Opção cultural

A política, no senso de Arendt, nada tem a ver com a forma pervertida de ação comum por influência e pressão de pequenos grupos; depende, sim, da convivência humana para estabelecer relações e criar novas realidades

Valdivino Braz*
Jingle bells! Jingle bells! Os sinos e as luzes de dezembro. A cidade e o homem. Boas Festas! Feliz Natal! E ali o menino Jesus perdido e perplexo ao longo da avenida central, congestionada pela “festa magna da cristandade”. As pessoas no vaivém e de loja em loja, feito formigas da felicidade. Ricas e faiscantes vitrines, repletas de variedades natalinas, mil coisas, mil maravilhas, brinquedos mil. Que tanto de brinquedo! O menino Jesus pretinho que se deslumbra, e logo se ressentindo do tempo que faz que não lhe dão um brinquedo de presente, qualquer um, qualquer presente. Oh, desde quando? Em verdade lhe digo, menino: desde que seu pai, seu pobre pai José, surpreendido pela polícia, quis fugir e levou a pior: o tiro pelas costas, bem no meio da nuca. O seu pobre pai, sem carteira de trabalho assinada, sem garantia nenhuma. O infeliz, o estigmatizado, o desgraçado seu pai, ó menino Jesus. O José lesado pela “sociedade organizada” — com efeito! —, e baleado na triste madrugada de todas as misérias sociais. E sua mãe, menino? Onde está sua sofrida mãe Maria? Afogada pela enchente que arrastou o barraco em que vocês viviam com os ratos, baratas, muriçocas e os piolhos da vida sórdida. E dela, de sua infortunada mãe, o corpo encontrado após o temporal; aquele corpo em pele e osso, dilacerado e cheio de água pestilenta; os olhos vidrados, escancarados para o céu do mundo-cão.
Jingle bells! Jingle bells! Tilintam as estrelas no céu, e não se trata de sininhos nas renas de Papai Noel. No céu se recortam feito rosetas de esporas de prata, e como se andasse a cavalo o bom Deus de quem tanto se fala. Ou lhe serão rosetas os olhos, com a fria forma das estrelas? No inferno cá embaixo, as filas aflitas, umas salas de ásperas esperas, umas falas de arestas, a cuspe ríspido. Na parede cinzenta, um patético deus de lata, a funilaria de uma grande farsa. A noite gelada. Hipócrates, dito “Pai da Medicina”, abjurado pelos hipócritas na portaria dos hospitais da madrugada, quando nas ruas os desvalidos de tudo abraçam cachorro e pedem socorro. Além de tudo, o insalubre esgoto, falto de saneamento básico, escorrendo a céu aberto, em meio aos casebres. Ao de sempre, o povo perrengue, doando sangue pro mosquito da dengue — faça sua parte, ou lhe faz o risco de morte.
E agora os sinos, os sons de dezembro, os pacotes, as luzes e os risos endinheirados; o verniz dos risos ricos às escâncaras; os dentes reluzentes, feito porcelana. Por outro lado, as bocas humildes e desdentadas da miséria, porque a pátria-mãe madrasta e o país-padrasto se acasalam e geram o futuro em berço de banguelas. E continua o menino Jesus a perambular pelas ruas, no labirinto absurdo. A cidade toda feita de neon, enfeites, fantasias. O vaivém da multidão diminuindo-se aos poucos, as lojas pouco a pouco se fechando. Ao fim, apenas o menino pretinho na solidão das ruas vazias. Noite feliz, noite de luz. Natal das crianças, Natal do Menino Jesus. Irônica música saindo das entranhas sublimes do órgão na catedral, na Missa do Galo. “Remordida do imo-senso (remorso de consciência), a putaria esgotada tateando por seu deus”, como dizia o escritor irlandês James Joyce.
Agora a Ceia de Natal, a hora da gula. Todos os apetites empanturrados, as tripas satisfeitas, os buchos à semelhança de barriga de mula. Os instintos ejaculados, pois que a data magna da cristandade é também um natal do peru, lato sensu. Depois é o silêncio da noite de dezembro. A noite fria, até porque o desencargo de consciência das primeiras-damas de Estado não agasalha o suficiente para tamanha carência de cobertores sapeca-negrinho. A bendita e compadecida esmola. Laus Deo (Louvado seja Deus). E agora uma chuvinha esfarelada, aspergindo a quietude das horas. As lâmpadas multicoloridas e melancólicas, penduradas nos fios. O pobre menino Jesus estendido na sarjeta, sob a marquise de um Banco, instituição financeira em cujos cofres se amealha dinheiro. E o filho da miscigenação de raças encolhido sob a marquise, feito um feto, rejeitado pelo útero social. Todo homem é igual perante Deus e a lei dos homens, sem qualquer distinção de credo, raça ou cor. Ah, que bonito! Amai-vos uns aos outros.
Jingle bells! Jingle bells! Cânticos de Natal retinindo nos metais da cidade sem alma; aços recurvos, bicos de harpias. Quando, Aurora, tuas harpas, teus olhos de ouro, teu cheiro de lápis de cor, teus lábios de amora madura? Aurora, Aurora, por que demoras? Batem os sinos e os pequeninos choram na cidade enferma, choram os meninos do abandono, choram os filhos da fome, choram. Batem os sinos, e agora vou bater nos rins de alguém, doa o que doer. Enquanto Aurora não vem, aborta-se o deus-menino prometido, enquanto pais e mães assassinam seus bebês e os anjos do mal dizem Amém. É Natal. A noite dos excluídos. E a Justiça... Pois é, a Justiça. Justiça dos homens e Justiça Divina. Desumana, criminosa desigualdade; altos salários com acréscimos (vantagens, privilégios) e zero à esquerda do salário mínimo, um crime. Enquanto isso, no Parlamento...
Nas casas da riqueza, a gula nababesca e o desperdício. Nas latas e sacos de lixo abastados, azedam as sobras de uma grande festa, de uma farsa cristã e canibal — “Este é o meu corpo”; já os cães de pedigree enfarados com a generosidade do desperdício. Boa noite, humanidade. Que o Natal lhes dê, a todos, um feliz Ano Novo. Que as luzes do Ano Novo iluminem as nebulosas consciências e os escuros corações. Que iluminem a todos nós, posto que não isentos da culpabilidade de cada um nisto que aí está: a humanidade que somos. Sórdidos. Somos todos sórdidos. E não há mesmo, reitere-se, nenhum inferno além da Terra, nenhum demônio além do homem. E se a esperança é a última que morre, como se diz, bem pode que se afoite e morra primeiro.
*Valdivino Braz é jornalista, escritor, poeta e crítico literário. O conto “A Sa(n)grada Família”, ora revisto e com ligeiras alterações, compõe o livro Morcegos atacam o vampiro, publicado em 2007.

