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Na moenda da cidade grande

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Vazios modernos

“Amores, Truques e Outras Versões”, de Alex Andrade, acompanha uma caçada por prazeres vulgares, na qual a tecnologia serve de motor para o abismo de sentimentos

O imaginário conveniente (parte 1)

Em “Caminhos de Goiás”, o historiador Nars Chaul procura desconstruir os conceitos de “decadência” e “atraso” para caracterizar o desenvolvimento do Estado

Florinda, a beata

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José Fernandes

Florinda entrou pela porta lateral da Matriz de São José de Botas e ajeitou-se à frente do primeiro ban­co, próximo à nave. Contrariando a es­pécie, não se deitou ou demonstrou qualquer constrangimento por encontrar-se em meio àquela multidão. Acompanhou a missa com o rabo espichado, revelando-se senhora de seu ato, como se aquele evento religioso fizesse parte de seus hábitos. Executava os mesmos movimentos dos fiéis. Levantavam-se; ela se levantava. Sentavam-se; ela se sentava. Padre José Paiva, compenetrado no rito e no ritual da transubstanciação, não lhe sentiu a presença. Á hora da consagração, ela abaixou a cabeça. No momento da pronúncia das palavras de poder e transformação, ergueu os olhos, como se também dissesse “Senhor meu e Deus meu”. Só não trazia um ramo às mãos, a despeito de tratar-se de missa de Domingo de Ramos.

Ao término da cerimônia eucarística, sem que a ninguém incomodasse, colocou-se ao lado, próximo à porta, aguardando os fiéis se organizarem na procissão que percorreria a Praça Cônego Pinto, Rua do Rosário e retornaria à Matriz. Tudo pronto, ela se pôs atrás dos fiéis, como a observar a ordem das filas e a sentir melhor a repetição do rito que lembrava o ontem cristão. Ao retornar, procurou adaptar-se ao novo espaço à frente do altar, posto que as crianças, portanto ramos às mãos, em atualização daquele gesto primeiro, dispuseram-se entre os bancos e a mesa do sacrifício. Ao longo do percurso, entretanto, encontrou um ramo no chão, certamente perdido por alguma beata distraída, ou por alguma criança traquina, recolheu-o entre os dentes e caminhou com ele, como se sua posse fosse imprescindível à consumação daquele ritual.

Finda a cerimônia, cada um voltou à sua casa. Creio que poucos se deram pela sua presença e por aquele fato inusitado. Mas, durante toda a Semana Santa, ela acompanhou todos os gestos que trazem à memória o trágico acontecimento da morte de Cristo. À cerimônia do lava-pés, ela se postou ao lado das personagens que representavam os apóstolos. Portava um olhar indefinido, expressão de curiosidade e de quem desejasse também ter os pés lavados, a fim de purificar-se de alguma mácula invisível, sequer desconfiada pelos humanos. Na procissão do Se­nhor Morto, enquanto Verônica can­tava e desenrolava a efígie do Cris­to coroado de espinhos, ela ga­nia baixinho, fazendo coro a alguns fiéis mais emotivos, certamente arrependidos de seus pecados. Houve quem risse do inusitado e quem se contristasse a pensar que ela trouxesse alguma mensagem do além. No domingo de pás­coa, após a missa, deitou-se em meio à calçada entre a casa de Ro­bson e a de Elias. Dava a impressão de que aguardava algum pedaço de chocolate ofertado pelas crianças, felizes por haverem encontrado o ninho do coelho.

A partir daquela semana, em todos os eventos religiosos da cidade, Florinda se fazia presente. Não se sabe como ela sabia dos horários e dos lugares em que eles se realizariam. Chegava, à hora exata, às missas, inclusive quando elas foram transferidas para a igreja de Nossa Senhora Aparecida, em decorrência da reforma por que passou a Matriz. Em dias de novena, como a que se faz por ocasião da Senhora Peregrina, ela ia à casa dos componentes do grupo, religiosamente. Acom­pa­nhava o terço, sem incomodar quem quer que fosse, e se retirava, ao final, quase sem ser percebida. A cidade já se acostumara com sua presença, e até havia quem visse nela a reencarnação de alguma alma penada a pagar os seus pecados. Houve até quem arriscasse algum palpite, nomeando pessoas que, segundo se relatava, assombravam porteiras, capoeiras e encruzilhadas. Os pelos furta-cores de Florinda propiciavam ilações relacionadas com algum falecido, pois conferia, à noite, uma tonalidade espectral, além de seus uivos chorosos em noites de lua-cheia.

O tempo propiciou-lhe co­nhecer todas as pessoas da cidade e, inclusive, saber-lhes os hábitos, pois, em uma missa de sétimo dia, a que as irmãs Timim compareceram, a fim de homenagear a amiga de infância, Ernestina Fernandes, Florinda as recebeu com alegria esfuziante. Ao contrário de outras ocasiões, fugiu inteiramente ao ritual de condolências próprios das missas de réquiem. Parecia dar-lhes as boas vindas, já que as via, pela primeira vez, a participarem de um culto religioso. Entrou pelo meio dos bancos e lhes pulou aos colos. Quase lhes beijou as faces. Mas, tudo de forma muito educada, como se soubesse até onde deveria expandir a sua satisfação. Os olhos dos fiéis, mesmo daqueles mais concentrados na celebração, caíram sobre elas. Não houve quem não deixasse escapar um risinho maroto, não sei se pela simpatia das Timim, ou se pelo comportamento inesperado de Florinda.

