Amnésia histórica: mal das ditaduras
08 novembro 2014 às 09h30

COMPARTILHAR
Rotular de “comunista”, o I Congresso Nacional de Intelectuais que aconteceu em Goiânia em 1954, é uma forma de diminuí-lo, de estigmatizá-lo, de reduzir a sua importância histórica e sua abrangência para a nossa cultura. É uma forma de destilar intolerância política, mas, sobretudo, de tentar eliminá-lo da memória nacional, para relegá-lo ao limbo da história

Francisco Barros
Especial para o Jornal Opção
Escarafunchar o passado e dele retirar fatos que foram relegados ao limbo da história. Confesso que é um pouco esse o espírito que me move ao pesquisar sobre o I Congresso Nacional de Intelectuais que aconteceu em Goiânia de 14 a 21 de fevereiro de 1954. O evento, cuja abertura foi no Cine-Teatro Goiânia (fundado em 12 de junho de 1942, durante o Batismo Cultural da cidade), quase sempre é tratado de maneira superficial e não se dá a devida importância que ele teve. “Ah, é aquele encontro que teve a participação do poeta Neruda?”, é assim que pessoas influentes de nossa cultura se referem ao evento, quando não o desconhecem.
Mas vamos aos fatos. Esse Congresso foi um divisor de águas para a cultura goiana e de grande significado para a cultura brasileira. Diria mais: foi a nossa Semana de Arte Moderna (tardia, sim, mas foi quando tomamos conhecimento de nossos valores artísticos e estéticos). Mas, também, devido a sua extensão e repercussão, tanto territorial quanto histórica. Isso é fato pelas razões que passo a enumerar.
Pela primeira vez, fora do eixo Rio-São Paulo, uma cidade realizava um evento de porte nacional e internacional. Aqui estiveram delegações do Chile (e não apenas Neruda), Argentina, Portugal, Itália, Haiti, Costa Rica e Uruguai. O conclave reuniu poetas, escritores, artistas plásticos, cientistas, educadores, cineastas, juristas, teólogos, pesquisadores, folcloristas, musicistas, críticos literários, jornalistas e radialistas, entre tantos outros. Cerca de mil intelectuais de todos os Estados da federação assinaram manifesto de convocação do Congresso, que foi divulgado na imprensa do Rio de Janeiro, no mês de dezembro de 1953.
Figuras luminares da cultura brasileira deram o seu apoio público ao evento. Só para citar alguns nomes, para não cansar o leitor: escritores João Cabral de Melo Neto, Aníbal Machado, Joaquim Cardoso, Jorge Amado e José Geraldo Vieira, maestros Camargo Guarnieri, Guerra Peixe e José Siqueira, atrizes Maria Della Costa, Eva Todor e Ruth de Souza, escritor e cientista Josué de Castro, editor Ênio Silveira, teatrólogos Juracy Camargo e Procópio Ferreira, artistas plásticos Portinari, José Oiticica, Santa Rosa, Alfredo Volpi, Bruno Giorgi, José Pancetti, Djanira da Mata e Silva, críticos literários Aurélio Buarque de Holanda e Sérgio Milliet; e o cineasta Lima Barreto.
Do Estado de Goiás, assinaram o Manifesto, entre outras pessoas: a educadora Amália Hermano Teixeira, o escritor Bernardo Élis, o escritor Eli Brasiliense, o professor Joaquim Carvalho Ferreira (diretor da Faculdade de Direito de Goiás), os poetas José Décio Filho, José Godoy Garcia e Xavier Jr. (pres. da Academia Goiana de Letras), o engenheiro Geraldo Rodrigues dos Santos (pres. do Clube de Engenharia), o médico Luiz Rassi (pres. da Associação Médica de Goiás), o desembargador Maximiano da Mata Teixeira e o então jornalista Oscar Sabino (pres. do Sindicato dos Jornalistas de Goiás).
A expectativa que se criou em torno do evento era grande. Pretendia-se que o Congresso refletisse os anseios para o desenvolvimento independente da cultura brasileira. Havia quem nele depositasse a esperança de que conseguisse “elevar o nível cultural do nosso povo” e contribuir para a “preservação do tesouro artístico e cultural de nossos antepassados”, como se divulgou no jornal “Voz Operária” (fevereiro de 1954), que era porta-voz do então clandestino PCB.
O escritor Jorge Amado (que fez o convite para que o poeta Pablo Neruda participasse do conclave), foi um dos organizadores do evento, ao lado do poeta goiano Xavier Jr., então presidente da Academia Goiana de Letras. Amado saudou o Congresso como sendo uma “Festa da Cultura em Goiânia”. Este, inclusive, foi o título do artigo no jornal “Imprensa Popular”, de março de 1954, em que o romancista assinalou que o encontro serviu para “mostrar a possibilidade de união dos intelectuais brasileiros”.
