Opção cultural

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A Grande Guerra Patriótica das Mulheres

Svetlana Aleksiévitch trouxe à luz as dores e as intimidades das mulheres soviéticas que estiveram nos campos de batalha da Segunda Guerra Mundial

Em “1985”, Anthony Burgess anteviu a submissão do Ocidente ao Islã

Mais que uma “resposta” ao “1984”, de Orwell, o livro de Burgess parte de observações pessoais, concretas, da vida política e social da Europa dos anos 1970, para mostrar a incapacidade do Ocidente de preservar a sua própria civilização

Nada carnavalesca, playlist da semana inclui novidade e resgata diversos estilos

Eis mais uma Playlist Opção: temos desde a nova do Linkin Park até Massive Attack e Tricky, passando por Stone Temple Pilots, Beatles e muito mais. Confira! https://www.youtube.com/watch?v=lp00DMy3aVw   https://www.youtube.com/watch?v=mdrAdcxFB9c   https://www.youtube.com/watch?v=LlDC361onUs   https://www.youtube.com/watch?v=Lr5ltqQf1QA   https://www.youtube.com/watch?v=o0qyP1bA-ME   https://www.youtube.com/watch?v=QMhkdatUUPA   https://www.youtube.com/watch?v=ElvLZMsYXlo   https://www.youtube.com/watch?v=usNsCeOV4GM   https://www.youtube.com/watch?v=oAmnkPUFMHg   https://www.youtube.com/watch?v=hNByRhoycdc   https://www.youtube.com/watch?v=D5drYkLiLI8

Vamos ou não passar o carnaval no cinema? Sim!

[caption id="attachment_87979" align="aligncenter" width="620"] "A cidade onde envelheço" é o primeiro da programação | Foto: Divulgação[/caption] A programação de carnaval dos goianienses está repleta de opções, sobretudo para quem prefere ver um bom filme ao invés de ouvir (ou pular, seja lá como se diz) as marchinhas. Além da Mostra "o Amor, a Morte e as Paixões", que acontece no Lumière do Shopping Bouganville e que exibe uma centena de filmes (veja aqui), há também o Cine Cultura. Veja a programação de carnaval do Cine Cultura: "A cidade onde envelheço" - 15h (25 a 28 de fevereiro) e 16h (23 e 24 de fevereiro e 1º de março); "Sangue do meu sangue" - 17h (25 a 28 de fevereiro) e 18h (23 e 24 de fevereiro e 1º de março); "Belos sonhos" - 19h (25 a 28 de fevereiro) e 20h (23 e 24 de fevereiro e 1º de março). 1) A cidade onde envelheço (2017, Brasil, 99 minutos, 12 anos) Direção: Marília Rocha Elenco: Elizabete Francisca Santos, Francisca Manuel, Paulo Nazareth Sinopse: Francisca, uma jovem emigrante portuguesa morando no Brasil, recebe em sua casa Teresa, uma antiga conhecida com quem já havia perdido contato. Teresa acaba de chegar e vive momentos de descoberta e encantamento com o novo país, enquanto Francisca anseia por Lisboa. O filme acompanha as aventuras de cada uma pela cidade e a profunda ligação que nasce entre elas, obrigando-as a lidar com desejos simultâneos e opostos: a vontade de partir para um país desconhecido e a saudade irremediável de casa. 2) Sangue do meu sangue (2016, Itália, 107 minutos, 16 anos) Direção: Marco Bellocchio Elenco: Roberto Herlitzka, Piergiorgio Bellocchio Jr., Alba Rohrwacher Sinopse: No século XVII, Federico Mai chega a um monastério com uma missão: seu irmão cometeu suicídio e não pode ser enterrado em terreno sagrado, a não ser que sua amante, a irmã Benedetta, confesse seus pecados, salvando assim a alma do morto. Benedetta é submetida a provações e questionada pela hierarquia apostólica – enquanto Federico assiste. Nos dias de hoje, um homem russo deseja comprar o monastério onde Benedetta foi torturada. Ele encontra habitando o local um velho conde e uma mulher cujo marido desapareceu. 3) Belos Sonhos (2016, Itália, 134 minutos, 14 anos) Direção: Marco Bellocchio Elenco: Barbara Ronchi, Bérénice Bejo, Guido Caprino Sinopse: Massimo tem sua infância abalada pela misteriosa morte de sua mãe, a qual ele se recusa a aceitar. Anos mais tarde, após ter coberto como jornalista a guerra em Sarajevo, começa a ter ataques de pânico e é obrigado a reviver seu passado traumático enquanto se prepara para vender o apartamento dos pais. O longa é inspirado no romance homônimo de Massimo Gramellini. O Cine Cultura fica no Centro Cultural Marieta Telles Machado, na Praça Cívica e o ingressos podem ser comprados no local (somente dinheiro): R$ 8 a inteira e R$ 4 a meia.

Orquestra Filarmônica de Goiás inicia temporada no dia 16 de março com muitas novidades

[caption id="attachment_87976" align="aligncenter" width="620"] Orquestra Filarmônica de Goiás começa 2017 com novidades | Foto: Rafaella Pessoa[/caption] A Orquestra Filarmônica de Goiás tem firmado cada vez suas apresentações na agenda dos goianienses. Em muitos concertos, quem não chega cedo, não encontra lugar, o que é excelente para a cultura, pois mostra que a música erudita tem lugar em um mundo cheio de outras atrações. A Filarmônica de Goiás tem feito um bom trabalho ao levar sua música de qualidade à cidade, apresentando-se, por exemplo, em parques e com um repertório variado. É isso o que tem atraído cada vez mais o público e demarcado o espaço da orquestra, sobretudo em Goiânia, mas também no interior. Assim, para se programar. A temporada começa no dia próximo dia 16, às 20h30, no Teatro Goiânia, sob a regência de Neil Thomson, que é regente titular e diretor artístico da instituição. A entrada, como sempre, é gratuita. Neste concerto, serão apresentadas as seguintes peças: "Variations on America", do compositor americano Charles Ives; "O duende das águas", de Dvorák; "O Mandarim Maravilhoso", do húngaro Bartók e ainda "Water", do compositor e instrumentista inglês Jonny Greenwood, considerado um dos maiores guitarristas da era moderna. A temporada deste ano tem um tema: “Música que transforma”. A ideia da Filarmônica é proporcionar ao público momentos de leveza em um mundo turbulento, repleto de incertezas e de conflitos sociais e políticos. Além disso, neste ano, a orquestra continua com a missão de contribuir com a ampliação da música orquestral ao divulgar obras inéditas de autoria de compositores brasileiros. Tanto que a Filarmônica executará, pela primeira vez: “Música para orquestra nº 6”, do compositor goiano Estércio Marques Cunha;  “Noturno”, do jovem compositor Luiz Gonçalves, vencedor da 2ª edição do Opus I, concurso promovido pela Filarmônica; e ainda a estreia de “Concerto para Sixeen e Orquestra”, da compositora  Michelle Agnes. Obras nacionais de compositores já consagrados também terão seu espaço, caso de Nepomuceno, Francisco Braga, José Maria Nunes Garcia, Villa-Lobos e Guerra-Peixe. As composições deste último, inclusive, integram o 2º álbum da Filarmônica, que será lançado em julho. Contudo, os repertórios também contemplarão obras dos maiores compositores de música orquestral. Entre os destaques estão “A Sagração da Primavera” e “ O Pássaro de Fogo” de Stravinsky; a execução integral das suítes orquestrais de Bach; “Como una ola de fuerza e luz”, de Luigi Nono; o famoso “ Bolero” de Maurice Ravel; entre outros. Séries De Março à Dezembro, a temporada segue com a apresentação das séries Quinta Clássica, Concertos Especiais, Concertos para a Juventude, Concertos de Câmara, além das atividades complementares como as apresentações em parques, turnês nacional e estadual, concertos didáticos e ações profissionalizantes que visam valorizar e formar jovens músicos. A grande novidade desta temporada é a estreia da série de apresentações “Concertos Impopulares”, que apresentará repertórios contemporâneos inovadores. Para a execução desta série, a Orquestra contará com a presença da versátil soprano polonesa Alice Zavadzki, que vem ganhando reconhecimento internacional por mesclar elementos da música clássica com o jazz e o folk. Ao todo a Filarmônica realizará 40 concertos ao longo de 2017 e receberá 20 artistas renomados internacionalmente para participar dos concertos como solistas e regentes. Por meio de um sólido e bem definido calendário de apresentações, a Orquestra reafirma seu compromisso com a cultura goiana, proporcionando lazer, educação e cultura, por meio da música, de forma democrática.