Mas a religiosidade de Florinda não se encerra na frequência às missas. Dispunha de um faro especial para cerimonias religiosas. Não se sabe como, bastava que alguém pensasse abrir as portas da Matriz, que ela já estava por ali, à espera do acontecimento. Duas semanas após a Semana Santa, faleceu Antônio Pedro. Era uma quarta-feira, e não havia nenhum culto, à tarde. Todavia, o passamento do avô do Padre José Paiva requeria missa de corpo presente, com todos os ritos propícios aos mortos. Aberta a porta lateral, ao lado direito, Florinda entrara junto com o sacristão. Quando Padre José chegou, ela, discretamente, aguardava a chegada do cortejo fúnebre. Assim que a urna mortuária chegou, colocaram-na sobre a essa. Assim que os familiares tomaram seus assentos, Florinda sentou-se ao lado da essa, como que entristecida pela próxima ausência eterna daquele ser humano.

Normalmente, cachorro entra na igreja porque encontra a porta aberta e, quase sempre, sai logo, porque as pessoas, discretamente, dão um jeito de vê-lo longe do templo. Com Florinda, talvez em decorrência de sua discrição, ninguém se incomodou. Por isso, manteve-se ali, encolhida, durante a missa e, depois, na realização da benção do corpo. Na sequência, aguardou que todos saíssem para, em um gesto inesperado pelos presentes, acompanhar o féretro até o cemitério. Saiu pela porta da frente, como todos os acompanhantes, a fim de não desorganizar o cortejo e, pareceu-me, em sinal de respeito, pois sair pela porta lateral implicaria interromper os passos do falecido à casa dos tempos. Cultural_1885.qxd

O cortejo seguia a passos lentos, como se todos estivessem retardando aquele momento imponderável de separação. Os filhos, tantos; os netos e bisnetos, inúmeros; e os amigos colhidos ao longo dos longos anos. Se o féretro parava por momentos, Florinda mantinha-se à distância, sem misturar-se ao grosso do povo, talvez receosa de que alguém a molestasse, embora parecesse acreditar ser aquele o seu lugar, pois estava curiosa por ver como ocorria a despedida definitiva de um humano.

Um dia, à tarde, agoniada, corria em volta do templo à procura de uma porta aberta. Em pouco tempo, via-se o féretro subindo a rua do meio. Ela, imediatamente, correu ao encontro do cortejo e, à frente, dirigiu-se à igreja. Entrou e postou-se próximo à essa, aguardando que, nela, alojassem o caixão. Ao choro dos familiares, começou a ganir em tom agônico o passamento de Antônio Feliciano, morto na fazendo de Antônio Belo, perto de Arco Verde.

Terminado o ritual das exéquias, ministrado pelo Padre Geraldo, àquele dia, aguardou os acompanhantes do féretro porem-se em movimento, para iniciar sua tarefa de guia até o cemitério. Lá, guiada por algum instinto ou por algum espírito dos mortos, dirigiu-se, como que magnetizada, ao túmulo da família. Posto o ataúde no chão, ouvia as palavras do orador, como se as entendesse, porque, a cada palavra de expressão doída, em decorrência da passagem do amigo por ele proferida, parecia-lhe dilacerar o corpo, em uma dor de real confrangimento. À reza do réquiem, fechou os olhos, a fim de se pôr em comunhão com o falecido e, sobretudo, com o Senhor dos mortos, para que recebesse com a alegria de amigo aquele que fora ceifado da vida.

Assim que saiu das dependências do cemitério, porém, seu comportamento macambúzio e discreto converteu-se em alegria, ao perfilar-se com Beijinho. Pulava e corria para lá e para cá, ao seu redor, como se lhe fizesse uma festa. Ele, que a via pela primeira vez, não entendia aquele carinho; ainda mais quando ela, erguendo-se, rapidamente lhe deu verdadeiro beijo na face. Essa cadela deve estar me confundindo com alguém aqui da cidade. Nunca vi um animal me fazer tanto carinho; nem o Tupi, que viveu, até morrer, na fazenda, e me ajudava a juntar o gado no pasto. E olha que eu o tratava como se fosse alguém da família, tamanha a amizade que nos devotávamos. Estou até constrangido, no meio dessas pessoas que só conheço de ver pelas ruas da cidade.

— Florinda gostou de você, compadre Beijinho! Será o que ela viu em você? Deve ser o cheiro do Cambalé que você trouxe na barra das calças. Ele não lhe acompanhou pelo pasto hoje?

— Pode ser, compadre Cas­simiro. O fato é que não estou gostando dessas intimidades! Nunca vi esse animal antes!

Duas semanas se passaram, quando Florinda, em uma manhã de sábado, acho que 14 de agosto, postou-se à porta do cemitério, ao aguardo da chegada do coveiro. Acompanhou a abertura da cova naquela parte mais sinistra, em que se não veem túmulos. Horácio estranhou que ela não se encontrasse, como sempre, nas proximidades da matriz de São José. Ao ver o féretro vindo dos lados de Arcoverde, correu e pôs-se à frente dos poucos acompanhantes, a guiá-los ao local exato em que se procederia ao sepultamento. Era Beijinho, assassinado no capoeirão de João Pinto por Adão Bento!