É inegável a influência dos intelectuais comunistas sobre o Congresso e suas resoluções. Mas, efetivamente, não foi um evento de “comunistas”, tanto assim que uma matéria publicada no próprio jornal “Voz Operária”, chama atenção para a pluralidade, ao assinalar o seguinte: “Está claro que os participantes do Coingresso não terão pontos de vista comuns sobre o encaminhamento prático de muitas questões, e soluções desiguais serão defendidas com ardor. Isso, em lugar de diminuir a importância da reunião, pelo contrário, a engrandece”.
Mas não era assim que pensava os órgãos de repressão da época, que acompanhavam atentamente os passos de quem anunciava participação no evento. O Boletim No. 24, do DEOP (Delegacia Especializada de Ordem Pública) de Minas Gerais, no dia 2 de janeiro de 1954, descreve o seguinte: “Depois de permanecerem dois dias nesta capital, regressaram ao Rio os jornalistas Rubem Braga e Gentil Noronha, antigos militantes políticos de Belo Horizonte, do tempo da Aliança Nacional Libertadora”.
O DEOP prossegue com o seu informe: “Nesta capital (Belo Horizonte), mantiveram contatos com Otávio Dias Leite, Clemente Luz, Wilson Figueiredo e outros jornalistas e escritores comunistas ou simpatizantes comunistas, sabendo-se que o objetivo das conversas se prendeu ao Congresso de Intelectuais que vai ser promovido na cidade de Goiânia”. No dia da abertura, o DEOP registrou: “Instalou-se em Goiânia o I Congresso Nacional de Intelectuais, segundo nos informou o dr. Antônio de Faria Filho, delegado de Ordem Política e Social de Goiás”.
O informe é taxativo na sua análise sobre o perfil do evento. “Trata-se de uma entidade, isto é, um conclave puramente comunista, tendo a ele comparecido vários elementos comunistas desta capital, entre os quais o professor Santiago Americano Freire, jornalista Wilson Figueiredo, jornalista Clemente Luiz, o poeta Bueno Rivera e outros”. O registro da polícia política de Minas Gerais chega à seguinte conclusão: “Infelizmente, para presidente da delegação de Minas a esse falso congresso de intelectuais, foi indicado o desembargador e escritor Mário Matos, pessoa até agora insuspeita de participação das campanhas pró comunismo”.
É bom lembrar que estávamos na primeira metade da década de 50, do século passado, quando estava em marcha nos EUA o Macartismo, que provocou uma histeria coletiva, resultando numa implacável perseguição a milhares de artistas e intelectuais com inclinações para o pensamento de esquerda. O caso mais notório foram as retaliações contra o genial cineasta Charles Chaplin. A caça às bruxas só cessou em 1955, quando o senador Joseph McCarthy foi completamente desacreditado e ridicularizado perante a opinião pública.
Enquanto isso, no Brasil, com o PCB proscrito, os seus militantes, em pleno governo democrático de Getúlio Vargas (1950-1954), eram perseguidos e presos. Atuando nas sombras, os seus passos eram acompanhados nos mínimos detalhes pela polícia política. Havia situações que beirava a comicidade, como este informe do DEOP de Minas do dia 27 de fevereiro: “Foram lançados nesta capital (BH) pelos comunistas, alguns boletins confeccionados no Rio, de propaganda da Convenção Nacional de Emancipação Econômica e contra o refrigerante Coca-Cola”.
Quando os militares, com ajuda de civis, deram o golpe de 1964, uma das medidas adotadas foi confiscar documentos que atestassem fatos históricos. A sede da União Brasileira dos Escritores de Goiás foi invadida e todos os seus arquivos foram apreendidos, conforme me relatou o seu atual presidente, Edival Lourenço. Isso explica, em parte, porque se tem tão poucos documentos na entidade sobre esse tema no qual os escritores goianos foram protagonistas.
Rotular o I Congresso de Intelectuais de “comunista” é uma forma de diminuí-lo, de estigmatizá-lo, de reduzir a sua importância histórica e sua abrangência para a nossa cultura. É uma forma de destilar intolerância política, mas, sobretudo, de tentar eliminá-lo da memória nacional, para relegá-lo ao limbo da história. Resgatar os fatos que deram contorno ao I Congresso Nacional de Intelectuais de Goiânia significa recolocá-lo na linha do tempo e reafirmar a sua grandeza, bem como sua importância histórica e cultural, para Goiás e para o Brasil.
Francisco Barros é jornalista e escritor.