários da evolução tecnológica.

Há bem pouco tempo poderia descrever a humanidade atual como o resultado de dois processos evolutivos que se sobrepuseram ao longo do tempo: a evolução biológica, que compartilha com os demais seres vivos e que fundamentalmente consiste na transferência de adaptações biológicas que facilitam a sobrevivência e a seleção das espécies, e a evolução cultural, resultado dos avanços tecnológicos logrados pela espécie humana em sua evolução biológica.

A evolução cultural tem significado, por um lado, a organização do homem em grupos sociais que têm gerado problemas demográficos, problemas de saúde, problemas de educação, problemas institucionais etc. Por outro lado, a evolução cultural agregou ao fluxo básico de energia e de informação e de circulação de matéria o fluxo do dinheiro, como resultado dos intercâmbios e das transações, gerando assim uma série de variáveis econômicas relacionadas com produção, capital, trabalho, comércio, indústria, consumo, níveis de preços, planificação de inversões, maximização de ganho, transferências de tecnologias etc.

A aplicação das diversas tecnologias sobre as biogeoestruturas naturais originou diversas manufaturas como: artesanato, instrumentos, maquinários etc., como também deu origem a uma grande quantidade de ecossistemas artificiais, cidades, metrópoles, megalópoles, campos de cultivos, áreas de pastoreio, pastagens artificiais, represas, canais de regadio, rodovias, vias férreas, aeroportos, grandes usinas, complexos atômicos etc. Por último, a evolução cultural tem originado uma série de estruturas culturais ou ideo-facturas: ideias filosóficas, crenças, conhecimentos, valores, normas etc.

Se tudo isto, aliado aos avanços eletrônicos, já nos causa surpresas, às vezes desagradáveis e espantosas, devemos nos preparar muito mais para o que nos aguardam os resultados da engenharia genética, as possibilidades incertas da inteligência artificial, a vida biônica e até com a possibilidade de outras vidas. Somos mais poderosos do que nunca.

Desde o início da década de 1970, eu, como simples professor universitário, procurava colocar esses tipos de conhecimento e preocupações, para meus alunos, fruto de minhas pesquisas, tanto aquelas desenvolvidas em campo, laboratório, mas também fruto das leituras de centenas de livros. Às vezes, até achava que estava exagerando, quando falava do desaparecimento dos rios, dos ambientes naturais ou mesmo quando ousava predizer sobre o futuro do homem, sua liberdade e felicidade etc.

Entretanto, o tempo se encarregou de trazer a certeza das preocupações. Não é preciso ter cérebro brilhante nem ser um gênio da futurologia para sabermos que, de uma forma ou de outra, a bomba Z já foi plantada. Também não é necessário ser genial para perceber que vivemos num planeta inteligente, cuja capacidade foi adquirida ao longo de bilhões de anos de experimentação e evolução, por isso, cobra caro pelos Desequilíbrios provocados pelas intervenções mal planejadas.

A revolução cibernética, que não veio sozinha, trouxe no bojo uma série incontáveis de invenções, com impactos profundos na humanidade atual e na perspectiva do futuro. Essas explosões estão criando super-homens com incomensuráveis poderes.

Um desses poderes se refere ao conhecimento atômico, com suas infindáveis possibilidades, que a fissão e a fusão nuclear podem oferecer, desde a possiblidade da destruição em massa, até a capacidade de implantação de grandes usinas atômicas, capazes de produzir energia, num momento crucial depois que a humanidade descobriu que as reservas de combustíveis fósseis são finitas, e que é crescente a limitação imposta ao uso desses combustíveis, por discursos mais recheados de ideologia que de embasamento científico.

A dessalinização da água do mar, também fruto da implantação dessas usinas, pode brindar o exponencial crescimento da população humana com o fornecimento de água potável.