Diferentemente dos outros enterros de que Florinda participara, ela não demonstrou aquele semblante soturno e contristado e nem aquele comportamento discreto que lhe possibilitou conquistar a simpatia dos habitantes de Alto Rio Doce. Parecia alegrar-se com a morte daquele amigo de poucos minutos, conquistado há apenas duas semanas; mas respeitou a mansão dos mortos. Porém, assim que se viu fora de suas dependências, pôs-se a saracotear em frente de José Belo, num verdadeiro ritual de saudação à amizade. Zé Belão, assim chamado pelos amigos, ficou vermelho, ao ser distinguido entre os participantes do cortejo com aquelas manobras de carinho. Será que ela sentira em mim o cheiro do Botuca? Cachorro é um animal muito estranho. Apenas vi essa cadela assistindo a algumas missas. Nunca me aproximei dela, e nem ela de mim, e ela vem me assediar hoje. O pior é que pula no meu peito e me suja a camisa. Já corre na cidade que ela previu a morte do Beijinho. Eu, heim!

Semanas depois, Zé Belão sentiu-se sufocado. Era meia-noite, na roça, sem condução para ir à cidade. Andava pra lá e pra cá, dentro de casa, sem pegar no sono. Seu irmão, Ângelo, chegou a vê-lo naquele estado. Deu-lhe um calmante, na esperança de que ele dormisse, para, no outro dia, levá-lo ao médico. Mas ele fora categórico: minha hora chegou. Pela manhã, Ângelo, ao dirigir-se ao seu quarto, encontrou-o morto. A notícia logo chegou à cidade. Elias, ao saber do ocorrido, ficou ressabiado, pois presenciara o ritual celebrado por Florinda, dias antes. O enterro, entretanto, seria em Arcoverde, no túmulo da família. Todavia, assim que o coveiro começou a subir o morro que demanda aa cemitério, a fim de providenciar a abertura do túmulo, deu com ela à porta da igreja. Ela encontrava-se ali para chorar a morte. Credo! Se essa cadela vier pro meu lado, vou dar-lhe uns pontapés. Sai de mim coisa ruim!

Ninguém a viu voltar à cidade. Mas, na missa de sétimo dia, celebrada pelo Padre José Paiva, lá estava ela, contrita, a fazer coro aos amigos de Zé Belão. Lembro-me bem de que, a despeito de a igrejinha de Arcoverde encontrar-se lotada, ela entrou pela porta lateral, do lado da casa paroquial, e ficou ali, à frente, próximo aos familiares do falecido. Deu uma olhada para Floripes e Alípio, mas não os incomodou. Terminada a missa, saiu discretamente enquanto os amigos cumprimentavam, com sofridos pêsames aos irmãos de Zé Belão: Ângelo e Conceição. Mas, comentando mais tarde o ocorrido, em uma roda de amigos, Edith, Cátia, Cristina e Adair disseram-nos que, no mesmo dia e horário, ela estava no sepultamento e na missa de sétimo dia do Padre Geraldo.

Jose Fernandes é escritor, crítico literário e doutor em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Amnésia histórica: mal das ditaduras

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Poemas que leio, poetas que admiro: Sylvia Plath

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Vem, vamos voar daqui. Lá do alto dá pra ver como somos pequenos

[caption id="attachment_20085" align="alignleft" width="620"]Foto: Artchive Foto: Artchive[/caption]

André J. Gomes Especial para o Jornal Opção

Ah… pessoa amiga, essa vida tem de tu­do. Tem risos e choros, brigas e tréguas, a­chados e perdidos, secos e mo­lhados. Tem quem ganha e tem quem perde, quem encontra e desencontra. Tem tanto medo provocando nossas coragens! Tanta dúvida, tanto “só Deus sabe”, tanto Amém para pouca reza. E entre tudo isso estamos nós, caminhando nossos altos e baixos, na vida que tem mesmo de tudo um pouco. Mas é certo que, de quando em vez, esse pouco vira muito ou, no mínimo, mais do que a gente aguenta.

Nessas horas, eu tenho uma sugestão: vamos sair daqui! Tanta confusão não pode nunca fazer bem. Vê quanta vontade de tristeza? Quanto desejo de dor? Essa frieza acalorada, esse abafamento gritado, esse gelo queimando no ventre. Olha quanta gente buscando o desencontro, quanta disposição para a guerra! E o barulho? Quanto barulho! Vamos deixar isso para trás, para baixo. Vamos para longe. Vamos voar daqui.

Segura a minha mão. Aperta forte. O solavanco da subida assusta, sobressalta, mas é só no início. Depois acalma, tudo se ajeita. Logo estaremos lá em cima, no silêncio manso e morno, voando sobre o tumulto.

De lá, à distância, veremos as coisas em justa perspectiva. E assistiremos a nós mesmos assim como somos: pequenos seres desesperados, perdidos em miudezas, carregando suas migalhas, trombando uns nos outros, juntando farelos para sabe-se lá o quê.