O azul, o eu e a negatividade em “Água Anônima” e “Rio Revoando”, de Wesley Peres

“O homem derivado de suas águas está só e sozinho ele fala a esmo. Talvez fale movido apenas pelo prazer da errância e, por isso mesmo, ele fala como quem está literalmente à deriva" [caption id="attachment_87924" align="aligncenter" width="620"] Escritor goiano Wesley Godoi Peres | Foto: reprodução Facebook[/caption] Tiago Ribeiro Nunes Especial para o Jornal Opção Em Água Anônima (Goiânia: AGEPEL, 2002), livro de estreia de Wesley Peres, são traçados, em azul, os primeiros contornos da obsessão literária por “fixar as vertigens nas palavras”, com afirma o poeta Manoel de Barros, na quarta-capa do livro. Ao leitor dos poemas ali reunidos, não passará despercebida a assiduidade do termo. Serão dez, ao todo, as ocorrências desse significante ou de variações suas. Ao longo das três partes que formam o livro (Água, Lábios e Lábios de Água), sua distribuição é todavia desigual: duas na primeira parte, cinco na segunda e três na terceira. Mais equilibrado é certamente o efeito expressivo das imagens que veiculam o azul. Transportado para uma frase ou para um conjunto de frases, ele coloca em contato elementos dessemelhantes ou mesmo contrários entre si. Dessa reunião inesperada resultam estranhamentos. Suprimido o princípio lógico da não contradição, as paisagens cotidianas resvalam subitamente naquilo que nunca se viu. Assim, por exemplo, o mar se volatiza em azul e a impressão desse cheiro sentido em cor se reverbera polifônica, renovando um olhar já demasiadamente habituado à repetição de todos os dias: “Há um azul cheiro de mar agora/ há um cortante e horizontal chilrar/ sobre o meu olho prenhe de manhãs”. [caption id="attachment_87927" align="alignleft" width="300"] "Água Anônima", livro de estreia de Wesley Peres[/caption] Já em O infinito e seus arredores, a proliferação de imagens fluidas continua até desaguar na pergunta contida na pergunta: “quantas horas faz em você/ quando o violino de som amarelo/ flutua a concha de formas de uma mulher/ que me pergunta: Deus é azul?” (p. 95). Na imagem sonhada, o poeta viola, a um só tempo, a sintaxe comum e o mandamento religioso - infração sacrílega dos absolutos. Mais adiante, dois outros poemas e duas outras imagens escritas em azul: o curvilíneo “e azul cheiro de sal vermelho” (p. 103) da amada assim como os “peixes embolhados [que] rasgam o azul e vestem uma cordilheira de pássaros” (p. 137). Revela-se, em ambos os casos, um exercício consciente de transgressão imposto à política da percepção balizada pelos códigos cotidianos.   Com recursos emprestados principalmente da poética de Manoel de Barros, a Peres interessa fazer ressoar “o som azul da maçã” (p. 157) e apontar sutilmente o “azul da distância” (p. 161). Importa esgarçar o tecido do discurso comum a fim de “recuperar o caráter fluido e provisório da língua”, como apregoa Georges Steiner, no texto “O poeta e o silêncio”, contido em Linguagem e silêncio: ensaios sobre a crise da palavra (São Paulo: Companhia das Letras, 1988. Trad. Gilda Stuart e Felipe Rajabally, p. 46). Interesse mudado em poema, temos Arqueologia da linguagem: “Vazio/ com suas formas azuis/ de sonho decaído/ o rumo incerto da carne dos deuses/ em decomposição/ assim nasce do homem/ o centro de sua invenção/ assim nasce sua morte/ a sua infinitude/ pousada entre o vôo da matéria explodida/ e o ventre esférico dos desejos perdidos./ O homem está no contrário de seu contrário pensado” (Água anônima, op. cit., p. 35). O poeta revolve a linguagem, exuma suas origens. Revisitada em sua aurora, a palavra revela sua força disseminadora, geradora de princípios e de transcendências. No todo da imagem que surge com o poema, nem mesmo o vazio primordial chega a ser obstáculo frente à potência proliferadora do verbo. Assim como enuncia o poeta, as formas azuis do nada primal são íntimas dos sonhos e das metafísicas religiosas. Infectado pelo verbo, o homem reage tecendo suas narrativas. Acossado pela mortalidade, é compreensível que na palavra ele queira sonhar o infinito. Tal como fica sugerido no remate do poema, o homem se faz unicamente pelo enxerto da coisa pensante na substância viva. Dessa conjunção resultam sua vocação para os engendramentos e um desejo não mais conformado aos protocolos instintuais mas condenado a errância. Por meio do gesto poético realizado em seu livro primeiro, Peres materializa literariamente o paradoxo da soberania segundo o qual, “o soberano está, ao mesmo tempo, dentro e fora do ordenamento”, já dizia Carl Schmitt: está dentro porque, tal como os outros, também o poeta encontra-se submetido ao regime geral da linguagem; encontra-se fora porque sua arte permite transgredir legitimamente as leis da palavra. Muito embora o comparecimento do significante-mestre azul e de suas variações não obedeça a princípios estritamente uniformes em todo Água Anônima, vale ressaltar sua importância no contexto geral dessa obra cujo intuito primeiro parece ser operar sobre a linguagem a fim de restituir à palavra seu “poder de encantação”. Objetivo certamente fundado na tese segundo a qual, pelo trabalho do poeta, a linguagem poderia ser levada, como diz Octavio Paz em O arco e a lira, a reconquistar “seus valores plásticos e sonoros”, mas também “os afetivos” e os “significativos”. É para esse ponto que convergem os escritos que formam o estágio embrionário da produção de Wesley Peres, período que compreende os seus dois primeiros livros publicados, a saber: Água Anônima (2002) e Rio Revoando (2003). Ambos testemunham a mesma inquietação fundamental, a mesma necessidade imperativa de “enxertar uma nova geografia à palavra em demolição” (Rio revoando. São Paulo: Com-Arte, 2003, p. 2). Não por acaso, aquilo que há de mais bem realizado no primeiro livro acaba reaparecendo no segundo: Água Anônima flui sem reservas para o Rio revoando. Entretanto, apesar dessa repetição, em Rio revoando realiza-se uma mudança estilística sutil, mas extremamente importante no contexto da obra de Peres. Ali veremos aparecer, entremeados aos demais poemas, alguns aglomerados discursivos nos quais a linguagem se espessa. Tomemos o primeiro deles, Carta de um Homem Derivado de Suas Águas - naquilo que não se repete ainda o azul, nosso fio de Ariadne: “dos anjos desejo apenas os seios azuis escorrendo a língua alada salivando o pistilo da morte e da vida” (Rio revoando. Op. Cit. p. 16). O homem derivado de suas águas está só e sozinho ele fala a esmo. Talvez fale movido apenas pelo prazer da errância e, por isso mesmo, ele fala como quem está literalmente à deriva. É possível ainda que fale para tentar vencer na palavra a monotonia dos códigos fixos, afinal, “embora não haja nada de novo sob o sol, tudo se renova e se rediz quando a realidade se repropõe, [...] a cada um de nós, indivíduos irrepetíveis que somos”, já dizia Alfredo Bosi (“Meditatio mortis: sobre um livro de Reventós, poeta catalão”. In: Entre a literatura e a história. São Paulo: Editora 34, 2013, p. 66). Fala para se visitar e, nesse percurso, descobrir-se incomunicável. “Entre um ser e um outro há um abismo, uma descontinuidade”, como quer Bataille (O erotismo. São Paulo: Arx, 2004, p. 22), entre ele e Camila, uma vertiginosa incompreensão. E se, “a palavra é uma ponte mediante a qual o homem tenta superar a distância que o separa da realidade exterior” (Paz, Octavio. O arco e a lira. São Paulo: COSAC NAIFY, 2012. Trad. Ari Roitman e Paulina Wacht, p. 43), é exatamente ao entregar-se a ela, ao fazer a experiência do discurso, que ele poderá concluir que a distância é a sua casa. Assim afastados, os amantes esperam por um encontro que teima em não se realizar. Ambos anseiam por aquilo que insiste em não acontecer: o aguardado retorno da ausência-ela, a mínima estabilização para o caos-ele. Ainda que endereçados um ao outro, eles se vêem fadados a repetir o mesmo destino: naquilo que se procuram só fazem se perder. Seres líquidos, em contínuo fluir. Que ele falasse sobre si e sobre si apenas, ela talvez tenha lhe rogado em algum momento do passado. Ao que ele, agora, lhe responde: “Bem, Camila, pediu que eu lhe escrevesse uma carta e que, nesta, eu me dissesse. Não lhe escrevi, mas talvez a tenha escrito ao tentar me dizer. Sei que o pedido era que eu falasse de mim e apenas de mim, sem, como você mesma expressou, usar o subterfúgio de falar também de você. Lembre-se, esta carta não é para você, porém, na verdade, a sua carta está dentro desta carta” (Rio revoando, op. cit., p. 29). Encerrada a carta, o seguinte pós-escrito: “P.S.: Seja feita a vossa vontade. A seguir, algumas poucas linhas [...]: eu falando de mim, só de mim, mesmo que eu não saiba quem fala, serei eu, falando só de mim”. Promessa cumprida ao pé da letra. [caption id="attachment_87929" align="alignleft" width="300"] "Rio Revoando", o segundo livro publicado por Peres[/caption] Nas linhas que vêm em seguida ele continua à deriva, segue falando “mesmo que [esse] eu não saiba quem fala” (Idem, p. 29). No todo da carta, a voz que se desdobra recusa terminantemente o vis-à-vis imaginário (base comum para os discursos calcados na força coesiva do eu consciente) a fim de assumir-se sempre outra. Por meio dela são traçados os contornos de um Eu dessimétrico a si mesmo e, por isso mesmo, em condição de refazer em sua experiência com o discurso a descoberta de Rimbaud: “Eu é um outro” - descobrimento também transmitido em carta, remetida pelo poeta francês ao amigo Paul Demeny. Um Eu estranhamente familiar e familiarmente estranho, eutro (Lopes apud Peres. A escrita literária como autobioficção: parletre, escrita, sinthoma. Brasília: Tese de doutoramento apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, 2012.), em cuja voz se exprime a condição singular desse animal visitado pela linguagem que é o homem. A falta de um centro de gravidade que estabilizasse esse Eu polifônico em uma identidade fixa limita com a insanidade: “Muitos confirmam a minha loucura, Camila, mas não me orgulho disso, não aceito elogios fáceis, enlouquecer é sempre uma construção de vagar, é aceitar que o tempo é um, e para sempre, imovimento alucinado da matéria, promovendo encontros que não se repetirão, caso sejam sutis o bastante para não serem percebidos” (Rio revoando, op. cit., p. 26). Para esse homem à deriva, feita slogan, a loucura soa tão imprópria quanto qualquer outra referência identitária. Categorizada, a doença mental não passa de um otimismo do saber conceitual frente à instabilidade da vida. E, como ele bem desconfia, a vida “não se faz nem com ideias nem com palavras” (Rio revoando, op. cit., p. 22). Por isso ele insiste, requisitando coragem para “romper com todos os lastros, todas as encostas, todos os sussurros infundidos em nós” (Rio revoando, op. cit., p. 21). Disso resulta que, para ele, esse esforço de nomeação que visa conter as invasões do instante seja visto apenas como sinal de fraqueza: “ausência de coragem, dar um nome, possuir, devo tomar cuidado, Deus começou assim e acabou sofrendo de eternidade” (Rio revoando, op. cit., p. 27). Nas águas do rio-discurso, o conceito comunica com a eternidade. Ambos visceralmente repudiados pelo homem que se sabe provisório, afinal, não lhe são indiferentes os nexos que ligam a morte ao exercício conceitual: operação em razão da qual a coisa viva e perecível se faz substituir pela palavra inerte, apesar de sempre durável. Admite-se ali apenas o paradoxo da “eternidade embrulhada no instante” (Rio revoando, op. cit., p. 27), aquela por meio da qual se poderia negar a estabilidade do conceito e dizer sim para o acontecimento imprevisto. É sem um Eu que ele fala de si, de si apenas. O polifônico signatário performatiza em seu discurso o estado de ser à deriva que é o desse corpo vivo submetido às leis da palavra, cujo derivar mostra-se irremediavelmente intransitivo. Tiago Ribeiro Nunes é professor adjunto do Curso de Psicologia da Universidade Federal de Goiás - Regional Catalão  