Seguindo os exemplos acima, a busca constante por motores elétricos e por fontes eólicas de produção de energia têm trazido perspectivas cujas consequências apenas começam a se delinear. Desde o evento televiso que transmitiu para o mundo a chegada do primeiro ser humano à lua em 1969 e, em seguida, a transmissão também em caráter mundial da copa do mundo de futebol, realizada no México em 1970, descobriu-se que a televisão, tal qual o rádio no início, tinha um  poder magnifico de manipular massas e difundir informações em nível mundial, com a criação de cadeias globais. Os cursos de jornalismo e outros intimamente ligados tiveram uma explosão mundial. No início, a ética era a estrela guia, mas logo em seguida os donos dessas corporações descobriram que esses meios eram instrumentos importantes para imporem suas “verdades” e logo se transformaram em senhores poderosos. A manipulação estava apenas no início, mas, como um raio, logo atingiu os sistemas nervosos de grande parte da humanidade. Mudando crenças, hábitos e provocando o comodismo, que é a antessala da alienação.

No mesmo caminho surgem o raio laser, as micro-ondas que vão revolucionar os telescópios, que irão revolucionar a nossa visão do universo e proporcionar o aparecimento de incontáveis formas de meios de comunicação, causando um transtorno nunca visto na história. Se as migrações modernas já haviam proporcionado uma grande mestiçagem genética, agora a humanidade está diante de uma mestiçagem cultural sem precedentes.

O fato é que a teoria de sistemas, a teoria do caos, foi reforçada no âmago da sua compreensão, e o Homem pode compreender que seu novo mundo é agora o universo. Esse fato o impulsiona à busca de um novo arranjo dos sentidos individuais e coletivos e à busca de novos modelos educacionais de ensino e aprendizagem.

Junte-se a todos esses ingredientes os avanços da genética, a partir da descoberta do ácido ribonucleico na década de 1960, capaz de  modificar o ser humano. Isto sem contar os tranquilizantes, os excitantes e outros capazes de criarem percepções.

É preciso compreender que um Novo Mundo já começou, e a revolução, que está contida nele, é imprevisível. No início, essas situações provocarão nos centros habitados, vários distúrbios sociais que serão controlados por soldados robotizados, ordenados por organizações poderosas. Controladoras dos poderes, que procurarão criar várias formas de manipulação geral, através de espetáculos alienadores, sombrios e escabrosos.

Entretanto,  a escassez de alimentos, o racionamento do uso da água  e da energia, sempre serão combustíveis para pequenas e grandes insurreições.

Os seres humanos, cada vez mais serão afetados por transtornos mentais e novas patologias. Os índices de suicídios serão alarmantes.

Por fim uma nova adaptação está à espera. Se não, uma extinção em massa varrerá parte da humanidade da face do Planeta Terra

Se pudesse viajar 50 anos para o passado, com a maior parte dos cerrados ainda preservados, o que você tentaria mudar para que tivéssemos um presente melhor? Por que não conseguimos ser melhores?

Quando se usa um conceito falho, as consequências são desagradáveis.

Para entender esse cenário, torna-se necessário ressaltar três pontos importantes que caracterizam a cultura ocidental e que influenciaram os pesquisadores a adotarem práticas e conceitos confusos e sem visão das totalidades, responsáveis por ações fragmentadas.

O primeiro ponto, refere-se a DESNATURIZAÇÃO DO HOMEM, cuja origem está associada ao monoteísmo, porque com o monoteísmo nasce a noção do indivíduo que tem poderes para dialogar diretamente com a divindade, separando o eu do corpo e criando a noção de natureza humana e natureza externa.

Ao longo da Idade Média a DESNATURIZAÇÃO vai ser sedimentada e no Renascimento é radicalizada, quando o pensamento científico é sistematizado. A natureza é tratada como um corpo externo, surgindo assim os limites entre os saberes, como por exemplo, Ciências Humanas X Ciências Naturais. Os limites entre as ciências são paradigmas da modernidade, que nasce com a desnaturização do homem e se constitui no primeiro passo para a alienação.  A noção de indivíduo é reforçada e traz como consequência a noção de propriedade privada.