Assim, mirando do alto nossa vida aqui embaixo, pensaremos serenos sobre a distância, as faltas e as sobras, os nós e os dós. Um vento forte cortará as emendas de nossa pele e fará gelar aqui dentro uma saudade funda de tanta alegria rara que vem e vai. Ainda que lá no alto, deslizando acima de nossas obrigações terrenas, doerão em nós as tantas vezes em que deveríamos perdoar ou pedir perdão e decidimos não fazê-lo.

Então buscaremos lá de cima, correndo os olhos aéreos pelos desenhos divertidos das árvores e lagos e plantações e estradas de terra, em algum lugar cá no chão, os perdões que perdemos no caminho. Sonhando a hora certa de cada um deles brotar com alegria de planta nova.

Para longe desse quiproquó que entope as ruas de lixo e ódio, você e eu nos encontraremos na lembrança da alegria de ter os amigos perto, e de sermos aqueles a quem os amigos procuram na falta e na sobra. Juntos, suspeitaremos a eternidade do instante de um abraço esperado.

Veremos do alto tantas casas cheias de vazios, suas paredes clarinhas que o tempo escurece de fumo e mofo e ressentimento, como a inocência apagada de pancadas e mágoas. E logo ali, vê? Ali, sentada sobre os telhados, olhando longe, reconheceremos nossa incapacidade de falar na hora certa sobre o que nos parece errado, aplaudindo comovidos os seus gritos para o nada.

Lá das alturas, olharemos a beleza dolorida dos velhos na janela e suas vistas embaçadas de lembranças. Sentiremos o grandioso amor das criaturas pequenas e seus fragores ligeiros, inesperados, instantâneos. Veremos as pessoas reduzidas a sua vontade enorme e irrefreável. Riremos com a alegria inocente dos cachorros, das crianças e das almas simples que praticam a amizade, o amor e a gratidão.

E então um arrepio nos congelará por dentro quando notarmos a esperteza dos que vivem à espreita, sucumbidos à sua própria maldade, camuflados como mariposas turvas de ódio posadas nas paredes do estômago, aguardando seu tempo de esvoaçar raivosas pelas vísceras de um mundo atormentado.

Nessa hora, aperta a minha mão mais forte. Segura firme. Será o tempo de voltarmos ao chão. Porque há muito que fazer aqui. Nossa vontade de alegria, nosso desejo de amor, nossa inclinação para o encontro precisam de terra firme e boa para arraigar e florescer. É nesse barulho, nessa guerra que eles encontram sentido. Mas agora, para vermos tudo isso em merecida perspectiva, você e eu precisamos sair do alvoroço.

Vem, pessoa amiga. Vamos começar de novo. Vamos voar daqui para ver, lá de cima, o quanto somos pequenos. Po­bres seres rasteiros em busca de um amor que nos leve mais longe. Vem. Vamos voar daqui.

André J. Gomes é escritor e publicitário.

via Revista Bula

Lançamentos

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Memórias de um lutador

Mesclando memórias e análises sobre origens e os desdobramentos do golpe militar de 1964, o ex-governador de São Paulo José Serra narra sua trajetória de filho único de um imigrante italiano vendedor de frutas no mercado de São Paulo ao batismo de fogo como presidente da União Nacional dos Estudantes, de exilado político na França e no Chile ao pesquisador de prestígio de um dos mais respeitados centros acadêmicos do mundo: a Universidade de Princeton

Gertrudes e seu homem

cultural3Augusta Faro

As amarguras de Ger­tru­des doíam na alma tropeçante de quem parasse um pouquinho só pa­ra observá-las. Havia um sorriso de penumbra sempre lhe embaçando o olhar cor de chuva, de tormento, de desvairo e de profunda solidão.

Gertrudes apareceu na cidadezinha assim como sarna surge, de repente, sem explicação. Chegou com sua maturidade acalmada, retinta de fogo morto, sobrando apenas cinzas fabulosas. Alugou a casa da viúva Eleonora, do seu To­más, aquele de olhar branco, com os cabelos grudados e que possuía um sorriso tão alto e cheio de estranha sonoridade, que espantava os passarinhos de todas as árvores da praça e os morcegos da torre da igreja de Nossa Senhora do Bom Parto.

Gertrudes montou seu “ateliê de costura” (como escreveu na placa rústica e simpática do portãozinho) e trouxe tecidos de cores primorosas e sem semelhança com outras co­res de uso acostumado. Esses panos passavam uma intranquilidade danada no espírito dos homens de todas as idades e um contentamento esfuziante no espírito das mulheres.

A freguesia cresceu como a brisa de maio, assim silenciosa e rápida, inflexível em sua presença, que rangia de tão cheia de frescor. Ger­tru­des, muito prosa, falava até espumar os cantos da boca e contava grandeza do amor de seu homem, e tocava a pianola, e dava corda nos relógios, e plantava lírios amarelos nos fundos da casa e girassóis no jardim. Mas as amarguras de Gertrudes iam atrás dela, de tão forte presença que se assemelhavam a vultos de espíritos num acampamento solene.

