Opção cultural

“O Último Concerto”, dirigido pelo cineasta Yaron Zilberman, é um pequeno grande filme que discute valores (e arte, e amor, e a vida) de forma delicada e sem ser piegas embalado por música emocionante

Geraldo Lima Especial para o Jornal Opção Morar próximo à natureza tem seu preço. É romântico e saudável, mas tem seu preço.Normalmente esse “morar próximo” significa invadir o habitat natural de algumas espécies de animais. Somos nós, seres humanos, os invasores em todos os casos. Por mais que tenhamos boas intenções e ideias preservacionistas, ainda assim somos invasores. A natureza dispensa nossa presença. Ela basta a si mesma. E, quanto for preciso, ela vai nos cobrar por esse espaço que lhe foi subtraído. Agora mesmo, mal começou o mês de outubro, trazendo as primeiras chuvas, eis que uma horda de besouros “Onthophagus taurus” da ordem Coleoptera, conhecido vulgarmente como “besouro rola-bosta”, procura a todo custo invadir a nossa residência. Buscam, ansiosos e persistentes, gretas nas portas e janelas que lhes permitam ganhar o interior da casa. Vêm atraídos pela luz. O gesto é fanático e suicida. Amanhã estarão todos mortos, geralmente de pernas pro ar, numa demonstração trágica do quanto lutaram pela vida na frieza da cerâmica. Embora saibamos que esses insetos não representam nenhum perigo à nossa saúde, nos sentimos incomodados com sua presença — eles, como kamikazes, chocam-se contra a parede, estatelam-se no chão, giram ruidosos em volta da lâmpada, tiram a nossa concentração, obrigam-nos a ficar de portas e janelas cerradas, e, vez ou outra, ouvimos o estalar de um deles sob a sola dos nossos calçados. Minha esposa, por pouco, não juntou um desses bichinhos frenéticos ao cozido de carne e batata. Para outros povos isso seria só um ingrediente a mais, mas não é o nosso caso. Disse que nos sentimos incomodados com a presença desses insetos. Para eles, com certeza, a recíproca é verdadeira. Aqui estamos nós, na divisa com uma reserva ambiental, trazendo incômodo e sedução fatal para esses pequenos seres em busca de acasalamento. Esse é o momento em que as larvas saem da terra, já como besouros, para se reproduzirem. Poucos indivíduos da espécie alcançarão, no entanto, o seu objetivo. Dizem as pesquisas que setenta por cento deles morrem, ficando a cargo dos trinta por cento que sobrevivem a responsabilidade da procriação e preservação da espécie. Sabendo disso, tento fazer a minha parte para ajudá-los: procuro sempre devolver os invasores à escuridão da noite, onde a luz artificial não funcione como armadilha. Sei que o gesto é meio inútil, alguns já nem têm mais forças para voar. Jogo fora, na verdade, seres sem vida. Como não posso ir dormir assim, cercado de cadáveres, procuro alívio para minha consciência na teoria darwinista da “seleção natural das espécies”, dando-me conta de que a natureza acha, assim, seu modo de se manter em equilíbrio. Geraldo Lima é escritor, dramaturgo e roteirista.

Escrito em estilo fluente e elegante, solidamente embasado em documentos, publicações e depoimentos — além de uma excelente iconografia — “Getúlio: Da Volta Pela Consagração Popular ao Suicídio (1945-1954)” é percorrido com o interesse de um thriller de ficção dramática

Quase 60 anos depois do assassinato da família Clutter, imortalizado por Truman Capote na reportagem literária mais famosa de todos os tempos, o clássico “A Sangue Frio”, a cidade de Holcomb, nas planícies do oeste do Kansas, parece condenada a um luto infinito