Com as modificações produzidas pelas revoluções industriais, revolução mecânica, revolução elétrica e revolução eletrônica, outro fator acontece: o êxodo forçado, a saída do homem do campo. Num primeiro estágio, esse fenômeno denominado DESTERREAÇÃO atinge as famílias camponesas tradicionais que moldaram a ruralidade regional. Com o incremento da tecnologia e o avanço do capital, comunidades inteiras são desestruturadas e desabrigadas, criando o fenômeno da DESTERRITORIALIZAÇÃO.

A DESTERRITORIALIZAÇÃO traz para a realidade atual a categoria dos SEM (Sem-Terra, Sem-Teto, Sem-Emprego, Sem-Documentos, etc.). Esse fenômeno acentua ainda mais a sensação e a condição de alienação.

Expulsos de suas terras pelos poderosos, através da compra e falsificação de títulos, os posseiros, em cujas posses não legalizadas viviam durante várias gerações, vão buscar abrigo nos centros urbanos ou nos postos de serviços implantados ao longo dos sistemas viários, que experimentam um repentino crescimento. Nestes locais, os sem-terra se transformam também nos sem-teto.

Nos centros urbanos esta categoria social, vai ocupar as periferias, as planícies de inundação dos rios, as encostas dos morros etc. Nestes locais as famílias vão estruturando suas vidas e seus espaços, caracterizados pela desorganização social e ambiental. E assim, vão tocando seu viver, até que um belo dia, um dos ciclos naturais provoca, por exemplo, excesso de chuvas. Quando estas se precipitam nos morros, o solo é saturado e a água acumulada no lençol freático, pode se armazenar numa rocha não porosa do substrato, formando um aquiclude que escorre com grande energia, levando tudo que se encontra à sua frente. Quando o aumento da pluviosidade enche os rios, estes transbordam e cobram de volta suas planícies de inundação, que por sua vez estão ocupadas pelos barracos. As consequências são destruição, mortes, doenças e a origem de uma situação social ainda mais perversa.

As comunidades desestruturadas não encontram também nos polos urbanos empregos estáveis, que sejam capazes de lhes permitir uma melhor perspectiva de futuro.

Perdidos e carentes, qual cuitelinho sem néctar, num ambiente estranho, são presas fáceis das propagandas enganosas, estimuladoras do consumismo.

A desagregação da família, a prostituição infantil e a perda do amor pela vida, são apenas algumas das consequências ditadas pelo desespero.

Além da desnaturização, desterreação e desterritorialização, visões marcantes, trabalhadas por Ruy Moreira que colaboram para impedir o desenvolvimento de uma visão  holística,  resposta para a configuração dessa situação reside em vários pontos. Colocar a culpa no que seriam mais consequências de estudos mal planejados, é muita cegueira de nossa parte. Se tais iniciativas tivessem tido as orientações científicas mais seguras, com certeza, estaríamos hoje em dia colhendo frutos mais sadios e, possivelmente se alguns princípios norteadores, fossem obedecidos, como por exemplo a preservação das áreas de recargas dos aquíferos, possivelmente estaríamos enxergando a convivência menos conflituosa entre a produção e a preservação. Infelizmente apenas o olhar da produção foi cultivado pelos pesquisadores, que em última instância, eram e são os que orientavam e orientam os produtores e ajudavam e ajudam a elaborarem as políticas públicas. Faltou cultivar o olhar da preservação cuja concretização se faz pelo conhecimento da realidade.

A causa maior e real do problema reside no fato de que as pessoas, que às vezes se acham mais luminosas que os próprios astros celestiais, nunca entenderam que o Cerrado dos Chapadões Centrais da América do Sul, funciona como Sistema Biogeográfico. Talvez, por comodismo, ou talvez por medo de se aventurar em algo mais exigente e profundo.

É muito mais simples caracterizá-lo como Bioma, conceito trabalho por Clements em 1916. Dessa forma, mascaram os conhecimentos e não precisam se incomodar com a ciência, que a todo momento fica tirando o sossego e obrigando a pensarem continuamente.