A sociedade amou rapidamente aquela mulher, que dizia com a bo­ca benta de paixão: “Meu ma­ri­do chegou de viagem tarde da noite, agora dorme. É viajante, não tem porto, o coitado. Ama o lar, mas a profissão o consome. Vamos falar baixo, pois, se ele a­cor­dar, fica ansioso o resto do dia”. Puxava a porta, trazia as bo­tinas sujas de lama para perto da ba­cia no corredor do jardim. A ma­la abria sobre duas cadeiras ao sol.

Todo mundo que frequentava o ateliê de costura, sempre ouvia as estórias de Romão, esse nome sempre envolto de onírico mistério ruidoso, palpável e, sobretudo, impenetrável. Ninguém nunca o vira, só si­nais do cavalheiro distinto que “es­tralava” de amores por Gertrudes.

Sempre um presente acompanhava o retorno daquele rapaz escalavrado de vítrea aura impermeável, e que sufocava o ambiente com um perfume de macho saudável, vigoroso e quase satisfeito plenamente.

E Gertrudes fazia bolos e broa, peta e biscoitos, rocamboles com frutas cristalizadas, tão perfumadas, e abarrotava de “quitutes” os guarda-comidas. Sempre ha­via dois pratos, dois copos, duas xícaras, duas chávenas, e as­sim por diante, na enorme mesa “antigona” e toda trabalhada, a­co­modada num salão, só para re­feições. A toalha rendada de branco céu e, em tudo por tudo, uma zelosa harmonia parecia dançar valsa naquele ambiente. O interior da casa sempre sóbrio, elegante e distinto, bonito de se contemplar.

“Gertrudes não é desse mun­do, gente!”, diziam as moças cheias de vida e encantadas com tu­do. Leninha jurou de pé junto que viu mais de uma vez seu Ro­mão atravessar o pátio dos lírios desesperados. E contava na praça: “Ele é lindo, altão, moreno claro, tem uns olhos tão verdes como uma folha de parreira nova. É per­fumado, o homem. Deixou no ar um cheiro tão bom, que nem dei conta de ir embora dali, até que o sol me queimou e, quando ar­deu minha pele, consegui sair andando. Ele tem as mãos longas e ma­cias. Deram-me calafrios. Quando cheguei em casa, tive fe­bre a noite toda. Esse homem veio do começo do mundo, gente!”

A aura do marido de Gertru­des crescia com fama audível, indomável. Seus cheiros, sinais, astros, marcas estavam por todos os cantos e cantoneiras da casa. A curiosidade de vê-lo era atiçada, fora de toda compreensão, quanto mais casos Gertrudes cantava de Romão. De como o conhecera, do dia do casamento, do filho que lhe morreu na barriga, porque um jacaré imenso apareceu rolando no limpo chão.

Esse dia, Gertrudes, entrecortada de dor, pensou que fosse morrer e engomou a mortalha que bordara em noites de espera de Romão. Inteiramente de vidrilhos cor de água, cor de espuma, em desenhos e arabesco geometricamente riscados e que, olhados de longe, imitavam uma biga com sete cavalos e um cavaleiro, como aqueles antigas que corriam nos primórdios dos tempos cristãos, na cidade de Roma, que, de tão conhecida, até pereciam-lhe os encantos.
Era sempre e sempre um martírio sem conta, de uma fundura custosa, aquele sofrido pelas senhoras e moças que visitavam o ateliê de costura de Gertrudes.

E ela voejava pela imensa casa como borboleta, sempre a fazer mil coisas. E, entre uma e outra, olhava-se no espelho e contava mais um caso, e revelava as noites de amor com aquele potro de legítima gentileza e incansável ternura.

No fim de pouco tempo, as pernas das adolescentes, das moças velhas e novas, das donas viúvas e das senhoras casadas tremiam só de pensar em ter de experimentar o vestido, de provar a saia plissada, ou verificar se o chapéu melancólico, mas cheio de luz, estava em ponto de prova satisfatória.

Quem andava com a alma cheia de musgo, zumbindo resignação dolorida de ciúme consistente, como aço, era cada marido, ou cada pai, ou cada irmão.

O perfume de Romão, sempre rarefeito, sufocava e parecia derreter os ossos e nervos das freguesas. E Gertrudes a contar suas noites afogueadas, mostrar os presentes e pedir mais silêncio, pois ele ressonava. Chegara novamente de longa viagem.

A agitação interior das meninas costumava provocar câimbras nos pensamentos delas, as coitadas, ouvintes das confidências pesadas de tão reais, fundindo o coração e a alma, resultando daí um caldo de angustiante desejo e curiosidade sem termo.

Às vezes, quando a ausência da viagem era maior, Gertrudes caía na cama, inapetente, pálida e, todas as tardes, chorava inclementemente, que toda a cidade começava a rezar para que a profunda amargura descesse o rio o deixasse a costureira sossegada. Mas logo chegava o moço, com seus assombros em brasa, seu perfume e paixão indecifráveis, seus suspiros que carbonizavam até planos e bordados. Os quatro cantos da cidade pareciam sacudidos por terremotos dolorosos de tanto carinho.

Ninguém nunca conseguia explicar o porquê da desatinada amargura que emanava sempre e constantemente da costureira Gertrudes, estando o nobre amo e senhor presente ou estando em suas obscuras ausências de ambulante, mascateando miudezas raras e curiosas.
Após mais de ano de tanto martírio, meia dúzia de aventureiras insalubres e desalmadas planejaram invadir o quarto do cavalheiro para vê-lo dormindo e em pelo, pele, suores e suspiros.