Uma carta de J. R. R. Tolkien para W. H. Auden, o poeta que admirava os hobbits

Auden é um dos maiores poetas modernos e, nos anos 1950, época de lançamento dos livros mais conhecidos de Tolkien, ele foi um grande entusiasta das publicações [caption id="attachment_87915" align="aligncenter" width="620"] W. H. Auden e J. R. R. Tolkien se correspondiam e uma das cartas mais importantes do último é justamente para o primeiro e diz respeito à formação de sua obra[/caption] “No fiction I have read in the last five years has given me more joy than ‘The Fellowship of the Ring’”. Foi assim que W. H. Auden terminou seu texto publicado no New York Times, em 31 de outubro de 1954. Auden, que teria completado 110 na terça-feira, 21, não era apenas um notório poeta — um dos maiores poetas modernos; era também um leitor ávido e um admirador da obra de seu compatriota J.R.R. Tolkien. [relacionadas artigos="87846, 85596"] Por isso o texto no NYT: “A Sociedade do Anel”, o primeiro volume de “O Senhor dos Anéis”, livro mais conhecido de Tolkien, havia sido publicado em julho daquele ano pela Allen & Unwin. Tolkien leu o texto, assim como todos os outros do poeta inglês sobre sua obra. Tanto que eles se correspondiam. Auden constantemente enviava cartas a Tolkien, seja fazendo comentários ou perguntas sobre seus livros. Uma carta enviada por Tolkien a Auden, datada de 7 de junho de 1955, é especial. Auden havia recebido provas de “O Retorno do Rei”, terceiro volume de “O Senhor dos Anéis”, e escreveu a Tolkien em abril de 1955 para fazer várias perguntas surgidas do livro, mas a resposta de Tolkien não sobreviveu, pois Auden geralmente jogava cartas fora depois de lê-las. Assim, Auden escreveu novamente em 3 de junho para dizer que haviam lhe pedido para dar uma palestra sobre “O Senhor dos Anéis” no Third Programme da BBC, em outubro daquele ano, e perguntou a Tolkien se ele gostaria de ouvir algum aspecto específico sobre sua obra e se ele forneceria alguns “toques humanos” na forma de informações sobre como o livro veio a ser escrito. A resposta de Tolkien é longa e detalha aspectos interessantes sobre a criação do universo fictício que ambienta sua obra. Esta carta só sobreviveu porque ele guardou uma cópia em papel carbono, da qual o texto a seguir foi tirado. A carta que o Opção Cultural reproduz aqui está publicada em “As Cartas de J.R.R. Tolkien”, livro organizado por Humphrey Carpenter — primeiro biógrafo de Tolkien — com a assistência de Christopher Tolkien, e publicado no Brasil pela Arte e Letra Editora (2006), com tradução de Gabriel Oliva Brum. Veja: 7 de junho de 1955 76 Sandfield Road, Headington, Oxford Caro Auden, Fiquei feliz por ter notícias suas e contente por sentir que você não ficou entediado. Receio que você mais uma vez receberá uma carta particularmente longa; mas você pode fazer o que quiser com ela. Bato-a à máquina de modo que ela possa, de qualquer forma, ser rapidamente legível. Realmente não creio que eu seja terrivelmente importante. Escrevi a Trilogia¹ como uma satisfação pessoal, levado a isso pela escassez de literatura do tipo que eu queria ler (e o que havia com freqüência estava pesadamente adulterado). Um grande trabalho; e como o autor da Ancrene Wisse diz no final de sua obra: “Eu preferiria, Deus é minha testemunha, partir a pé para Roma do que começar de novo o trabalho!” Porém, ao contrário dele, eu não teria dito: “Leia um pouco deste livro no seu tempo livre todos os dias; e espero que, se você o ler com freqüência, ele mostre-se muito útil a você; do contrário, terei gasto minhas longas horas de má forma.” Eu não estava pensando muito na utilidade ou no prazer dos outros, embora ninguém possa realmente escrever ou criar algo de maneira puramente particular. Contudo, quando a BBC emprega alguém tão importante quanto você para falar publicamente sobre a Trilogia, não sem referência ao autor, o mais modesto (ou, de qualquer forma, o mais reservado) dos homens, cujo instinto é o de ocultar tal conhecimento sobre si próprio conforme o possua, e tais críticas da vida tal como ele a conhece, sob uma vestimenta mítica e lendária, não pode deixar de pensar sobre isso em termos pessoais — e achar interessante, e difícil também, expressar-se tanto breve como precisamente. O Senhor dos Anéis, como uma história, foi terminado há tanto tempo atrás que agora posso ter uma visão amplamente impessoal dele e considerar as “interpretações” bastante divertidas; mesmo aquelas que eu mesmo posso fazer, que em sua maioria são post scriptum: tive pouquíssimas intenções particulares, conscientes e intelectuais em mente em qualquer ponto*. Exceto por algumas críticas deliberadamente depreciativas — tais como a do Vol. II no New States-man², onde nós dois fomos açoitados com termos como “pubescente” e “infantilidade” —, o que os leitores apreciativos apreenderam da obra ou viram nela parece bastante justo, mesmo quando eu não concordo com isso. Excetuando sempre, é claro, quaisquer “interpretações” no modo de simples alegoria: isto é, a particular e tópica. Em um sentido mais amplo, suponho que seja impossível escrever qualquer “história” que não seja alegórica em proporção conforme “ganha vida”, uma vez que cada um de nós é uma alegoria, incorporada em um conto particular e vestido com os trajes do tempo e do lugar, da verdade universal e da vida eterna. De qualquer forma, a maior parte das pessoas que apreciaram O Senhor dos Anéis foi afetada por ele primeiramente como uma história emocionante; e é desse modo que ela foi escrita. Embora, é claro, não se escape da pergunta “ela é sobre o quê?” por essa porta dos fundos. Seria como responder a uma pergunta estética ao falar de uma questão de técnica. Suponho que se alguém fizer uma boa escolha sobre o que é “boa narrativa” (ou “bom teatro”) em um determinado ponto, também será visto ser o caso de que o evento descrito será o mais “significante”. * Pegue os Ents, por exemplo. Não os inventei conscientemente de maneira alguma. O capítulo chamado “Barbárvore”, desde a primeira observação de Barbárvore na p. 66, foi escrito mais ou menos como se encontra, com um efeito sobre mim (exceto pelas dores do trabalho) quase como o de ler a obra de outra pessoa. E gosto dos Ents agora porque eles não parecem ter algo a ver comigo. Suponho que algo estivesse acontecendo no “inconsciente” por algum tempo, e isso esclarece meu sentimento do começo ao fim, especialmente quando empacado, que eu não estava inventando, mas relatando (imperfeitamente) e às vezes tinha de esperar até que o “que realmente havia acontecido” viesse à tona. Mas olhando para trás analiticamente, devo dizer que os Ents são compostos de filologia, literatura e vida. Devem seu nome a eald enta geweorc³ do anglo-saxão e à sua ligação com as pedras. A parte deles na história deve-se, creio eu, ao meu amargo desapontamento e desgosto dos dias de colégio com o pobre uso feito em Shakespeare da chegada da “Grande floresta de Birnam à alta colina de Dunsinane”: eu ansiava por desenvolver uma ambientação na qual as árvores pudessem realmente marchar para a guerra. E nisso inseriu-se uma simples porção de experiência, a diferença da atitude “masculina” e da “feminina” em relação a coisas selvagens, a diferença entre o amor não-dominador e a jardinagem. Para voltar, se eu puder, aos “toques humanos” e à questão de quando eu comecei. É como perguntar ao Homem quando começaram os idiomas. Foi um desenvolvimento inevitável, embora condicionável, do nascimento. Tem estado sempre comigo: a sensibilidade para o padrão lingüístico que me afeta emocionalmente como as cores ou a música; e o amor apaixonado pelas coisas que crescem; e a resposta profunda a lendas (por falta de palavra melhor) que possuem o que eu chamaria de temperamento e temperatura norte-ocidentais. De qualquer forma, se quiser escrever uma história desse tipo, é preciso consultar suas raízes, e um homem do noroeste do Velho Mundo colocará seu coração e a ação de sua história em um mundo imaginário daquela atmosfera e daquela situação: com o Mar Sem Praias de seus inumeráveis ancestrais ao Oeste e as terras intermináveis (das quais os inimigos na maioria das vezes vêm) ao Leste. Além disso, porém, seu coração pode lembrar-se, mesmo se tiver sido isolado de toda a tradição oral, dos rumores ao longo das costas a respeito dos Homens vindos do Mar. Digo isso sobre o “coração”, pois tenho o que alguns podem chamar de um complexo de Atlântida. Possivelmente herdado, embora meus pais tenham morrido jovens demais para que eu soubesse tais coisas sobre eles, e jovens demais para transmitir tais coisas em palavras. Herdado de mim (suponho) apenas por um de meus filhos4, embora eu não soubesse isso sobre meu filho até recentemente, e ele não sabia disso sobre mim. Refiro-me ao terrível sonho recorrente (que começa com a lembrança) da Grande Onda, elevando-se e vindo inevitavelmente sobre as árvores e os campos verdes (Transmiti-o a Faramir). Não acho que eu o tenha tido desde que escrevi a “Queda de Númenor” como a última das lendas da Primeira e Segunda Eras. Sou um habitante das West Midlands pelo sangue (e vi o antigo inglês médio das West Midlands como uma língua conhecida assim que coloquei meus olhos nele), mas talvez um fato da minha história pessoal possa explicar em parte por que a “atmosfera norte-ocidental” me atrai como um “lar” e como algo descoberto. Na verdade, nasci em Bloemfontein e, portanto, aquelas impressões implantadas profundamente, lembranças fundamentais da primeira infância que ainda estão disponíveis de forma pictórica para inspeção são para mim aquelas de um país quente e árido. Minha primeira lembrança de Natal é a de um sol abrasador, de cortinas abertas e de um eucalipto inclinado. Receio que esta carta esteja se tornando um terrível fastio e alongando-se demais, mais longa, de qualquer maneira, do que “esta pessoa desprezível diante de você” merece. No entanto, é difícil parar uma vez estimulado por um tópico tão absorvente como si próprio. Quanto ao condicionamento: estou ciente mormente do condicionamento lingüístico. Fui para o Colégio King Edward’s e passei a maior parte do meu tempo aprendendo latim e grego; mas também aprendi inglês. Não Literatura Inglesa! Com exceção de Shakespeare (que eu cordialmente não gostava), os principais contatos com a poesia eram quando alguém tinha de traduzi-la para o latim. Não é um modo ruim de introdução, ainda que um pouco casual. Quero dizer, a algo da língua inglesa e de sua história. Aprendi anglo-saxão no colégio (e também gótico, mas isso foi um acidente sem muita relação com o currículo, apesar de decisivo — descobri nele não somente a filologia histórica moderna, que recorria ao lado histórico e científico, mas pela primeira vez o estudo de um idioma por puro amor: quero dizer, pelo intenso prazer estético derivado de um idioma por si só, não apenas livre de ser útil, mas livre até mesmo de ser o “veículo de uma literatura”). Há dois ou três elementos. Um fascínio que os nomes galeses exerciam em mim, mesmo que vistos apenas em caminhões de carvão na minha infância, é um deles, embora as pessoas me dessem apenas livros que eram incompreensíveis para uma criança quando eu pedia informações. Não aprendi nada de galês até me tornar um estudante universitário, e encontrei nele