Rafael Teodoro
Naquela manhã de domingo o telefone tocou e tocou e tocou. Ele estava ao lado do aparelho. Mas hesitava em atender. Tinha medo de que se repetisse a noite anterior.
Sim, uma noite de sábado, céu limpo, clima quente. Uma noite inofensiva como qualquer outra não fosse por um pequeno detalhe: naquele dia eles completavam doze meses de namoro. Ele então pega o telefone e liga para ela. Animado, quer conversar mesmo sem ter assunto. Achava que ela não lembraria da data. Era estranho dizer isso, mas ele sempre havia sido mais atento aos detalhes da relação, aos pequenos detalhes, aqueles que fazem a vida sair da banalidade tão comum. Um desenho de coração num caderno, uns versinhos escritos apressadamente, uma caixa de bombons, as flores... Ele preparava tudo com o esmero de um confeiteiro que despeja a cobertura sobre um bolo de aniversário para alguém muito especial. Esse alguém era ela.
Ele só queria vê-la feliz.
Todavia, ela não parecia valorizar tanto aqueles pequenos gestos. E assim, do outro lado do telefone, naquele sábado quente e silencioso, ele escuta uma voz sem nenhum entusiasmo carinhoso. Ele ouve uma voz fria e indiferente.
Dura, seca, de partir o coração.
No diálogo que se seguiu ela cobrava satisfações. Fotos compartilhadas, recados em redes sociais, conversas com colegas de trabalho... Tudo era motivo de aborrecimentos. Por vezes, mui arrogante, ela deixava-se envaidecer e cobrava dele um pedágio pela passagem na sua vida. “Se soubesse que tu eras assim, não me interessaria...” Pronto. Agora ele se sentia qual um estelionatário a enganá-la. E, no entanto, ele nunca a enganou.
Ao telefone, ela tornava a falar com um ar de despeito, como se a doação do amor não fosse entrega, e sim caridade. Como se tudo o que viveram até ali — as declarações, os presentinhos, os abraços, os beijos, os planos para um futuro juntos — não significasse nada. Tudo o que ela via eram os seus desejos, as suas vontades. Egoísta, ela queria controlá-lo.
Quanto de ciúmes havia naquilo ele não sabia. Talvez fosse uma faceta escura de um amor tão puro entre grandes árvores azuis, prenhes de frutos podres que principiavam a cair. Ou talvez fosse o temor que acomete quem ama com tanta intensidade que prefere matar a perder. E aquelas brigas, aquela hostilidade gratuita, súbita, inexplicável, feriam o coração dele. E o amor ia morrendo aos pouquinhos, afogado na desconfiança.
Ele só queria que ela se libertasse do seu passado. “Eu já esqueci”, ela dizia. Dizia não porque fosse mentirosa, mas porque achava que pudesse enganar a si própria. No fundo, queria amenizar a dor que a consumia ante a lembrança de outros homens, homens que a fizeram transitar pelas sendas perigosas da raiva e do ódio. Os mesmos homens que a usaram um dia, que a ludibriaram, que fizeram da sua sensibilidade uma ponte para o desespero humilhante de quem confia e é traída, de quem se entrega para o amor e se percebe quedar junto à armadilha da frialdade mais abjeta — na qual se homizia a triste figura dum coração de pedra. Altiva, ela não aceitava que seu passado era uma prisão da qual ela ainda não pudera se desvencilhar. Era um fardo que ela carregava como um medalhão sobre o peito, que resplandece o brilho túmido duma cegueira branca que terminava por turvar a visão de todos à sua volta. E começava a matar até mesmo o amor, perdido que estava num labirinto de suspeitas e dúvidas.
Naquela noite, então, depois de ouvir tudo o que ela disse, pela primeira vez em 12 meses de namoro ele duvidou. Pela primeira vez, após todas as crises, ele se viu balançar, vacilar no sentimento para o qual ele não havia posto obstáculo — e entregara-se completamente. Erguia-se pouco a pouco um muro com os tijolos do cansaço e da desesperança. Ao final da construção, ele temia seriamente que ela não pudesse mais ver os momentos felizes, o desenho de coração num caderno, os versinhos escritos apressadamente, a caixa de bombons, as flores... Nada! Nem um instante de alegria na memória, nem uma gota de carinho num oceano de mágoas. Absolutamente nada. Pela primeira vez ele teve medo de se afogar.