Isso, evidentemente, quando Gertrudes fosse às compras na feira do morro ou no mercado velho, onde costumava ficar horas piruetando entre as vendinhas, aproveitando um gole de café, e então contava as façanhas de seu amado distante ou presente bem dentro de sua alcova dominada pela penumbra e cheiro de céu.

Numa manhã cravejada de mau agouro, as meninas tomaram coragem e penetraram no imenso e silencioso recinto. O homem ressonava, coberto de linho puro todo bordado de rosáceas de seda. Bárbara de seu Tonico, o seresteiro afamado, acendeu a vela da cabeceira, enquanto as meninas, devagarinho, para não despertá-lo, foram lhe tocando os linhos com a leveza das mãos e das palavras. O resfolegar da serpente interior das fêmeas mugia solene naquela manhã calorenta e pasmada até a raiz das nuvens.

Com vagar e doçura, foram descobrindo o rosto, os ombros, o meio do corpo daquele homem moreno, fragilizado pelo sono, dormindo tão justo e casto. Até que, por fim, descobriram-no por inteiro, nu, repousando na beleza de um deus grego, tão silencioso como uma estátua perfeita e fascinante de um museu de Tróia.

Era o dia do fim do mundo. Ele, ali, verdadeiro e completo. A menor das moças, Ditinha de Sá Rita, tocou-lhe os lábios. Estavam frios como gelo. Assustadas, vieram todas apalpando os cabelos de seda, os ombros cheios de flores, o peito vigoroso de pelos lisos e dourados e os pés alvos e de perfeição rara de se ver. Ele estava ausente de alma? Habitaria naquele instante o mundo subterrâneo, levado pela “indesejada de todas as gentes?”

Não é possível! Abram as janelas, acendam luzes do alto, escancarem tudo para o sol chegar! O ar fresco, restolho da madrugada há pouco morta, entrou em cheio no aposento. E elas reviravam agora aquele homem acalentado tanto tempo em sonhos, cercado de intenso silêncio e fragilidade exposta.

Os minutos enfraqueciam nos relógios de toda terra, para chegarem a mais esquisita constatação: era um boneco de goma, espécie de uma borracha, perfeito dos perfeitos.
Com mãos trêmulas e úmidas de suores, abriram-lhe com tesoura o ventre delicado viril e incandescente. O grito soou rompendo tímpanos. Uma caixa mecânica incrustada no plexo solar, para que os suspiros, gemidos ali dormitassem cumprindo sua sina cronometrada. O resto era algodão com sementes, saindo aos borbotões. Os olhos de vidro, lindos, brilhantes e lacrimosos. As orelhas, lábios e língua feitos de matéria como uma borracha especial e macia. Gritaram até a outra madrugada chegar. A cidade acorreu em massa. Frei Lauro, o caolho, veio tropeçante em pura castidade, suando frio com roxo beiço tremido.

Depois de três dias de afobação tresloucada, sentiram falta de Gertrudes. Esvaziaram Romão, beijaram-lhe todas as partes, num misto ódio e amor, e o partiram em pedaços nobres e pouco nobres. O perfume no ar, e Gertrudes nunca aparecia. Cada qual pôde levar um pedaço para casa, nem que fosse uma unha, daquele sonho deitado acima de todas as compreensões. As trevas vieram em forma de aguaceiro sem nome, sem tempo, e provocaram mediana enchente, lambendo pontes e pinguelas.

Uma semana depois, na prainha, bem abaixo do matadouro, estava Gertrudes, perfeita como viva, abraçada com os agrados que buscara do seu amado. Eram colônias, sais de banho, presentinhos e enfeites, um anel de pedra lilás, tudo para Romão, homem de suas palavras diurnas e noturnas. Nada sucumbiu à chuvarada e nem à enchente.

Gertrudes guardou entre os seios e braços os presentes do viajante, tudo bem guardadinho, para aquele que havia voltado de mais uma viagem. Mas quem pegou a estrada dessa vez foi Gertrudes, não foi o cavalheiro amoroso. A alma de Gertrudes foi vista mais de uma vez; às vezes, tomava forma de uma pomba sempre esperta e fria.

O corpo em nada foi maculado, mas recendia aquela antiga amargura disfarçante, que ficou repousando por todos os recantos da cidade, vinda daquela mulher que parecia adormecida, na curva maior da prainha, coberta de violetas e solidão. Ninguém nunca esclareceu se a senhora Gertrudes teria morrido na hora exata em que descobriram e violentaram seu sagrado segredo, ou se aguaceiro lhe havia roubado a flor da vida.

Até o último momento, ao fechar o esquife, ainda possuía o frescor dos vivos, a tristeza de quem está partindo e a saudade desmesurada de um ente querido que perdera definitivamente.

Augusta Faro é escritora.