uma duradoura satisfação lingüística-estética. O espanhol foi outro: meu guardião era metade espanhol, e no início da minha adolescência eu costumava roubar seus livros para tentar aprender o idioma — o único idioma românico que me dá o prazer em particular do qual estou falando — não é exatamente a mesma coisa que a mera percepção da beleza: percebo a beleza, digamos, do italiano ou, falando nisso, do inglês moderno (que está muito distante do meu gosto pessoal) — é mais como o apetite por um alimento necessário. O mais importante, talvez, depois do gótico, foi a descoberta, na biblioteca da Faculdade Exeter, quando eu deveria estar lendo para o Bacharelado, de uma gramática de finlandês. Foi como descobrir uma adega completa repleta de garrafas de um vinho estupendo de um tipo e sabor jamais provados antes. Em muito me embriagou; e desisti da tentativa de inventar um idioma germânico “não-registrado”, e meu “próprio idioma” — ou uma série de idiomas inventados — tornou-se pesadamente afinlandesado em padrão e estrutura fonéticos. É claro que isso já é passado. O gosto lingüístico muda como tudo mais conforme o tempo passa; ou oscila entre pólos. O latim e o tipo britânico de céltico possuem-no agora, com o belamente coordenado e padronizado (ainda que padronizado de forma simples) anglo-saxão bem próximo e mais além o nórdico antigo com o vizinho, porém alienígena finlandês. Não se poderia dizer britânico-romano? Com uma forte, porém mais recente infusão da Escandinávia e do Báltico. Bem, suponho que tais gostos lingüísticos, com o devido desconto pelo revestimento escolar, sejam testes de ancestralidade tão bons quanto ou melhores do que grupos sangüíneos. Tudo isso apenas como pano de fundo para as histórias, embora os idiomas e os nomes sejam para mim inextricáveis das histórias. Eles são e foram, por assim dizer, uma tentativa de fornecer um pano de fundo ou um mundo no qual minhas expressões de gosto lingüístico pudessem ter uma função. As histórias foram comparativamente tardias no surgimento. Tentei escrever uma história pela primeira vez quando eu tinha cerca de sete anos. Era sobre um dragão. Não me recordo de coisa alguma sobre ela, exceto um fato filológico. Minha mãe nada disse sobre o dragão, mas observou que não se podia dizer “um verde dragão grande”, mas que se devia dizer “um grande dragão verde”. Perguntei-me por que, e ainda o faço. O fato de que me lembro disso possivelmente é significante, já que acho que nunca mais tentei escrever uma história por muitos anos e me ocupei com idiomas. Mencionei o finlandês porque ele deu o pontapé inicial na história. Fui imensamente atraído por algo na atmosfera do Kalevala, mesmo na fraca tradução de [William Forsell] Kirby. Jamais aprendi finlandês bem o suficiente para fazer algo mais do que penar através de um pouco do original, como um aluno com Ovídio, ocupando-me principalmente com seu efeito no “meu idioma”. Contudo, o início do legendário, do qual a Trilogia é parte (a conclusão), foi uma tentativa de reorganizar algumas partes do Kalevala, em especial o conto de Kullervo, o infeliz, em uma forma de minha própria autoria. Isso começou, como eu disse, no período do Bacharelado; quase que desastrosamente, visto que cheguei muito perto de ter minha bolsa de estudos tirada de mim, se não expulso. Digamos de 1912 a 1913. Conforme se desenvolvia, na prática escrevi-a em verso, apesar de a primeira verdadeira história desse mundo imaginário quase totalmente formado conforme aparece agora ter sido escrita em prosa durante a licença por motivo de doença no final de 1916: A Queda de Gondolin, a qual tive a insolência de ler para o Clube de Ensaios da Faculdade Exeter em 19185. Escrevi muito mais em hospitais antes do fim da Primeira Grande Guerra. Prossegui depois de retornar; mas não fui bem-sucedido quando tentei fazer com que alguma parte desse material fosse publicado. O Hobbit originalmente não possuía muita relação, embora ele tenha sido inevitavelmente atraído para a circunferência da construção maior; e, na ocasião, modificado. Ele realmente foi pretendido de modo infeliz, pelo que me consta, como uma “história para crianças”, e como na época eu não possuía senso erudito, e meus filhos não eram velhos o suficiente para me corrigir, ele possui algumas das bobagens de costumes adquiridas irrefletidamente do tipo de material que me servia, tal como Chaucer podia pegar um refrão de menestrel. Arrependo-me profundamente delas. As crianças inteligentes também. Tudo que me lembro sobre o início de O Hobbit é de sentar para corrigir provas para o Certificado Escolar no cansaço interminável daquela tarefa anual imposta sobre acadêmicos sem dinheiro e com filhos. Em uma folha em branco rabisquei: “Numa toca no chão vivia um hobbit.” Não sabia e não sei por quê. Não fiz nada a respeito por um longo tempo, e por alguns anos não fui além da produção do Mapa de Thror. Porém, tornou-se O Hobbit no início dos anos trinta, e foi finalmente publicado não por causa do entusiasmo dos meus próprios filhos (embora tenham gostado o suficiente dele*), mas porque o emprestei para a então Rev. Madre de Cherwell Edge quando ela teve uma gripe, e ele foi visto por uma ex-aluna que naquela época estava no escritório da Allen and Unwin. Ele foi, creio eu, analisado por Rayner Unwin; se não fosse por ele, quando adulto, acho que jamais conseguiria ver a Trilogia publicada. * Não mais, creio, do que The Marvellous Land of Snergs, Wyke-Smith, Ernest Benn 1927. Vendo a data, devo dizer que esse provavelmente foi um livro de fonte inconsciente! para os Hobbits, não de algo mais. Uma vez que O Hobbit foi um sucesso, foi exigida uma continuação; e as distantes Lendas Élficas foram recusadas. O leitor de um editor disse que elas estavam repletas do tipo de beleza celta que enlouquecia os anglo-saxões em uma dose grande. E muito provável que estivesse certo. De qualquer modo, eu mesmo vi o valor dos Hobbits, ao colocar terra debaixo dos pés do “romance” e ao fornecer questões para o “enobrecimento” e heróis mais dignos de elogios do que os profissionais: nolo heroizari é obviamente um começo tão bom para um herói quanto nolo episcopari é para um bispo. Não que eu seja um “democrata” em qualquer um de seus usos correntes; exceto que, suponho, para falar em termos literários, somos todos iguais diante do Grande Autor, qui deposuit potentes de sede et exaltavit humiles6. Ainda assim, eu não estava preparado para escrever uma “continuação”, no sentido de outra história para crianças. Estive pensando sobre “Contos de Fadas” e sua relação com as crianças — alguns dos resultados eu coloquei em uma palestra em St Andrews e eventualmente ampliei e publiqueia-a como um Ensaio (entre aqueles listados na O.U.P. como Essays Presented to Charles Williams e agora permitido de maneira muito vil a ficar esgotado). Como eu havia expressado a opinião de que a ligação no pensamento moderno entre crianças e “contos de fadas” é falsa e acidental, e estraga as histórias em si mesmas e para as crianças, eu queria tentar escrever uma história que não fosse destinada a crianças de modo algum (como tal); eu queria também uma grande tela. Naturalmente muito trabalho esteve envolvido, visto que eu tive de criar um elo com O Hobbit; mas ainda mais com a mitologia do pano de fundo. Esta também teve de ser reescrita. O Senhor dos Anéis é apenas a parte final de uma obra quase duas vezes maior7 na qual trabalhei entre 1936 e 1953. (Eu queria fazer com que tudo fosse publicado na ordem cronológica, mas isso se mostrou impossível.) E foi necessário lidar com os idiomas! Se eu tivesse considerado meu próprio prazer mais do que os estômagos de um possível público, haveria muito mais Élfico no livro. Mas mesmo os fragmentos que lá estão necessitariam, para que tivessem um significado, duas gramáticas e fonologias organizadas e uma grande quantidade de palavras. Teria sido uma grande tarefa sem mais nada; mas tenho sido um administrador e professor moderadamente consciencioso, e troquei de cátedra em 1945 (descartando todas as minhas antigas aulas). E, é claro, durante a Guerra freqüentemente não havia tempo para qualquer coisa racional. Fiquei preso durante muito tempo no final do Livro Três. O Livro Quatro foi escrito como um folhetim e enviado para meu filho que estava servindo na África em 1944. Os dois últimos livros foram escritos entre 1944 e 1948. Isso obviamente não significa que a idéia principal da história foi um produto da guerra. A idéia apareceu em um dos primeiros capítulos ainda em existência (Livro I, 2). Ela é realmente fornecida, e apresentada em formação, desde o início, embora eu não tivesse uma noção consciente do que representava o Necromante (a não ser o mal sempre recorrente) em O Hobbit, nem a sua ligação com o Anel. No entanto, se você quisesse continuar a partir do final de O Hobbit, acredito que o anel seria sua escolha inevitável como o elo. Se então você quisesse uma história grande, o Anel adquiriria na mesma hora uma letra maiúscula, e o Senhor do Escuro apareceria imediatamente. Como ele o fez, sem ser convidado, na lareira em Bolsão tão logo cheguei naquele ponto. Assim, a Busca essencial começou imediatamente. Porém, encontrei várias coisas no caminho que me surpreenderam. Tom Bombadil eu já conhecia; mas eu nunca havia estado em Bri. Passolargo sentado no canto da estalagem foi um choque, e eu não tinha mais idéia de quem ele era do que Frodo. As Minas de Moria tinham sido um simples nome; e sobre Lothlórien notícia alguma havia chegado aos meus ouvidos mortais até que eu lá chegasse. Longe dali eu sabia que havia os Senhores dos Cavalos nos confins de um antigo Reino dos Homens, mas a Floresta de Fangorn foi uma aventura inesperada. Jamais havia ouvido falar da Casa de Eorl nem dos Mordomos de Gondor. O mais inquietante de tudo, Saruman jamais havia se revelado a mim, e fiquei tão perplexo quanto Frodo com o fracasso de Gandalf em aparecer em 22 de setembro. Eu nada sabia sobre os Palantíri, apesar de que, no momento em que a pedra de Orthanc foi arremessada da janela, eu o reconheci e soube o significado da “rima da tradição” que havia estado perambulando na minha mente: sete estrelas, sete pedras e uma árvore branca. Essas rimas e nomes surgirão, mas nem sempre explicam a si mesmos. Ainda tenho de descobrir alguma coisa sobre os gatos da Rainha Berúthiel8. Mas eu sabia mais ou menos tudo sobre Gollum e seu papel, e sobre Sam, e eu sabia que o caminho era guardado por uma Aranha. E se isso tiver algo a ver comigo sendo picado por uma tarântula quando eu era uma criança pequena9, as pessoas podem pensar o que quiserem (supondo o improvável, que alguém esteja interessado). Só posso dizer que não me lembro de nada sobre o fato e não saberia sobre ele se não tivessem me contado; e não tenho aversão a aranhas a ponto de entrar em pânico, e não tenho impulsos para matá-las. Geralmente resgato aquelas que encontro na banheira! Bem, agora estou ficando realmente gárrulo. Espero que você não fique terrivelmente entediado. Também espero vê-lo novamente alguma hora, quando talvez poderemos falar sobre você e seu trabalho e não sobre o meu. De qualquer maneira, seu interesse em mim é um encorajamento considerável. Com os melhores votos. Sinceramente, J. R. R. Tolkien. Notas do organizador:

  1. Auden usou o termo “trilogia” em sua carta; para a aversão de Tolkien à palavra aplicada a O Senhor dos Anéis, vide as cartas n° 149 e 165.
  2. O crítico, Maurice Richardson, escreveu: “É tudo que posso fazer para evitar que eu grite.... ‘Adultos de todas as idades! Unam-se contra a invasão infantil.’ .... O Sr. Auden sempre foi cativado pelo mundo pubescente da saga e da sala de aula. Há passagens em The Orators [“Os Oradores”] que não são diferentes de partes da hobbitice de Tolkien.” (18 de dezembro de 1954)
  3. Do poema anglo-saxão The Wanderer [“O Vagante”], 87: “eald enta geweorc idlu stodon”, “as antigas criações dos gigantes [i.e. construções antigas, erigidas por uma raça anterior] permaneceram desoladas”.
  4. O segundo filho de Tolkien, Michael.
  5. “A Queda de Gondolin” na verdade foi lida para o Clube de Ensaios da Faculdade Exeter não em 1918, mas em 1920, conforme está registrado no livro de atas do clube: “... na quarta-feira, 10 de março, às 8:15 p.m.....o presidente passou para assuntos públicos e chamou o Sr. J. R. R. Tolkien para ler seu ‘Queda de Gondolin’. Como uma descoberta de um novo cenário mitológico, o assunto do Sr. Tolkien foi extraordinariamente esclarecedor e evidenciou-o como um fiel seguidor da tradição, um tratamento sem dúvida à maneira de românticos típicos tais como William Morris, George Macdonald, de Ia Motte Fouqué etc... A batalha das forças opostas do bem e do mal, conforme representada pelos Gongothlim [sic, para Gondothlim, o nome para o povo de Gondolin no “Queda de Gondolin” original; vide Contos Inacabados p. XVII] e pelos seguidores de Melco [sic, para Melko, um nome antigo para Melkor] foi contada de modo muito gráfico e surpreendente.” Entre aqueles na reunião estavam Nevill Coghill e Hugo Dyson.
  6. Latim, “que depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes”; do Magnificat.
  7. Uma afirmação potencialmente equivocada. Enquanto estava escrevendo O Senhor dos Anéis, Tolkien trabalhou na revisão e reescrita de grande parte de O Silmarillion. Por outro lado, O Silmarillion existia antes de 1936, e não pode ser considerado como tendo sido originado entre esse ano e 1953.
  8. “- É mais provável ele encontrar o caminho de casa numa noite cega do que os gatos da Rainha Berúthiel.” (Aragorn sobre Gandalf em O Senhor dos Anéis, Livro II, Capítulo 4.) Vide Contos Inacabados p. 513.
  9. Um episódio da infância de Tolkien em Bloemfontein; vide Biography p. 13.