Inconformado, sabia que os fantasmas do passado perseguiam-na. Ela insistia em negar. Eles haviam prometido um ao outro experimentar o novo, recomeçar do zero, só nós dois, por Deus, eles juraram! Mas ela continuava perdida no terreno pedregoso das lembranças antigas, irresoluta e desconfiada. Sem perceber, ela não via que o terreno ficava próximo a um mar de entulhos; que as lembranças eram como pedras amarradas ao corpo daquele amor que se tornava cada vez mais pesado. Ela prendia o sentimento dele e o lançava contra as ondas daquele mar revolto, indomável, cruento, cheio de entulhos. O sentimento ia se afogar. Os fantasmas do passado agora surgiam redivivos, transformados com a face do ceifeiro, que os vinha buscar para a morte, enquanto o amor estilhaçava moribundo.
Ele só queria entender por que ela o maltratava, por que essa desconfiança imotivada, esse receio possessivo, tanta infantilidade! Por quê? Se ela havia sofrido tanto e, como ele, desejava se libertar, por que não acreditar naquele amor? Por que não se dar essa chance?
Naquele momento, ele compreendeu finalmente que estava a ser processado. Era réu de um crime que não tinha perpetrado, pecador de um pecado que não havia cometido. Ele era o culpado de forma sumária, sem direito a um julgamento justo.
Pena. Ela não via que ele não era o criminoso, o pecador, o bufão que se aproximava para humilhá-la outra vez ao brincar com seus sentimentos. Na sua cegueira branca, ela não entendia que o amor que ele dava a ela era santo, pois oferecia a redenção. Era uma porta que se abria no presente para um futuro de felicidade — uma felicidade que ela certamente nunca tinha sentido. E que ela própria, ensimesmada, sabia não ser possível sentir com mais ninguém. Porque aquele sentimento era puro e sacro; não vinha para consumi-la na maldade terrível da perfídia velada; vinha, isto sim, para retirá-la daquele quarto escuro solitário, onde ela se trancara desde tempos imemoriais para a vida. Ele queria resgatá-la. Oferecia-lhe sua mão. Infelizmente ela estava cega. Não queria aceitar.
Naquela noite de sábado, pela primeira vez ele desligou o telefone. E pela primeira vez não sentiu mais vontade de ligar. Logo ele, que sempre quis conversar com ela, dedicar a ela suas melhores palavras! Ele sabia que alguma coisa estava errada.
No domingo, quando tornou a si após sair da imersão em pensamentos que o remetiam à noite anterior, primeira vez em 12 meses de namoro ele hesitou em atender ao telefone. Não sabia se ela telefonava arrependida, se queria se desculpar. E temia o contrário: que ela tornasse à sua ira, que descontasse a sua raiva injustificável, enquanto queimava na fogueira dos ciúmes mais pueris. Então pela primeira vez ele sentiu medo de acabar. Sentiu um medo absurdo de que ela não tornasse a si, que não vislumbrasse os riscos do caminho que ela trilhava. Era um caminho sem volta, decerto. Ele só não sabia se ela queria parar por ali e voltar a cultivar o amor.
Por isso, enquanto o telefone tocava insistentemente, ele olhou de novo para o aparelho. O barulho irritava-o. Ele já se via compelido a tomar uma atitude. Que faria? Ignorá-la seria covardia. Mas ele sabia que, se a atendesse, aquele poderia ser o momento derradeiro duma história de amor tão bonita. Ou talvez não! Talvez fosse justamente a oportunidade de que precisava, a conversa que permitiria a ela entender que não devia ocupar-se com miudezas, e que não era justo puni-lo por faltas que ele não protagonizou, que não era correto expiar os sofrimentos passados nas costas de um inocente. Talvez. Só talvez ela então percebesse o óbvio: que os 12 meses que passaram juntos haviam sido os momentos mais felizes da vida dele.
E foi nisso que ele acreditou, quando, vencendo a hesitação do início, tomou em mãos o telefone e decidiu dar a si próprio uma última chance de viver aquele amor.
Rafael Teodoro é advogado e crítico de música e literatura.