Quando o conceito de Bioma foi criado, nem se imaginava na possibilidade de um dia ser comprovada a teoria da Tectônica de Placas, cuja comprovação, a partir da década de 1960, veio revolucionar todos os conceitos que a humanidade tinha até então sobre os ambientes terrestres e marinhos. Possibilitando uma visão holística dos fenômenos ambientais e ressaltando a ideia da temporalidade.

Com os conhecimentos gerados pela Tectônica de Placas, a Terra não poderia mais ser olhada como um Planeta imutável, cujos continentes e bacias oceânicas permaneciam fixos ao longo do tempo. Em vez disso, os pesquisadores dedicados, começaram a ver a Terra como um planeta integrado e dinamicamente mutável. Dentro dessa perspectiva, não é possível entender o Cerrado sem a devida compreensão da gênese e evolução de suas bacias de sedimentação geológica. Como são os casos da bacia geológica do Paraná, da bacia geológica do Bambuí, da bacia geológica do Maranhão Parnaíba. A não compreensão dos fenômenos que originaram a formação dessas bacias restringe a possibilidade de entendimento dos recursos hídricos do Cerrado, tanto em nível de superfície como em nível subterrâneo. Restringe também o entendimento da dinâmica de cada curso d’água e suas inúmeras interações com outros fatores componentes do Sistema.

Por outro lado, a teoria da Tectônica de Placas reforçou vários outros conhecimentos, como a dinâmica das correntes de convexão, que não só afeta o relevo, mas é capaz de mudar a temperatura das águas oceânicas, que por sua vez afetam as correntes marinhas, que influenciam as correntes aéreas, modificando a composição de umidade dessas. Trouxe também o conhecimento de correntes oceânicas profundas, como a Corrente da Groenlândia, que se desloca lentamente e, por onde passa ciclicamente, altera a dinâmica das correntes marinhas, que, por sua vez modificam as correntes aéreas, trazendo consequências climáticas.

A teoria da Tectônica de Placas trouxe ainda conhecimentos sobre fenômenos como El Nino e La Nina, relacionando-os com os efeitos da rotação da Terra e os movimentos dos ventos oriundos do Leste, bem como suas ações nos fatores climáticos das faixas tropical e subtropical do Planeta.

Também é importante ressaltar os avanços científicos oriundos da teoria da Tectônica de Placas e suas interações com a teoria de Sistemas, trabalhada pela Física Quântica, explicitando dados sobre a teoria do Caos, os conceitos de seta do tempo, dos equilíbrios e desequilíbrios, das entropias, da irreversibilidade, do efeito borboleta, dos fractais e assim por diante. Elementos estes que são fundamentais para entender a globalidade de um Sistema Biogeográfico, como é o Cerrado.

Alia-se a esses fatos o advento das Etnociências, fenômeno recente dentro do nosso conhecimento, conhecido e valorizado por poucos. A Etnociência, vem promovendo a integração de saberes, de muita utilidade para alargar os conhecimentos sobre a globalidade. Integrando saberes tradicionais com saberes ditos acadêmicos. Seu desenvolvimento trouxe o advento da Etnobotânica, da Etnozoologia, da Etnomusicologia, Etnomatemática e outros campos, fato que tem contribuído em muito para que possamos repensar soluções para determinados problemas, vistos de outras posições.

Outra grande falácia, que resulta tanto da falta de conhecimento da ecologia do Cerrado, quanto de aspectos ligados à sua história evolutiva, é a compreensão sobre o fogo, fato que só reforça a ideia, de que quando se utiliza mal um conceito, as consequências são nefastas.