Good Vibrations e o punk irlandês

[caption id="attachment_19525" align="alignnone" width="620"]Richard Dormer, em cena de “Good Vibrations”, dirigido por Glen Leyburn e Lisa Barros D’Sa | Foto: Steffan Hill/Divulgação Richard Dormer, em cena de “Good Vibrations”, dirigido por Glen Leyburn e Lisa Barros D’Sa | Foto: Steffan Hill/Divulgação[/caption] Marcelo Costa Os anos 1960 na Irlanda do Norte foram bastante tumultuados. Ques­tões políticas e reli­gio­sas dividiram o país fortemente (protestantes contra católicos) culminando no trágico Domingo Sangrento, em 1972, quando o exército inglês matou 14 ativistas católicos em uma passeata. O surgimento do IRA (Exército Republicano Irlandês), uma dissidência do fortemente marxista Official IRA, colocou mais pólvora no cenário — ao longo de mais de duas décadas de luta armada, ocorreram mais de 3500 mortes. A história de Terri Hooley começa em 1948 em Belfast, com seu nascimento. Ainda criança, Terri é atingido por um dardo (arremessado por uma turma de garotos protestantes) e perde a visão de um dos olhos, sen­do obrigado a colocar um olho de vidro no lugar. Corta para o começo dos anos 1970: Terry, um apaixonado por música pop, se apaixona por uma garota, se casa e tem uma visão: salvar a alma dos irlandeses espalhando o reggae pelo país. Como? Abrindo uma loja de discos. Nasce a Good Vibrations. A loja de discos sobrevive a trancos e barrancos, mas tudo muda quando Terri, em meio a uma balada (e uma batida da polícia), assiste ao show da banda Rudi, cinco garotos que tocavam covers de rock and roll e glam rock que, influenciados por Sex Pistols e Buzzcocks, começam a compor material próprio. Ine­briado pelo show, Terri Hooley decide bancar o primeiro single do Rudi no que viria a ser o primeiro lançamento do selo Good Vibrations: o compacto “Big Time” é lançado em 1978. “Agora precisamos encontrar 3 mil compradores para o single”, diz o personagem em certo momento. O país seguia em quase guerra civil e Terri continuava lançando singles pela Good Vibrations: o segundo foi “Strange Thing By Night”, do Victmin, o terceiro foi “Just Another Teenage Rebel”, do Outcasts, e o quarto foi aquele que faria a fama de Hooley além de obter o respeito eterno do radialista e DJ londrino John Peel, que, ao vivo em seu programa na BBC, assim que tocou o single que Terri enviou pela primeira vez, avisou aos ouvintes: “Eu nunca fiz isso, mas a música é tão boa que vou tocar de novo”. A canção era o hino punk “Teenage Kicks”, dos Undertones. Tudo isso é apresentado ao espectador no filme “Good Vibrations” (2012), dirigido pelo casal Glen Leyburn e Lisa Barros D’Sa, e pouco comentado neste lado debaixo da linha do Equador (não entrou em cartaz no Brasil), um pecado porque “Good Vibra­tions” é uma deliciosa aula sobre punk irlandês safra 77, com uma trilha sonora empolgante e um retrato interessante de um personagem hippie fadado ao fracasso, mas que sobreviveu a todas as bancarrotas e segue tocando a loja (e arranjando brigas) aos 65 anos. Interessante que a história de Terri em muitos momentos lembra a de Tony Wilson, um dos caras responsáveis pelo lançamento de Joy Division, New Order e Happy Mondays, mas que também se importava mais com a arte do que com o dinheiro: se Tony tem o mérito de lançar um single do New Order cuja design o fazia ficar mais caro do que o preço que era vendido (e esse single, “Blue Monday”, bateu recordes de venda), Terri Hooley concorre com o concerto que fez na casa mais famosa de Belfast, que visava arrecadar fundos para a loja, mas que deu prejuízo porque praticamente ninguém pagou ingresso (“Terri, você tem a lista de convidados mais longa que eu já vi na vida”, diz um amigo). Exemplo interessante de homens levantando o dedo médio para o capitalismo, Tony Wilson e Terri Hooley tem trajetórias bastante parecidas, o que faz de “Good Vibra­tions” um primo próximo de “A Festa Nunca Termina” (”24 Hour Party People”, 2002). No caso de Terri, sua história de altos e baixos também vem costurada por uma trilha sonora empolgante, que além dos grupos lançados pelo selo (Rudi, The Outcasts, Undertones) ainda conta com Stiff Little Fingers (a grande banda do punk irlandês não saiu pela Good Vibrations), David Bowie, Suicide e The Saints, resultando num retrato interessante sobre uma bela cena musical e um país. Marcelo Costa é jornalista. Editor do Scream & Yell.