Que 2025 seja um ano lindo e que a gente consiga tirar nossos sonhos do papel

*Abilio Wolney Aires Neto
Albert Einstein, um dos maiores gênios da humanidade, legou à história uma visão profunda sobre as conexões entre ciência, filosofia e espiritualidade. Sua famosa equação  revolucionou nossa compreensão ao demonstrar que matéria e energia são intercambiáveis. A ideia de que a matéria é “energia congelada” nos leva a reconhecer que o que percebemos como sólido e permanente é, na verdade, uma manifestação temporária de uma energia mais fundamental, ampliando nossa percepção do universo e da vida.
Essa perspectiva desafia tanto a visão materialista quanto a fé cega, comum em segmentos religiosos, como os neopentecostais radicais, que frequentemente se recusam a aceitar verdades científicas. Ao negar, por exemplo, a evolução ou as leis da física, esses grupos falham em reconhecer que as descobertas científicas não contradizem a existência de Deus, mas revelam a grandiosidade de Sua obra. Deus, afinal, criou as leis universais eternas que regem o cosmos, e a ciência é o meio pelo qual o ser humano desvela essas leis, honrando o Criador. Como disse Allan Kardec, “A fé inabalável é somente aquela que pode encarar a razão face a face em todas as épocas da humanidade.”
Kardec, o codificador do espiritismo, também introduziu o conceito do fluido cósmico universal, uma ideia que pode dialogar com as descobertas da ciência moderna. Segundo o espiritismo, o fluido cósmico universal é a essência primária e invisível que serve de substrato para tudo o que existe, tanto no mundo material quanto no espiritual. Ele é descrito como a matéria-prima fundamental criada por Deus, que, ao ser manipulada pelas leis naturais ou pela vontade divina, origina as formas e manifestações de energia e matéria que percebemos.
Essa visão encontra paralelo com a ideia de que a matéria é “energia congelada”. Ambas sugerem que tudo no universo, do físico ao espiritual, emerge de uma mesma fonte primordial. Enquanto o fluido cósmico universal seria a base de todas as transformações e manifestações do universo, a ciência moderna explora como a energia se transforma e organiza para formar tudo, desde partículas subatômicas até galáxias.
O fluido cósmico universal também dialoga com os fenômenos descritos pela física quântica. Em níveis subatômicos, a matéria parece surgir de campos invisíveis de energia e interagir de maneiras que transcendem nossa lógica clássica. Da mesma forma, Kardec aponta que o fluido cósmico universal permeia tudo, sendo maleável tanto às leis naturais quanto à ação dos espíritos superiores. Ele seria a ponte entre o físico e o espiritual, assim como a energia é o vínculo entre matéria e movimento no contexto científico.
Essa noção também enriquece o debate sobre os chamados mistérios da fé. Muitos aspectos espirituais, tidos como inexplicáveis, podem ser reinterpretados à luz do fluido cósmico universal. Fenômenos como curas espirituais, percepções extrassensoriais e mesmo a interação entre o mundo material e o espiritual podem ser vistos como manipulações ou manifestações desse fluido. Em vez de negar a ciência, o conceito se alinha à ideia de que as leis divinas são acessíveis à compreensão humana, ainda que de forma parcial e progressiva.
A frase atribuída a Einstein, “Deus não joga dados com o universo”, também se harmoniza com essa visão. Para Kardec, o fluido cósmico universal é regido por leis universais e imutáveis, criadas por Deus para manter a ordem e a harmonia do cosmos. Assim, o que parece caótico ou inexplicável é apenas reflexo de nossa limitação em compreender plenamente essas leis.
Ao integrar o conceito de fluido cósmico universal ao diálogo entre ciência e fé, percebe-se que tanto Einstein quanto Kardec buscavam desvendar as conexões mais profundas do universo. A ciência revela que a matéria e a energia são manifestações interligadas; o espiritismo amplia essa compreensão ao propor que essa energia primordial também é a base para as dimensões espirituais da existência.
Em última análise, a reconciliação entre ciência, fé e amor exige uma postura de abertura e humildade. Tanto o conhecimento científico quanto o espiritual são caminhos para compreender a essência do universo e a grandiosidade de Deus. O fluido cósmico universal, assim como o amor, une o físico e o espiritual, revelando que tudo está interligado por uma força divina que transcende o visível e o tangível. Quando aceitamos que ciência e fé são expressões complementares da mesma verdade, ampliamos nossa visão do mundo e nos aproximamos do divino, descobrindo que a essência da existência está tanto na matéria quanto no espírito, e que o amor é o elo eterno que os une.