Com uma visão do amor, dos sonhos, das utopias, dos sentimentos, da solidariedade, enfim, de valores tão refratários nesse terceiro milênio, Miguel Jorge não se intimida nem se aniquila diante da “ambiguidade das facas”, numa atmosfera em que nos sentimos como num campo de disputas

Sinésio Dioliveira
Conto dedicado à minha amiguinha Bárbara Toledo Gomes, de 9 anos
Curiolando vivia feliz como todas as aves que moravam numa pequena floresta. Todas despreocupadas com semear, segar e recolher provimentos para os celeiros. Por lá o Pai celestial ainda as sustentava. A floresta era cortada por um ribeirão repleto de peixes. Suas águas eram tão límpidas que era possível ver os peixes com facilidade. Lambaris e piaus predominavam por lá. E por isso eram presas fáceis dos martins-pescadores, socós, tuiuiús...
Nessa floresta viviam também saracuras, jaçanãs, garças diversas, tizius, coleirinhas, bigodinhos, canários-da-terra, sabiás-do-campo, almas-de-gato e outras muitas aves.
Certa vez, já quase no fim de uma tarde de novembro, em plena primavera, Curiolando teve uma surpresa desagradável. Ao buscar comida nos pendões de capim para seus dois filhotes de duas semanas, pousou num galho seco. Achou o galho diferente, mas, como dar comida para seus filhinhos era algo mais urgente, Curiolando nem teve tempo de observar direito onde havia pousado.
O galho seco estava entre os pendões de capim, num lugar ideal para facilitar o recolhimento das sementes de capim. Ele sentiu seus pés presos ao galho. Assustado, tentou voar para escapar. Só que não conseguiu e ficou preso de cabeça para baixo, batendo as asas barulhosamente. Daí a poucos instantes apareceu um homem correndo e desprendeu os pés de Curiolando do galho seco e o colocou dentro de um alçapão. Desesperado, ele se debateu nas laterais do alçapão em busca de liberdade, a ponto de sangrar o bico. O homem, um vendedor de passarinhos, capturou Curiolando com visgo de leite de jaqueira. Não era um galho propriamente, mas um pedaço de ferro simulando um.
Depois disso, Curiolando nunca mais viu seus filhinhos nem a mãe deles. Foi levado embora para bem longe da floresta da qual tanto gostava. A viagem foi muito sofrida: algumas horas de ônibus dentro de uma caixa de madeira cheia de compartimentos e com alguns furos nas laterais dos compartimentos. Os furos eram para entrada de ar e assim as aves transportadas não morrerem. Essa caixa estava dentro de uma mala também furada mas de modo discreto. Alguns pássaros acabaram não resistindo à viagem, mas Curiolando sim.
Curiolando acabou sendo vendido, e seu destino foi morar na cidade grande. Ele, que tinha uma floresta para viver, acabou aprisionado numa minúscula gaiola que, durante o dia, ficava pendurada na parede de uma área e à noite o dono a recolhia para dentro de casa.
Foi quase um ano engaiolado. Após alguns meses, Curiolando acabou cantando, mas não da maneira feliz como era na época da liberdade. Ainda assim seu canto deixava o homem que o comprou orgulhoso. Seus chilreios eram ouvidos ao longe, inclusive chegaram aos ouvidos de um gato pardo, que acabou localizando o curió. A partir de então, o felino passou a desejá-lo como refeição e passou a observá-lo de longe.
Numa certa tarde, já beirando as 17 horas, o homem teve uma crise de hipertensão. Sua mulher, então, desesperada, chamou um táxi, e os dois foram
para o hospital. O homem estava tão mal que nem se lembrou que Curiolando tinha ficado na área.
Isso foi a oportunidade de o gato realizar o seu desejo. Chegou silenciosamente. Foram dois pulos inúteis sem alcançar a gaiola, mas no terceiro sua pata dianteira esquerda acertou a gaiola, que se soltou do prego na parede. Na queda, a travinha da porta acabou se quebrando e, no desespero do acontecimento, Curiolando acabou achando a porta aberta. O gato ainda tentou pegá-lo, saltando sobre ele, assim que Curiolando levantou voo, mas em vão.
Voou por alguns minutos. Pousou na copa de um angico bem alto de uma praça. Permaneceu por lá alguns instantes até se recuperar do susto e ganhou o céu novamente. (Talvez em direção à floresta onde vivia feliz!)
Sinésio Dioliveira é escritor e jornalista.