Amai-vos uns aos outros, mas só se for pra valer

Eberth Vêncio Especial para o Jornal Opção Não. Eu não quero um empréstimo con­signado. Eu não quero informações privilegiadas de um ex-diretor do Banco Central que atua no mercado financeiro. Eu não quero saldo ilimitado no cartão de crédito. Aliás, eu não quero que me enviem mais cartão algum com a primeira anuidade grátis. Eu não quero as menores taxas de juros do mercado. Eu não quero que você faça “aquele meio campo” pra mim durante a reunião. Eu não quero ser promovido a nada. Eu não quero investir na bolsa. Eu não quero que você traga uma Louis Vuitton do out-let. Eu não quero aproveitar a crise para comprar dólares. Eu não quero o telefone de contato do seu pistolão. Eu não quero curtir a vida adoidado, prefiro apenas viver. Eu não quero voar no jatinho do senador, nem que seja na poltrona da janela. Eu não quero comer a aeromoça. Eu não quero comissão nenhuma, é apenas um favor o que estou lhe fazendo. Eu não quero comprar uma apólice de seguro de vida. Eu não quero saber o que vem depois da morte. Eu não quero usar um trevo da sorte. Eu não quero morrer dormindo. Eu não quero ir pro céu. Eu não quero consultar um psiquiatra, nem me confessar com um padre (eu não quero que ele tenha ereções sob a batina, nem oscilações na fé, ao saber dos meus pecados). Eu não quero comprar assinaturas de revistas que me deixam alienado em suaves prestações. Eu não quero torrar grana em Miami. Eu não quero que você me ame por altruísmo. Eu não quero a guarda compartilhada de um amor que se acabou. Eu não quero me mudar do Brasil. Eu não quero ficar rico lavando latrinas para os nova-iorquinos. Eu não quero aprender mandarim, o idioma do momento. Eu não quero entrar no bolão da Mega Sena. Eu não quero ficar rico. Eu não quero saber de um segredo. Eu não quero acampar numa fila durante a Black Friday. Eu não quero almoçar amanhã com o governador no palácio. Eu não quero credenciais prum camarote VIP. Eu não quero prolongar os meus orgasmos, muito menos esticar o pênis (pelo amor de Deus, parem de anunciar o fim da calvície e enviarem spams por e-mail!). Eu não quero friccionar pomada japonesa na genitália de ninguém. Eu não quero massagens relaxantes, sem frescuras, para a minha satisfação total ou o dinheiro de volta. Eu não quero descabaçar uma virgem. Eu não quero explorar o ponto G de uma analfabeta afetiva. Eu não quero que uma cigana leia o meu destino antes de mim. Eu não quero alimentos que soltem o intestino. Eu não quero ficar musculoso, sexy e com boa aparência. Eu não quero ler Paulo Coelho na praça de alimentação do shopping. Eu não quero mais querer ser Carlos Drummond de Andrade. Eu não quero ser eleito para uma academia de vaidosos para passar o resto da minha mortalidade vestindo uma bata ridícula e tomando o chá das cinco com eles. Eu não quero atenuar as minhas rugas de preocupação e aplicar botox. Eu não quero o IPhone 6. Eu não quero um apartamento de cobertura em frente ao mar. Eu não quero me confraternizar com desconhecidos. Eu não quero saber o que disseram de mim no réveillon. Eu não quero fazer terapia para ser uma pessoa melhor e crescer como ser humano. Na verdade, eu não queria nem mesmo ser humano. Eu não quero aprender a desentupir a pia da cozinha usando Coca-Cola. Eu não quero parar de comer carne vermelha. Eu não quero discutir a relação. Eu não quero dar um tempo. Eu não quero dar conselhos nem mesmo para o surdo da porta da igreja. Eu não quero sentar na primeira fila para ter uma visão privilegiada. Eu não quero me aposentar o mais breve possível para poder aproveitar a vida. Eu não quero colocar aparelho nos dentes. Eu não quero sorrir quando sentir vontade de chorar. Eu não quero comprar o seu lugar na fila. Eu não quero pagar gorjetas numa repartição pública. Eu não quero dar um jeitinho na situação, seu guarda. Eu não quero saber em primeira mão o que você tem a dizer a respeito daquilo que não lhe diz respeito. Eu não quero autógrafos das celebridades. Eu não quero beijo de misse. Eu não quero me reconciliar com pessoas que não gostam de mim. Eu não quero fazer uma selfie comigo. Eu não quero parecer redundante. Eu não quero perguntar porra nenhuma pro palestrante, eu só estava me espreguiçando. Eu não quero ser hipnotizado no palco. Eu não quero blindar o meu carro e me sentir a salvo nesta cidade. Eu não quero aproveitar a nova isenção de IPI para comprar um carango zero com câmbio automático, trio elétrico, bancos de couro e dez anos pra pagar. Eu não quero lamentar a morte de quem me sacaneou. Eu não quero melzinho na chupeta, nem o amargo na boca. Eu não quero lisonjas. Eu não quero benesses. Eu não quero culpados. Eu não quero mais mentir. Eu só quero ser tratado com o mínimo de respeito. É só isso o que eu quero. Eberth Vêncio é escritor e médico

Decurso de quedas

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Thomas Mann e um grito de alerta antifascista

O mundo criado pelo nazifascismo era ao mesmo tempo antigo e novo, “revolucionário” e retrógrado. Nele os valores ligados à ideia do indivíduo, verdade, liberdade, direito, razão, ficariam inteiramente debilitados e rejeitados, assumindo um significado totalmente diferente do que tiveram nos séculos precedentes

Poesia em estado de graça

“Uma Voz e o Silêncio” é um livro que fala das várias faces do amor — entre esposos, entre pais e filhos, entre irmãos, entre cristãos — e fala também do sofrimento. Mesmo diante das vicissitudes, a poetisa não abandona a esperança, âncora que lhe dá firmeza e não a deixa à deriva