O cerrado, enquanto formação vegetal, é explicado por uma teoria denominada escleromorfismo oligotrófico. O oligotrofismo do solo é acentuado pelo fogo que retira basicamente seus nutrientes básicos. A vegetação do cerrado, principalmente nos seus aspectos senso strictu e cerradão, retém o máximo de açúcar que retira do solo e sequestra grande quantidade possível de CO2 da atmosfera, para alimento, e deposita esse gás nas raízes profundas. O açúcar é transformado em tecido por nome esclerênquima, que é armazenado nas bifurcações das plantas, dando a estas um caráter tortuoso. Fenômenos dessa natureza demonstram processos adaptativos de longa data. Todavia, esses não são os únicos processos que demonstram uma adaptação da vegetação do cerrado ao fogo. Existem muitos, mas, para resumir, citaremos a existência de caules subterrâneos, com função de reservas e com gemas, que permitem a reprodução das plantas após a passagem do fogo; são processos adaptativos, que demonstram uma história evolutiva, complexa e antiga dessa vegetação.

Não se pode levar adiante qualquer estudo sobre o cerrado, se não tomar em consideração o fogo, elemento com o qual essa paisagem está intimamente associada. Apesar da sua importância para o entendimento do Sistema Biogeográfico, a ação do fogo no cerrado é ainda mal conhecida, e geralmente marcada por questões mais ideológicas que científicas. Também não se pode conduzir tal estudo com base apenas nas comunidades vegetais. O estudo do fogo, como agente ecológico, será mais completo se também se observam as comunidades faunísticas e os hábitos que certos animais desenvolveram e que estão intimamente associados à sua ação, cuja assimilação, sem dúvida, necessita de arranjos evolutivos caracterizados por um tempo relativamente longo. Algumas observações constatam, por exemplo, que a perdiz (Rhynchotus rufescens), só faz seu ninho em macega, tufos de gramíneas queimadas no ano anterior. Visitando várias áreas de cerrado, imediatamente após queimadas, constata-se que, mesmo com as cascas das árvores e arbustos carbonizadas superficialmente, há entre as cascas e o tronco intensa microfauna. Fenômeno semelhante acontece com extrato gramíneo, que poucos dias após a queimada, mostra sinais de rebrota, que constituem elemento fundamental para a concentração de certas espécies animais.

O fogo é um elemento extremamente comum no cerrado e de tal forma antigo que a maioria das plantas parece estar adaptada a ele. Ferry(1973), comentando trabalho de Rachid Edwards(1956), em áreas de campo limpo e cerrado, informa que a autora estudou especialmente as gramíneas, grupo que constitui a massa de vegetal baixa dos campos e no qual existe grande número de espécies tunicadas. Rachid Edwards indica, neste mesmo trabalho, que as formações túnicas, são encontradas em plantas da vegetação baixa dos campos, como Gramínea, Cyperaceae, Iridaceae, Filicinae etc. Indica ainda que, segundo Bouillene(1930), ocorrem também em Velloziaceae, Bromeliaceae e Eriocaulaceae. As túnicas são envoltórios de pontos vegetativos e, em função, comparam-se aos catafilos que protegem as gemas dormentes. Tais elementos, além de protegerem contra a perda da água, são eficazes na proteção contra o fogo e contra o forte aquecimento por ele produzido.

A autora ainda trata dos sistemas subterrâneos, (bulbos, rizomas, tubérculos e xilopódios), que também proporcionam resistência às condições adversas. Arens (1958), afirma que o fogo é um fator que acentua o oligotrofismo, influindo dessa maneira sobre a conservação ou propagação do Cerrado. Já Goodland (1966), sugere que a ação do fogo sobre microrganismos do solo é muito importante no cerrado, porém pouco conhecida.

Outro dado importante a destacar, quando se procura entender a ação do fogo ao longo da história, é que a ação do homem pré-histórico brasileiro não funcionou como elemento perturbador dessa paisagem, porque, além da ocupação do interior do Brasil ser um fato relativamente recente, era insignificante em termos populacionais para produzir perturbações em amplas escalas; suas ações revestem-se de caráter puramente local. Nascimento (1987) assinala também que, ao longo do tempo, a ação do fogo no cerrado deve ser buscada em causas naturais. O calor e as variações do albedo, sempre altos nas áreas do Cerrado, provocam intensos movimentos convectivos na atmosfera, onde a concentração da umidade e o forte gradiente térmico atmosférico montam rapidamente tempestades magnéticas caracterizadas pela intensidade dos trovões, relâmpagos e raios.

