Descriminalização do porte de drogas é oportunidade para discutir relações sociais no Brasil

30 setembro 2023 às 15h02

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O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal é um tema polêmico e complexo, que envolve diversas dimensões da sociedade brasileira. Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que o problema das drogas no Brasil é grave e multifacetado, e que afeta tanto a saúde pública quanto a segurança e a violência. Segundo dados do Relatório Mundial sobre Drogas de 2020, o Brasil é o segundo maior consumidor de cocaína e crack do mundo, e o terceiro maior de maconha.
Além disso, o país é rota de tráfico internacional de drogas, o que alimenta o crime organizado e a corrupção. Estima-se que mais de 60 mil pessoas morrem por ano no Brasil por causas relacionadas às drogas, entre overdoses, homicídios, acidentes e suicídios, diz o relatório brasileiro sobre drogas.
Diante desse cenário, é compreensível que muitas pessoas defendam uma política de repressão e proibição das drogas, como forma de proteger a sociedade e os indivíduos dos seus malefícios. No entanto, essa abordagem tem se mostrado ineficaz e contraproducente em vários aspectos.
Em primeiro lugar, porque não reduz o consumo nem a oferta de drogas, mas apenas as empurra para a ilegalidade e a marginalidade, gerando mais violência e exclusão social. Em segundo lugar, porque criminaliza e estigmatiza os usuários de drogas, que muitas vezes são pessoas que precisam de ajuda médica e psicológica, e não de punição penal. Em terceiro lugar, porque sobrecarrega o sistema carcerário e o judiciário, que já são deficitários e ineficientes, com processos e prisões de pessoas que não representam uma ameaça à sociedade.
Nesse sentido, a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal pode ser vista como uma alternativa mais racional e humana para lidar com o problema. Essa proposta não significa legalizar ou liberar as drogas, mas apenas deixar de considerar crime o fato de alguém portar uma quantidade pequena de droga para consumo próprio. Isso não implica em incentivar ou tolerar o uso de drogas, mas em reconhecer que se trata de uma questão de saúde pública e não de segurança pública. A descriminalização também não impede que o Estado continue combatendo o tráfico e a produção ilegal de drogas, mas permite que ele foque seus recursos e esforços nas atividades mais danosas e perigosas.
Um dos argumentos mais comuns contra a descriminalização do porte de drogas para uso pessoal é que ela favoreceria ou facilitaria o tráfico de drogas, ao aumentar a demanda e reduzir os riscos para os traficantes. No entanto, essa hipótese não se sustenta na prática nem na teoria. Na prática, os países que adotaram a descriminalização não registraram um aumento significativo do consumo ou da oferta de drogas, mas sim uma diminuição ou estabilização desses indicadores. Na teoria, a descriminalização não altera a natureza ilícita do tráfico nem a repressão estatal sobre ele, mas sim a natureza jurídica do porte para uso pessoal. Além disso, a descriminalização pode até enfraquecer o tráfico ao reduzir seu mercado potencial e ao permitir que os usuários tenham acesso a informações e serviços de redução de danos.
A descriminalização do porte de drogas para uso pessoal já é uma realidade em vários países do mundo, como Portugal, Holanda, Espanha, Suíça, Uruguai, entre outros. Esses países têm adotado modelos diferentes de regulação e controle das drogas, mas todos têm em comum o fato de não criminalizar os usuários. Os resultados dessas experiências têm sido positivos em termos de redução do consumo problemático de drogas, da demanda por tratamento especializado, dos índices de violência e criminalidade associados às drogas, e do respeito aos direitos humanos dos usuários.
No Brasil, a questão da descriminalização do porte de drogas para uso pessoal está sendo discutida pelo STF desde 2015, quando foi iniciado o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4274. Essa ação questiona a constitucionalidade do artigo 28 da Lei 11.343/2006 (Lei de Drogas), que prevê penas alternativas para quem for flagrado portando droga para consumo pessoal. A alegação é que esse artigo viola os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da intimidade e da vida privada, ao interferir na liberdade individual de escolha sobre o próprio corpo.
Os votos até o momento defenderam que o porte de drogas para uso pessoal não deve ser considerado crime, mas sim uma infração administrativa, sujeita a sanções como advertência, prestação de serviços à comunidade ou medida educativa. Além disso, o ministro Barroso propôs que seja estabelecida uma quantidade máxima de droga que possa ser portada para uso pessoal, de acordo com cada tipo de substância. Essa quantidade seria definida pelo Poder Executivo, com base em critérios técnicos e científicos. O julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Teori Zavascki, falecido em 2017, e ainda não tem data para ser retomado.
A demora do STF em concluir o julgamento da ADI 4274 tem gerado críticas e questionamentos sobre o papel do tribunal na definição de políticas públicas sobre drogas. Alguns argumentam que o STF estaria usurpando a competência do Poder Legislativo, que é o órgão responsável por elaborar e aprovar as leis. Outros afirmam que o STF estaria sendo omisso e covarde, ao não cumprir sua função de guardião da Constituição e dos direitos fundamentais. Há ainda quem diga que o STF estaria sendo influenciado por interesses políticos e econômicos, que se beneficiam da manutenção do status quo proibicionista.
Sem entrar no mérito dessas acusações, é preciso reconhecer que o STF não é o único nem o melhor ator para decidir sobre a questão das drogas no Brasil. O ideal seria que houvesse um amplo debate democrático e participativo sobre o tema, envolvendo os diversos setores da sociedade civil, os representantes eleitos pelo povo, os especialistas e os próprios usuários de drogas. Esse debate deveria ser baseado em evidências científicas, em experiências internacionais e em valores humanitários, e não em preconceitos, em moralismos ou em interesses escusos.
No entanto, enquanto esse debate não acontece ou não avança no âmbito legislativo, o STF tem o dever de se pronunciar sobre a constitucionalidade das leis vigentes, especialmente quando elas afetam direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Nesse sentido, o julgamento da ADI 4274 pode ser uma oportunidade histórica para o STF contribuir para a mudança de paradigma na política de drogas no Brasil, reconhecendo que a criminalização do porte de drogas para uso pessoal é inconstitucional e ineficiente, e que existem alternativas mais justas e eficazes para lidar com essa questão.