*Abílio Wolney Aires Neto é Juiz de Direito da 9ª Vara Civel de Goiania.
Cadeira 9 da Academia Goiana de Letras, Cadeira 2 da Academia Dianopolina de Letras, Cadeira 23 do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás-IHGG, Membro da União Brasileira de Escritores-GO dentre outras.
Graduando em Jornalismo.
Acadêmico de Filosofia e de História.
15 titulos publicados

Observando um sabiá-laranjeira cantando dentro do Bosque dos Buritis, apanhei, em seu canto, que “os pássaros são intérpretes dos poemas de Deus”

Em seu último trabalho, publicado poucos meses antes de morrer, romancista norte-americano dá vida a alter ego em luto pela ausência da mulher amada

Palestra realizada na Academia Feminina de Letras e Artes de Goiás, por ocasião da comemoração dos 50 anos de Poesia de Gilberto Mendonça Teles

I
Ouvi o estouro de um trovão, longe.
Dezembro chegou com as águas da primavera, sujas de pólvoras.
Isso queima o lençol de minhas lágrimas.
Mas é Natal
e eu faço as contas.
Vamos lembrar que o céu construiu catedrais para os homens.
Vamos lembrar que há mais de dois mil anos, Cristo renasce e floresce
das fúlgidas cores da alegria.
II
Papai Noel,
o endereço humano morreu.
Os poderosos sugam
o suor dos humildes.
Estamos à deriva e reféns deste orbe de débeis mentais, (que transformam crianças em escombros fumegantes).
A fumaça dessas mortes vem do Oriente.
E é covardia demais
os homens sem diálogos
III
A minha cabeça é um tumulto. Chorar é teatro.
Então, vede: é Natal, e eu busco refúgio nos braços de Cristo.
A luz me faz voar pelos rastros da utopia.
A Canaã prometida é chão de hospício.
Desembarcamos no paraíso errado.
IV
É Natal, meninos. E eu faço as contas.
O velho barba de algodão já está entre nós, tilintando
a sua sineta de monarca das ilusões, todo chique, amoroso, atroando
o seu ôrrôrrô de é Natal, Feliz Natal…
da fulgência das vitrines para o sonho da garotada.
Haja bombons, de graça, abraços e brinquedos!
V
O tempo carrega o tempo.
O tempo me roubou o direito
de sonhar com pacotes de fantasias.
Sou homem – chão, e não compactuo com a religião que mistura o rabi da Galileia, com a máfia do dinheiro.
Deus é ninho de passarinhos na floresta de minha alma.
É Natal, meninos. Acordem!
E vamos aplaudir
o Príncipe dos pobres, que distribui virtudes,
pão e peixes, para os homens.
Deus pregado na cruz faz aniversário
sem leitoas e uísques.
V
É Natal. Eu sei. E nada posso.
O mundo anda perto de um holocausto nuclear.
Gabriel Nascente. Sala Albert Camus, 24 de novembro de 2024, tarde de domingo