A ação do fogo no Cerrado, ao longo do tempo, criou neste ambiente vários exemplos de adaptação. No caso animal pode-se citar como ilustração, além dos já citados, o caso da ema, (Rhea americana), que faz um ninho grande, que comporta em média 50 ovos, que são chocados pelo macho no meio do campo. Para proteger o ninho, a ema faz, ao seu redor, um pequeno aceiro, para quando o fogo vier não atingir o ninho. Isto era possível, porque tratava-se de um fogo brando, rápido e rasteiro, que simplesmente lambia o resto das gramíneas secas e mortas. Esse fogo não tinha força para atravessar o pequeno aceiro feito por aquela ave.

As gramíneas nativas e outras plantas herbáceas existiam nos chapadões, nas campinas, nos interflúvios e nas áreas de cerrado stricto sensu, onde a luz do sol permite a entrada da claridade. Atualmente, essas gramíneas não existem mais.

Nossa obrigação tem a esclarecer ainda alguns pontos importantes. O primeiro, refere-se ao ciclo vegetativo das gramíneas. Toda vez que uma gramínea produz semente, a planta morre. Alguns exemplos, que não são as pequenas gramíneas do Cerrado, apenas para a ilustração ficar mais clara. O milho, que é uma gramínea, quando produz suas sementes e elas amadurecem nas espigas, a planta morre. Assim ocorre com a cana-de-açúcar, com arroz, com trigo etc.

O mesmo fenômeno, acontece com as gramíneas nativas do Cerrado, uma vez que dão sementes, morrem deixando no local tufos de pequenos troncos secos. Algumas dessas espécies têm ciclo anual, outras desapareceram, antes que o ciclo pudesse ser conhecido, como muitos bambuzinhos nativos etc. Quando acontecia o fogo natural, este era brando e tinha a função de limpar os tufos das gramíneas, para que brotos novos surgissem ou para a quebra da dormência das sementes, que propagavam essas espécies.

Ponto importante também a ser considerado, refere-se aos alimentos disponíveis para os animais nativos, no auge da estação seca. Nessa época, esses animais estão vivendo o tempo da sobrevivência. Diferentemente de outros parâmetros de tempo, o tempo da sobrevivência é o tempo do fio da navalha. Se encontra entre a vida e a morte, não há alimentos no Cerrado para a sobrevivência dos animais, no auge da seca e muitos destes encontram nos restos dos fogos, elementos que lhes permitem sobreviver mais alguns dias, restos de insetos carbonizados, pedaços de carvão e até a cinza que proporciona cálcio e sais minerais. De imediato vêm as floradas, e, com as primeiras chuvas, a rebrota das gramíneas; em seguida chegam os primeiros frutos. Esse ciclo complexo, sustenta os herbívoros, que por sua vez sustentam os carnívoros, restabelecendo novamente o ciclo da vida.

Também é importante salientar, como causas do fogo espontâneo no Cerrado. Nesse Sistema encontra-se uma grande variedade de rochas, que refletem com intensidade a luz do sol, essa luz ao encontrar massa combustível vulnerável, imediatamente se inflama. As rochas quartzosas, desde as esbranquiçadas até o quartzo hialino, as biotitas, as muscovitas, o sílex, o arenito silicificado, todas podem provocar esse tipo de fenômeno. Já presenciei isso muitas vezes, em longos trabalhos de campo.

Outro fator, originado de processos adaptativos, refere-se à energia ou ao eletromagnetismo gerado pelo contato ou atrito dos pelos de alguns animais, com os talos secos das gramíneas. Nessa época a umidade é muito baixa, fato que provoca tal fenômeno; uma vez provocada a faísca, se esta encontrar massa combustível, é capaz de se alastrar como fogo.