“Poemas Apócrifos de Paul Valéry Traduzidos por Márcio-André” encontra, a partir de textos heterogêneos em termos estéticos e de proposta de escrita, tonalização perfeita para causar maravilhamento

“Um Novo Dueto” soa como uma análise sóbria, delicada e convincente da natureza complicada do adultério
O livro “O Difícil Exercício das Cinzas” mostra um poeta em plena forma, inteiramente seguro de sua identidade e com a “angústia da influência” sob controle

Ultrapassando a ideia de que quilombo se configura meramente como uma área delimitada e habitada por descendentes de escravos, a Associação Brasileira de Antropologia propõe pensar quilombo a partir de práticas de resistência e experiências que constroem uma trajetória comum, sem a necessidade da construção de um espaço propriamente demarcado

Eberth Vêncio
Especial para o Jornal Opção
Não costumo escrever a respeito dos meus destinos de viagem para não parecer mais presunçoso e metido a besta do que penso. No duro: não sou de vomitar cruzeiros all-inclusive, de me deixar fotografar ao lado de uma centenária torre francesa enferrujada. Melhor seria fazer um selfie com a septuagenária La Belle de Jour. É líquido e certo: Catherine Deneuve e o Rio de Janeiro continuam lindos.
Mesmo assim, vou contar: há pouco, estive no Peru e curti uma viagem repleta de paisagens estonteantes, bucólicas, picos monumentais, piscos inebriantes e mais de mil caçarolas de mate-de-coca para suportar a altitude. O maior barato que consegui ao encher a lata de chá foi incrementar a diurese. Nem de longe fui capaz de enxergar políticos honestos montados em unicórnios a sobrevoarem a atmosfera mística de Machu Picchu. Essas coisas — os políticos honestos — simplesmente não existem.
Duas constatações deixaram-me incomodado por lá. Número uno: o trânsito louco, descortês e caótico, no qual ninguém mais parece se afetar com a irritante sinfonia das buzinas que, de tão corriqueiras, tornaram-se ineficientes. Todos buzinam, mas ninguém dá a mínima. Prevalecem os mais impetuosos, a despeito da segurança dos transeuntes: o povo ziguezagueia entre os carros como se fosse um formigueiro.
Número dos: a malandragem dos taxistas. Não sei por que cargas d’água, os táxis de Lima e Cuzco não possuem taxímetro. Assim que pisei em solo peruano, fui alertado por um guia turístico a ficar velhaco em relação aos taxistas (não somos brasileiros assim tão espertos quanto o resto do mundo imagina). Ele me ensinou a identificar os automóveis oficiais, a fim de não contratar os serviços de um meliante qualquer, e acabar parando num bairro ermo com o cu na mão e uma pistola na cabeça.
A corrida deveria ser negociada ainda na calçada, antes de sentar o meu traseiro verde-amarelo no veículo. Negociação inglória, desigual, sujeita a tapeações, pelo simples fato de, evidentemente, eu não conhecer as distâncias e, portanto, não ter como prever os valores a serem pagos com Nuevo Sol. “Não há nada de nuevo nisso”, foi um grande amigo meu quem me consolou ao garantir que malandragem de taxista é um fenômeno pandêmico, uma artimanha desagradável que prevalece em vários países do mundo, em particular, na América Latina. Isso sem falar nos escritores malandros, nos médicos malandros e nos leitores malandros. É uma simples amostra de como o ser humano pode ser inconveniente aos projetos do Criador. Quem mandou criar? Agora, guenta!