Há 110 anos nascia W. H. Auden

Wystan Hugh Auden, mais conhecido como W. H. Auden, nasceu em York, Inglaterra, em 21 de fevereiro do 1907. Auden é um dos maiores poetas modernos e o Opção Cultural não poderia deixar de homenageá-lo. Portanto, posto abaixo o poema This lunar beauty, seguido da tradução de José Paulo Paes (Poemas. São Paulo: Cia das Letras, 2013. Org. João Moura Jr). This lunar beauty This lunar beauty Has no history, Is complete and early; If beauty later Bear any feature It had a lover And is another. This like a dream Keeps other time, And daytime is The loss of this; For time is inches And the heart’s changes Where ghosts has haunted, Lost and wanted. But this was never A ghost’s endeavour Nor, finished this, Was ghost at ease; And till it pass Love shall not near The sweetness here Nor sorrow take His endless look. April 1930 Lunar, esta beleza Lunar, esta beleza É primeva, inteira, Não tem nenhuma história. Se a beleza mais tarde Exibe algum traço, Foi porque teve amante, Já não é como antes. Nisto, qual em sonho, Vige um outro tempo, Perdido se o dia De tudo se apropria. O tempo são centímetros E mudanças de alma Que espectro assombrou, Perdeu e desejou. Mas isto, por certo, Não foi coisa de espectro, Nem espectro, ela finda, Sentiu-se a gosto, ainda, E enquanto persista, Nem se chega amor A tal doçura e a dor Tampouco lhe vem dar Seu infinito olhar

Marcel Proust em vídeo: quatro segundos de imagem em movimento do autor de “À la Recherche…”

O pesquisador canadense Jean-Pierre Sirois-Trahan, da Universidade de Laval (Quebec), descobriu um vídeo datado de 14 de novembro de 1904 em que aparece o escritor francês Marcel Proust, autor de uma das obras mais importantes da literatura universal, “À la recherche du temps perdu” (“Em busca do tempo perdido”). Proust foi filmado no momento em que estava descendo os degraus de uma escadaria. O escritor havia acabo de assistir ao casamento da aristocrata Elaine Greffulhe, e aparece entre 34 e 38 segundos do vídeo em questão, que pode ser acessado abaixo. https://www.youtube.com/watch?v=51COHIgjbYU      

A “Aurora” póstuma de Lêdo Ivo (Parte I)