Um outro fenômeno muito comum de fogo espontâneo no Cerrado ocorre nas margens dos rios, nas veredas, nos pantanais e até nos lagos artificiais. Trata-se do fogo-fátuo, que é a combustão resultante do contato de gases metano e fósforo, com o oxigênio da atmosfera. O fogo-fátuo é comum nesses locais. Nas margens de rio, é porque na época das cheias muitos animais povoam esses locais com a vazante. Com o recuo das águas na época da seca, os animais que ficam presos e não conseguem acompanhar a descida das águas entram em decomposição pela ação das bactérias e logo são soterrados pela sedimentação; os gases produzidos pela ação das bactérias, ao entrarem em contato com o oxigênio atmosférico, formam um fogo azulado, que pode durar segundos. Nas veredas, em função da presença de turfa e constante material em decomposição, esse fenômeno é muito comum e pode se alastrar com facilidade, dado a existência de um estrato inferior composto de muitas gramíneas nativas, dentre estas o capim dourado, só para citar um exemplo. Entretanto, os locais onde os fogo-fátuos ocorrem com mais frequência são as áreas de pantanais; no Sistema do Cerrado existem pequenos pantanais e grandes pantanais. Entre os pequenos podemos citar os Pantanais do rio Paranã, em Flores de Goiás, e o Pantanal do rio Capivari, próximo à cidade de Acreúna, Goiás. Entre os grandes, o destaque é para o Pantanal Mato-grossense da sub-bacia hidrográfica do rio Paraguai. Aliás, fisiograficamente, esta paisagem não passa de um Subsistema do Sistema Biogeográfico do Cerrado. Neste local, na época das águas, formam grandes e pequenas lagoas marginais, algumas são perenes, mas outras, principalmente as menores, quando vem o período de estiagem, elas começam a secar. Quando cheias, estavam recheadas de vidas, que com a estiagem agonizam à medida que o processo de seca aumenta. Como o fundo é argiloso, em função do processo de sedimentação lento, muitos animais, na ânsia da sobrevivência, se misturam ao fundo argiloso da lagoa, até que toda a água se evapora. O mesmo processo de decomposição acontece, pela ação das bactérias e, quando os gases saem por alguma brecha, o contato com o oxigênio provoca o fogo azulado. Nos pantanais, porém, a massa combustível é bem maior que nas outras, daí a possibilidade do fogo se alastrar pelas gramíneas nativas secas é também maior.

O fenômeno do fogo-fátuo constitui-se no primeiro mito indígena relatado no Brasil por José de Anchieta, e os índios o denominavam de Boitatá ou cobra de fogo. Alimenta também os diversos causos de assombrações nos sertões do Brasil. Atualmente, esse fenômeno adquire grandes dimensões, em função da construção de lagos artificiais. Na ânsia do represamento das águas para a formação dos lagos, apenas um baixo percentual das madeiras que têm valor comercial é retirado; aquelas sem valor são deixadas nos locais. Com o enchimento dos lagos, o processo de decomposição continua e o fenômeno do fogo-fátuo aumenta assustadoramente.

Era assim que funcionava o fogo no Sistema Biogeográfico do Cerrado!

Um fogo brando, leve, essencial para a manutenção da paisagem como um sistema.

Findo o ciclo da mineração no centro do Brasil, em função de múltiplas razões, os antigos mineiros apossaram-se das terras em volta dos antigos centros mineradores, com intuito de desenvolver uma agricultura e uma pecuária básica que pudessem alimentar a si e aos seus. Dessa forma, a pecuária antes de se transformar em intensiva e altamente científica e tecnológica foi praticada extensivamente à solta sobre as imensas pastagens. Tradição que iniciou em terras situadas no oeste do rio São Francisco, no gerais da Bahia e Minas.