Reclamar dos pecadinhos peruanos, que a mim pareciam tão familiares — afinal, em matéria de malandragem, somos “hors concours” no planeta — é apenas um lépido exercício de chatice da qual sou especialista, embora não me orgulhe nem um pouco disso. Frequentemente acordo com aquela vontade danada de ficar correndo atrás do próprio rabo. Não tem nada de engraçado. É uma lástima.
Então vamos mudar o rumo desta crônica e afirmar que a minha jornada gastronômico-cultural pelo Peru foi irretocável. Caminhar em meio às ruínas do povo inca em Machu Picchu foi o ponto máximo da jornada, o destino mais esperado. Muito mais do que física, a viagem foi mental, instigante, certamente potencializada pela paisagem místico-exótica, além da atmosfera levemente asfixiante proporcionada pelo ar rarefeito.
É fácil viajar na história, nas explanações detalhistas de guias turísticos tarimbados e com formação acadêmica apropriada. Enquanto o fole pulmonar mendigava por oxigênio na altitude, eu me entregava à benfazeja letargia neuronal para viajar também nas famigeradas asas da imaginação, e relembrar os despachados conquistadores espanhóis chegando àquelas plagas longínquas, invadindo territórios, saqueando ouro, dizimando gente, dominando tudo, enfim. É constrangedor notar que, ao longo dos centenários antecedentes de crueldade, dominação e medo, o pendor pela conquista seja ainda uma constante no ser humano.
Apreciar aquelas ruínas incas foi um momento mágico, mas arruinou também a minha paz e tirou da cartola uma consciência que parecia muito mais pesada que toda a pedraria que, um dia, sabe-se lá de que forma, uma destemida legião de homens e mulheres cismou em carregar para o topo das colinas, a fim de se protegerem dos riscos naturais, como os sismos, os pumas e os homens malvados de outras paragens.
Mesmo sofrendo com penhascos e desfiladeiros (sou um acrofóbico esforçado em busca da cura), consegui controlar o temor alguns minutos, ao ponto de me sentir tão tranquilo que parecia factível pular no vazio, bater as asas e voar para dentro da vida ideal. Efeito de hipóxia cerebral? Excesso de pisco nas veias? Talvez, sim. Me senti mais miserável que o normal ao imaginar que numa determinada época da história, uma civilização pouco compreendida pelos homens de hoje preencheu de vida e ilusões aquele amontoado de pedras que os atônitos turistas agora fotografavam.
Tudo na vida tem um final. Até esse texto possui um. Enquanto eu me dirigia ao aeroporto de Lima, fiz ao taxista amigo as corriqueiras perguntas que os turistas sempre fazem. Dentre elas: como é que os incas conseguiram levar para o cume das montanhas aquelas rochas enormes. “Eran los dioses los astronautas?”, eu perguntei num apalermado e plagiador portunhol. Com paciência, bom humor e nenhuma malandragem, o taxista com cara de índio disse-me “los hombres nunca dejan de soñar com las estrellas”.
Apertei sua mão, tomei um Dramin, e embarquei me borrando de medo dos homens e dos aviões. Mais dos homens do que dos aviões. Se for um taxista, então, nem te conto.
Eberth Vêncio é escritor e médico.
via Revista Bula

Stefan Zweig ao escrever seu ensaio “Erasmo, grandeza e decadência de uma ideia”, em 1928, talvez pressentisse que já traçava, de certo modo, o seu perfil e o destino que iria cumprir

Ao lado de informações pouco conhecidas sobre a vida de Eça de Queiroz, o livro de Campos Matos traz vasta e preciosa iconografia, além de reflexões críticas que permitem uma visão aprofundada do percurso ideológico do escritor, da repercussão da sua obra e da sua figura pública entre os contemporâneos