A Aurora do poeta alagoano há de ser póstuma. É do outro lado do Atlântico que nos chega sua voz solar, da Espanha, onde faleceu. Mas, em vida, por que não lhe foi dado o merecido lugar ao Sol, em sua terra natal? [caption id="attachment_87820" align="alignleft" width="620"] Lêdo Ivo | Foto: acervo ABL[/caption] Wladimir Saldanha Especial para o Jornal Opção Lêdo Ivo (1924-2012) terá sido, talvez, um neossimbolista, em meio à reação ao Modernismo – lida “em bloco” como neoparnasiana – que foi a Geração de 45.  O equívoco parte de José Guilherme Merquior, em ensaio fundador no qual excetua João Cabral de Melo Neto e, mais pontualmente, José Paulo Moreira da Fonseca; contudo, o próprio Merquior admitiria depois a necessidade de rever o julgamento do “malsinado parnaso”, em texto reunido no seu livro O Elixir do Apocalipse, no qual cita nominamente o caso de Lêdo Ivo: “Hoje teria que discriminar muito mais”. Entre o primeiro e o segundo tempo, o crítico participou da organização de uma antologia de poetas brasileiros em que pôs em prática a própria lição – deixou de fora a maior parte dos poetas de 45 – o que rendeu uma resposta, agora sim, em bloco, dos dois grupos da Geração – o de São Paulo, reunido em torno da Revista Brasileria de Poesia, tendo à frente Péricles Eugênio da Silva Ramos e Domingos Carvalho da Silva – e o do Rio de Janeiro, que publicara com intermitência a Revista Orfeu, da qual participou Lêdo Ivo. Na antologia-resposta, [caption id="attachment_87815" align="alignleft" width="288"] José Guilherme Merquior faleceu antes de fazer uma prometida revisão de sua crítica aos poetas da "Geração de 1945"[/caption] organizada por Fernando Ferreira de Loanda, dita da Moderna Poesia Brasileira, Silva Ramos ironiza Merquior no prefácio, enquanto Lêdo Ivo assina um dos ensaios que lhe valeriam a proscrição: um Epitáfio do Modernismo no qual sistematiza críticas aos que viam, na Geração de 45, uma “continuadora” de 1922 – tese que, se hoje parece absurda, era então defendida por parte dos críticos e poetas, no sentido de ser uma geração de “extensão de conquistas”, como deixou dito o insuspeito João Cabral de Melo Neto. Ao tempo da Moderna Poesia Brasileira, estamos falando da década de 1960, e já então se conhecia o Itinerário de Pasárgada, publicado por Manuel Bandeira em 1954, com o capítulo da revisão de seu papel em 1922, quando esclarece que o poema Os sapos se dirigia a parnasianos menores como Goulart de Andrade. Ali repudia o poema-piada, dizendo-o apenas um episódio da reação modernista, sem maior importância na poética dos que lhe praticaram, à exceção de Oswald (por ser algo da própria natureza desse autor). O leitor que tiver a curiosidade de conhecer o Epitáfio do Modernismo, de Lêdo Ivo, verá que o poema-piada é um dos pontos contra os quais investe o ensaísta, somando-se a isso, entre outras coisas, o projeto paulistano de “inaugurar” uma modernidade como se esta não já viesse por influxos diversos, e por diversos portos, como os do Simbolismo, não sendo acontecimento situável numa data – a Semana de 1922 – e num lugar – São Paulo. Acalmados os ânimos da juventude, infelizmente Merquior morreria em 1991, sem fazer a revisão anunciada anos antes, em 1983. Àquela altura, a semente redutora já tinha germinado fácil na terra onde, em se plantando, tudo que é erva daninha sempre dá: grandes nomes da teoria e da crítica, ao tratar em ensaios ou obras monográficas da poesia de João Cabral, reforçaram a tese da “incômoda convergência cronológica”: de Benedito Nunes a João Alexandre Barbosa, de Luiz Costa Lima a Haroldo de Campos. Lêdo Ivo, um daqueles a “discriminar muito mais”, prosseguiria na sua obra múltivoca, de poesia, romance, ensaio, crônica, conto – cada vez mais se distanciando do palco reativo de 45, no reagenciamento dos signos informativos de sua poética. Pelo menos desde o final da década de 1940, com a segunda seção de Linguagem, a geografia da terra natal alagona é reapropriada em clave aberta, pela qual mangues, lagoas e penínsulas, longe de uma referencialidade, falam de sua cosmovisão dual. O estigma da Geração, porém, iria grudar-se a seu nome como sinal de nascença. Seria lembrado, muito mais, como o poeta que “quis atirar uma pedra na vidraça de Drummond”, imagem recortada de um texto de algumas páginas, publicado na revista gaúcha A província de São Pedro e tido como ataque insofismável ao grande mineiro, via paródia com o poema da pedra no meio do caminho. Não é bem isso que lá está, na velha brochura esquecida, onde um Lêdo Ivo de vinte anos vê a geração precedente – não só Drummond, mas Murilo Mendes, Jorge de Lima etc. – como um muro contra o qual teriam forçosamente que investir. Não se perca de vista: a Geração de 45 é a que se segue à de Drummond, chamada inicialmente de “Poetas de 1930”; de quinze em quinze anos, como diz Ortega y Gasset, as coisas “cambiam” significativamente. Ora, quem estude com o mínimo de honestidade a questão das gerações literárias, a própria forma textual da paródia (vide Yuri Tynianov) e o [caption id="attachment_87817" align="alignleft" width="150"] João Cabral foi eleito "borgeanamente" pelos poetas concretos, como o seu precursor[/caption] particular da relação de influência em poesia (vide Harold Bloom), não deveria dar muito seguimento a isso, ou pelo menos deveria descer às fontes primárias, antes de repercutir a citação da citação. Mais acadêmico foi o próprio Drummond, que nunca levou a sério tal pedra na vidraça, tanto assim não lhe ter recolhido entre as paródias e pastiches da Biografia de um poema, livro sobre a recepção da “pedra no meio do caminho”, no qual só uma reedição mais recente faz lembrar, em prefácio acrescido, da pelota de Lêdo Ivo. Outro equívoco será o do papel do poeta alagoano na própria Geração de 45: embora tenha sido um dos editores do primeiro grupo da Orfeu, não foi o autor paradigmático que se alardeia, tendo sido, inclusive, criticado por Domingos Carvalho da Silva nas páginas da Revista Brasileira de Poesia, quando da publicação do Acontecimento do Soneto. Note-se que seria o mesmo Carvalho da Silva quem, tendo objetado a Lêdo Ivo o uso de sibilações e rimas toantes, faria ressalvas a João Cabral de Melo Neto por usar palavras “apoéticas”, tais como “cachorro” (em vez de “cão”) ou “fruta” (em vez de “fruto”). Em bom tempo tudo isso foi repelido por um crítico do porte de Sérgio Buarque de Holanda – que a Lêdo Ivo, muito mais que a Cabral, chamava de “ponto de fuga” da Geração de 45, por não vê-lo pactuar com duas pedras-de-toque dos grupos, ao contrário do pernambucano: a contenção da linguagem (com repúdio ao verso longo) e o chamado rigor, a clareza e a racionalidade na criação literária. Era a Geração do culto a Ungaretti, a Valéry, e o “malsinado parnaso”, para usar a expressão de Merquior, nada tinha a ver, nesse particular, com a produção já muito divergente de Lêdo Ivo, onde abundava o que chamou de verso “respiratório”, de matriz whitmaniana, e um sentido intuitivo ou irracional da criação, mais próximo dos surrealistas (indo mais longe: dos simbolistas e românticos). Se a Lêdo Ivo, como aos colegas de Geração, o poema-piada e a busca de uma “gramática brasileira” repugnavam, as analogias param por aí. Domingos Carvalho da Silva, que de um lado atacava o Acontecimento do Soneto e, do outro, O cão sem plumas, seria o autor da polêmica tese Há uma nova poesia no Brasil, esta de matriz claramente neoparnasiana, que rendeu intensos debates em 1948, no I Congresso de Poesia de São Paulo (!), quando Oswald de Andrade acusava, junto à  companheira Pagu, ter sido a “revolução traída”, entenda-se: a revolução modernista, a despeito do vocabulário marxista da invectiva (ou por isso mesmo). A roda girou mais uma vez contra Lêdo Ivo, e seria ele, não Carvalho da Silva – de resto esquecido e também carecedor de revisão –, o antípoda de Oswald, no imaginário crítico-acadêmico brasileiro, o que em parte se deve ao Epitáfio do Modernismo e à inimizade dos [caption id="attachment_87816" align="alignleft" width="150"] Lêdo Ivo demonstrou diversas vezes a sua aversão por Oswald de Andrade[/caption] dois escritores, que data da juventude de Lêdo. Conta no livro memorialístico Confissões de um poeta a sua versão para o desentendimento, segundo a qual Oswald lhe teria pedido a cabeça no emprego que arrumara na redação de um jornal, pelo fato de que ele, Lêdo Ivo, dissera aos colegas que o velho modernista apressara um lauto almoço no Copacabana Palace para terminar um “romance proletário”. Verdade ou meia-verdade, fato é que Lêdo Ivo detestava Oswald de Andrade e sua poesia, e o disse muitas vezes, a última em entrevista a uma rede nacional televisão. No país do silêncio murmurante, na Pindorama do tapinha nas costas, isso é imperdoável – e mais em se tratando de um corifeu do “novo”, do “moderno” e  da “ruptura”. O prosseguimento do discurso crítico de exceção, cristalizado na “incômoda convergência cronológica” de João Cabral, teria uma sobrevida muito robusta, sobretudo quando os poetas concretos o elegeram borgeanamente como precursor. Se a crítica anterior, ocupando nas universidades o espaço dos rodapés no meio literário depois da cruzada de Afrânio Coutinho, procurava o poeta ideal para substituir o “impressionismo” pelo “método”, no momento mesmo da criação dos institutos de Letras no Brasil, uma vanguarda da década de 1950 – coisa aliás unicamente brasileira – e nascida nas páginas da mesma Revista Brasileira de Poesia do grupo de Péricles Eugênio da Silva Ramos, ao tomar a cena da poesia e da tradução reinvidicava para si o “pai” João Cabral, geômetra engajado, como o chamaria Haroldo de Campos. Quanto a Cabral, é fato que participou da Geração de 45, tendo inclusive colaborado com traduções de quinze poetas catalães para aquela mesma revista, quando recomendava, em nota, que a  “...posição materialista diante da criação poética” daqueles autores talvez devesse “ser considerada por parte de outros idiomas não-ameaçados”, como o português. [caption id="attachment_87818" align="alignleft" width="150"] Gilberto Mendonça Teles é autor de um dos poucos estudos de fôlego sobre a poesia de Lêdo Ivo [/caption] Sustenta Gilberto Mendonça Teles, em um dos poucos ensaios de fôlego sobre a poesia de Lêdo Ivo, que seria ele o distoante e Cabral o paradigmático em relação a 45; a tese parece ecoar um pouco o artigo de Sérgio Buarque de Holanda, mas vai mais longe. Não pensamos que Cabral seja paradigmático da Geração; contudo, sem dúvida o é de alguns aspectos dela – precisamente aqueles que, com alguns pontos de contato com o Parnaso, a que não era alheia a objetividade (o banimento do “eu” romântico), passavam longe da convenção literária de “palavras poéticas” e assimilavam a assim chamada antilira – precisamente aquilo que repudiava Domingos Carvalho da Silva. E é este viés objetal e antiliríco, até materialista, que, bebendo em fontes estrangeiras, como Valéry ou Marianne Moore, e servindo-se dos metros tradicionais ibéricos, iria engendrar a obra cabralina. A visualidade da imagem, radicalizada pelos concretos, pode ser lida em tal linhagem, porém se articula com uma dimensão, não propriamente parnasiana, mas simbolista da pesquisa poética – um Simbolismo de experimentos, entendido na sua mais ampla acepção europeia, como aqui só houve episodicamente, em autores que os próprios concretos também cuidaram de revificar, como é o caso de Pedro Kilkerry. Hábeis na construção de seu cânone, traduzindo em ritmo acelarado e publicando autores até então lidos apenas no original ou mesmo desconhecidos, os filhos bastardos da Geração de 45 logo apagariam essa naturalidade de seus registros de nascimento, fariam sua própria revista e se voltariam contra a mesma Geração que lhes deu à estampa pela primeira vez. Aí estão alinhavadas, tanto quanto o permite este espaço, as razões pelas quais se pode entender o silenciamento em que caíram nomes como Péricles Eugênio da Silva Ramos, Darcy Damasceno, Fernando Ferreira de Loanda, José Paulo Moreira da Fonseca (este, apesar do aplauso inicial de Merquior), Afonso Félix de Sousa ou o próprio Lêdo Ivo. Quanto ao último, foi sem dúvida o mais resistente de todos, aquele que ultrapassou, pela única força de sua palavra literária, todas as barreiras criadas pelo não-dito, pelos apodos jocosos – “lêdo ivo engano” etc. –, pelas citações propositamente mal recortadas, pela valorização de eventos da vida literária em detrimento da literatura. Publicou, ganhou prêmios importantes, foi traduzido e, para um poeta, nos padrões do Brasil, não se pode dizer que tenha caído em ostracismo. Contudo, em quase setenta anos de atividade literária, assusta pensar que a universidade brasileira produziu pouquíssimo conhecimento em relação à sua obra. Assusta pensar que seja nome quase impronunciável em programas de pós-graduação, e que o único perfil jornalístico feito dele, quando do seu falecimento, tenha preferido ressaltar o anedotário da Academia Brasileira de Letras à sua volumosa poesia: quase mil e cem páginas em uma edição de 2004, a que faltam alguns livros posteriores.

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A Aurora de Lêdo Ivo, como em paralelo do título sobre que falaremos em um próximo artigo (link à esquerda), há de ser póstuma: “Estou vindo da sombra,/ do mistério da noite,/ escuto jubiloso/ a voz inumerável/ da promessa do dia”. É do outro lado do Atlântico que nos chega sua voz solar, da Espanha onde faleceu e onde seu nome conta com a simpatia de jovens poetas e um tradutor fiel – Martín López-Vega; ali recebeu homenagens em vida, e sua memória ainda as recebe. Por imposição contratual e desde o volume Mormaço, o último publicado pelo autor, os poucos inéditos saem em espanhol antes do português – e isto a ponto de Aurora jogar aqui e ali com a semelhança léxica entre as duas línguas, como veremos em breve. Que os exílios se façam pródigos na poesia é uma das desforras da palavra poética. Wladimir Saldanha é poeta e tradutor. Doutor em Letras pela UFBA, com tese sobre a poesia de Lêdo Ivo.