Com a introdução em larga escala do gado indiano, especialmente a raça nelore, associada às técnicas de inseminação artificial, foi tomando proporções gigantescas a introdução de gramíneas exóticas nas áreas do Cerrado. Este fato aconteceu principalmente a partir da década de 1940, mas foi se aperfeiçoando, paralelamente ao desenvolvimento das técnicas agrícolas, a partir da década de 1970, já que se percebeu que as gramíneas nativas não dão sustentação para criações em larga escala. Dentro dessa perspectiva, foram paulatinamente sendo introduzidas as gramíneas exóticas para sustentar essa pecuária cada vez mais pujante, que se desenhava no Brasil. A primeira espécie a ser introduzida foi o capim-elefante (P. purpureum), de origem africana; depois veio o colonião (P. maximum), que, segundo alguns, inicialmente se disseminou pelas sementes que vinham grudadas nas roupas dos escravos e, assim sucessivamente, introduziu-se o Andropogon (A. gayanus), o Capim-gordura (M. minutiflora), o Jaraguá (H. rufa), todos também de origem africana. A partir da década de 1970, com a diversificação cada vez maior e com a expansão de fronteiras, foram introduzidas quatro espécies do Capim-Braquiária, também de origem africana o (B. decubens), o (B. humidícola), o (B. ruziziensis), e o (B. brizantha); todas essas espécies se adaptaram bem às condições dos espaços onde foram plantadas, claro que umas tiveram melhor adaptação, principalmente contra o ataque da cigarrinha e outros insetos, fato logo resolvido pelos potentes inseticidas desenvolvidos pelos laboratórios associados ao grande agronegócio.

A primeira consequência da introdução dessas gramíneas exóticas foi a perda da biodiversidade. Por serem severas, agressivas e invasoras, essas espécies logo se espalharam nos diversos ambientes de Cerrado, principalmente naqueles onde a claridade imperava, nos campos, no cerrado strictu-senso, no cerradão, nas veredas, nas orlas das matas, nos leitos e margens de estradas etc., modificando de forma radical a fisionomia da vegetação do Cerrado e influenciado na propagação de pragas antes desconhecidas.

Por não possuírem sistemas radiculares complexos, essas gramíneas não absorvem as águas das chuvas, da forma como fazem as gramíneas nativas; a consequência imediata é a diminuição da umidade do solo e dos depósitos de água subterrânea. Também têm ciclos anuais, ou seja, todo ano produzem sementes, que, logo após o amadurecimento, a planta morre, deixando uma montanha de talos secos, porque trata-se de espécies com alturas consideráveis. O manejo inadequado dessa massa combustível, e ainda o preconceito contra o fogo, fundamentado nas raízes religiosas da população, que confunde fogo com inferno, contribui para que jamais se entenda que o fogo é um dos elementos que compõem o meio ambiente. Dentro dessa perspectiva, em vários locais foram criadas as denominadas brigadas contra incêndios, que ao primeiro sinal de fogo correm para apagá-lo. Agindo com boa-fé, mas sem conhecimento das ecologias e histórias locais, as brigadas só contribuem para o aumento da  massa combustível, pois, a cada ano que passa, pela fisiologia dessas gramíneas, só aumenta o volume a ser queimado.

Um dia o fogo chega, pois o planeta é dinâmico, os fenômenos que aconteciam no passado continuam da mesma forma; portanto, o fogo pode chegar por causas naturais ou antrópicas ou pela associação das duas, e quando isso acontece o fogo se transforma em queimada prejudicial a todos e a qualquer forma de vida e ainda se torna incontrolável. Este quadro só reforça o que venho afirmando com relação ao Cerrado: na plenitude de sua biodiversidade, este ambiente não existe mais. E, se hoje o fogo aterroriza, amanhã muitos seres morrerão de sede, e a disputa dos humanos pela água será cada vez mais acirrada.

A introdução das gramíneas exóticas agressivas e invasoras por excelência, que deu o último empurrão para a desconfiguração do Cerrado, exige um plano de manejo adequado, quer seja utilizando do próprio fogo, em áreas e tempos alternados, quer seja limpando com máquinas as áreas com as macegas incendiárias.

E assim chegamos ao final de 2024. Estamos numa encruzilhada, temos que perseguir o caminho das aptidões, das vocações e do conhecimento. Certa vez, Teilhard  de Chardin, expressou em uma de suas magnificas obras: O passado é tudo aquilo que já é ultrapassado, a única descoberta digna de esforço, é a construção do futuro.