Luís da Cunha Meneses, era o “Fanfarrão Minésio” nas “Cartas Chilenas”: um poema que satiriza a administração de Menezes, apontando-a como corrupta; antes de governar Minas, ele governou Goiás de 1778 a 1783

Livro de ensaios do escritor Hugo Almeida estuda a obra do romancista e contista pernambucano

Aleksandr Ieriomenko acabou no centro das discussões literárias ainda na metade da década de 1980. Dono de um estilo cético, jocosamente envenenado

A personagem Jane Eyre não deixa de ser o alter ego de Charlotte Brontë, que rompeu com as regras ditadas para a condição feminina, tanto na literatura quanto na vida real

“Noctâmbulos”, a obra poética de Renan Alves Melo, foi vencedora do Prêmio Literário Bolsa de Publicações Hugo de Carvalho Ramos 2023

A maternidade é solitária. Eu falei essa frase pra mim em voz alta outro dia enquanto amamentava o Matheus no quarto escuro ao som de uma música de ninar. Não importa quantas amigas mães você tenha. Não importa se a sua rede de apoio é maravilhosa e se seu marido, pai da criança esteja presente e faça o papel dele de forma exemplar. Ainda assim, a maternidade é solitária. Pode ser mais fácil, pode ser mais leve, mas lá no fundo da gente, é solitário. E eu não tô dizendo que é triste, nem que o cansaço é maior que o amor. Não. A minha maternidade é o meu maior sonho da vida e eu sou muito feliz, mas a maternidade é solitária.
Ah, Catherine, você super romantiza a maternidade. Sim. Eu amo ser mãe. Eu não gosto de lavar louça. Eu odeio tirar a roupa do varal. Mas se eu pudesse, eu brincava com criança o dia inteiro. Eu não lembrava mais como era ser mãe de um bebê. A Catherine de 25 anos é diferente da de 34. Agora são dois filhos e não mais um só. Demandas diferentes, necessidades diferentes, empregos que me exigem mais, mais contas, mais boletos. Meu marido é muito mais presente, mas a nossa casa agora tem três banheiros para lavar. Mudou tudo.
Há umas semanas, eu exausta, muito exausta, me vi tendo uma crise de ansiedade, respirando devagar, tentando me controlar e o choro entalado na garganta. A introdução alimentar é, pra mim, mais difícil que a amamentação. E agora eu tô tentando criar uma criança sem telas porque reeducar a mais velha pra ficar menos tempo no celular e na TV não tem sido fácil. Uma sensação de esgotamento, incapacidade e lentidão tomando conta de mim. No desabafo com uma amiga ela disse a frase que tá me movendo: “Amiga, pra alguns dias, só outro dia”.
Um guarda-roupas lotado de roupas que não me servem. Calças largas depois de perder 14 kg, blusas sem botão que não servem para amamentar, vestidos lindos que não permitem um peito à mostra. Falta grana pra comprar roupa nova, falta ânimo pra arrumar um cabelo ou passar uma maquiagem, falta vontade de sair de casa e sobra um imenso desejo de passar o dia num pijama. Minhas amigas estão correndo, trabalhando, indo a eventos, organizando festas e churrascos, e confraternizações e eu só quero ficar no meu quarto, amamentar uma criança com calma, deixar ele comer sem as pessoas pressionando para vê-lo abrir a boca e engolir colheradas de comida. Tem dia que são duas colheres, gente, E tá na média.
Cecília de férias. Num dia eu vou na piscina com ela e no outro eu fico implorando pra ela brincar, pra ela sair do celular, pra ela olhar o Matheus enquanto eu faço cocô, enquanto eu lavo a louça, dobro a roupa, preparo o jantar, termino um texto. Eu sou sortuda. Tem muita gente querendo ajudar, mas lá dentro é como se a mente funcionasse na velocidade normal e o seu corpo não conseguisse acompanhar. Na minha solitude, eu tento só aproveitar cada minuto porque eu sou geminiana, eu tenho uma sede imensa de viver as coisas, eu gosto de ter o controle. Ser mãe muda tudo. Absolutamente tudo.
A boa notícia é que eles não serão bebês para sempre. Vão demandar diferente, serão nossos amigos, vão dividir a conta do restaurante com a gente um dia. A má notícia é que eles crescem e com a experiência da primeira, eu sei que vou sentir falta desses olhinhos que me olham como se eu fosse o mundo inteiro, a pessoa mais importante do universo. É cansativo, é solitário, mas é incrível.

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