A lista definitiva das 10 melhores séries de todos os tempos

Outro dia vi uma lista sobre as séries mais importantes de todos os tempos e nela constava "Smallville". Ora, se alguém que considera "Smallville" importante, eu precisava me pronunciar, porque poucas vezes uma série foi tão ruim quanto àquela do "somebody saaave me" [tenho certeza que você cantou isso mentalmente]. Pois bem. Decidi levar em consideração apenas dois critérios: relevância e qualidade de roteiro e de filmagem, sendo esta a razão pela qual o leitor não verá séries como "Friends" aqui [ok, os seis amigos tiveram uma grande influência no mundo dos seriados, porém, convenhamos, todo mundo assiste, mas ninguém leva aquilo a sério]. Sem mais explicações para o momento, vamos lá: Star Trek "Star Trek" foi exibida na década de 1960, em plena corrida espacial, e significou muito para o mundo das séries. A importância da obra de Gene Roddenberry é tão grande que serviu de inspiração para George Lucas criar Star Wars, uma das maiores sagas já vistas no cinema. Além disso, os caras "filmaram" teletransporte em 1966!  Isso só não é mais incrível do que os efeitos de "Além da imaginação", clássico do final da década de 1950. Família Soprano Quem nasceu na década de 1990 e se acostumou às séries dos anos 2000 provavelmente terá dificuldades em ver este clássico. Porém, ele deve figurar em todas as listas de melhores séries, além de ter a melhor abertura já feita. Arquivo X Outro clássico dos anos 1990. Existem inúmeras séries policiais (inúmeras!), mas esta é a única entre as mais bem avaliadas em todos os sites especializados. Não é a toa. Afinal, quem não viu "Arquivo X" não sabe o que é tensão. House of Cards Nenhuma série sobre política merece tanto espaço quanto "House of Cards". E não só pela genial atuação Kevin Spacey como Frank Underwood, mas pela belíssima fotografia, pela fantástica trilha sonora e, sobretudo, pela indiscutível qualidade do roteiro. Sim, a série vale todos os adjetivos. O que pouca gente sabe é que a série, embora seja um produto "original Netflix", não é original, ao pé da letra, mas uma releitura da série da BBC de mesmo nome lançada na década de 1990. A "House of Cards" da BBC foi exibida em três temporadas de quatro episódios cada e mostrava as tramas de Francis Urquhart (Ian Richardson) para alcançar o cargo de primeiro-ministro da Grã-Bretanha, no lugar de Margaret Thatcher. Sim, a história é a mesma, só que na Inglaterra. The Leftovers Essa produção da HBO não é uma série policial, embora tenha um policial como protagonista; não é uma série religiosa, embora tenha o arrebatamento como tema principal; não é uma série sobrenatural, embora conte sempre acontecimentos nada naturais. A série caminha para a quarta temporada e quem acompanha entendeu pouco do que já ocorreu, mas continua ali, curioso. Esse é o mérito da série. "The Leftovers" é provavelmente a série mais humana que você irá assistir. Tão humana que embrulha o estômago. É por isso que ela está aqui. Sherlock Esta produção da BBC segue a genialidade e a sociopatia de seu próprio personagem principal, fantasticamente vivido por Benedict Cumberbatch. Na verdade, ninguém poderia encarnar a versão mais antipática de Sherlock Holmes e ainda conseguir cativar seu público. Não bastasse, ainda vemos Martin Freeman encarnando a, provavelmente, melhor versão de Watson já filmada; ele e Cumberbatc são uma boa dupla. A série, que está na quarta temporada e segue o padrão da BBC de poucos episódios (três temporadas de três e uma de quatro), embora longos (média de 60 minutos), é um primor e vale as horas dispensadas. Game of Thrones Não, Game of Thrones (GoT) não é superestimada. A série é excelente: bem filmada, bom roteiro, linda fotografia, trilha sonora impecável e repleta de bons atores. Com GoT, a HBO elevou (e muito) o nível de produção de seriados — basta ver o que andam fazendo com "Westworld", que é muito boa, mas ainda não chegou lá. A verdade é que o mundo contemporâneo das séries é um antes de GoT e outro completamente diferente depois dele. Breaking Bad Confesso que não assisti, mas li tanto a respeito na época do último episódio, que vale a pena colocar aqui. Afinal, são raras as séries de grande abrangência cujo final agrada à maioria absoluta dos fãs. * As duas últimas séries da lista são revelações, pois nem só de "velharia" viverão os “binge-watchers”. Bem, estas duas são séries de apenas uma temporada e, se você ainda não viu, veja. The People vs. O.J. Simpson Genial. Essa é a palavra para definir "The People vs. O.J. Simpson". O caso do jogador de futebol americano acusado de assassinar a ex-esposa marca a primeira temporada de American Crime Story, produzida pela FX. A história é fantástica, mas a forma como Ryan Murphy, Anthony Hemingway e John Singleton a filmaram é de tirar o fôlego. Não à toa, a série ganhou tudo no Emmy 2016. Sem contar que o elenco é sensacional: Cuba Gooding Jr., Sarah Paulson, John Travolta, Courtney B. Vance, Sterling K. Brown e David Schwimmer (sim, ele consegue fazer outro papel que não seja o eterno Ross, de "Friends". Aliás, ele está muito bem na série, vivendo Robert, o pai da então desconhecida família Kardashian). 11.22.63 O leitor com certeza conhece o streaming Netflix. E o Hulu? Não? É quase a mesma coisa. A única diferença é que o Hulu nasceu da junção de duas grandes cadeias televisivas dos EUA, a Fox e a NBC Universal, na tentativa de lucrar com o advento dos streamings. Bem, a nota de abertura foi só para dizer que é este streaming que produz "11.22.63", série do diretor J.J. Abrams (conhecido por "Lost". Nada a ver, amigos. Nada a ver). A série de uma só temporada trata do assassinato de J.F. Kennedy, ocorrido na data que dá título à série, e ainda reúne viagem no tempo e uma trama bem feita e magistralmente filmada. Merece lugar aqui. Bônus: Os Simpsons Diga a verdade: nada supera "Os Simpsons".

“Moonlight” retrata a intimidade humana sem desprezar a luta por igualdade racial

Filme de Barry Jenkins é uma pedrada na vidraça da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que foi acusada de racismo na última edição do Oscar [caption id="attachment_87769" align="aligncenter" width="620"] "Moonlight" consegue, nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigar a busca permanente pela essência do que é "viver" e "ser"[/caption] "Quem é você, Chiron?". A pergunta que aparece no trecho final de "Moonlight: Sob a Luz do Luar" se arrasta pelas entrelinhas de todo o novo filme de Barry Jenkins, desde o começo. Mas as cenas iniciais não são sobre o protagonista Chiron. Juan, vivido por Mahershala Ali, é um traficante de bairro que evita conflitos e não se orgulha do que faz. Na rotina de um dia qualquer é interrompido pela correria de crianças — o menor, fugindo do bullying, tenta evitar ataque dos maiores que o perseguem. Assim somos apresentados a Chiron: acuado, arisco, desconfiado. Apelido, "Little". O filme acompanha três fases da vida do franzino "Little". A infância, período em que se afiniza à figura masculina de Juan e luta contra a violência viciada de sua mãe, que finge que educa e tem ciúmes de quem quer que se aproxime durante sua constante ausência; a adolescência, em que firma sua independência em relação à vida caótica da genitora, mas ainda não se posiciona firmemente perante a vida social na escola e na vizinhança; e a fase adulta, na qual ganha mais autonomia, toma posse de sua masculinidade e se escora no corpo forte e avantajado para se impor como traficante, mas que ainda não tem muita certeza sobre nada. O filme aborda de forma genérica questões raciais, sexuais, sobre drogas e também abandono familiar. Mas não se esgota só nisso. [relacionadas artigos="86358, 87306"] Depois de muitos protestos Hollywood afora — inclusive na noite do 88° Oscar, no ano passado, em que Chris Rock vestiu a roupa de camaleão e subiu no muro para tentar desempenhar a diplomática missão de, ao mesmo tempo que receber e valorizar as críticas à falta de reconhecimento a artistas negros no mercado cinematográfico, promover uma reconciliação destes com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas — "Moonlight" é uma verdadeira pedrada na vidraça. Indicado a oito categorias da maior premiação do cinema americano, mas injustificadamente não tão ouriçado quanto "La La Land", de Damien Chazelle, o filme conta com um elenco principal só de artistas negros. Além de Trevante Rhodes, estão no casting a cantora Janelle Monaé, Naomie Harris ("Mandela: O caminho para a liberdade"), Mahershala Ali ("Um Estado de Liberdade"), André Holland ("Selma") e Edson Jean ("Cães de Guerra"). Barry Jenkins conduz a locomotiva (dirigindo e roteirizando) demonstrando, de uma vez por todas, que a Academia não pode — e nem se quisesse, conseguiria — deixar passar batido o poder da cultura negra. Aliás, aqui cabe uma observação importantíssima sobre o papel do filme em toda essa discussão sobre o reconhecimento do trabalho de artistas negros. Se você pegar os principais filmes americanos protagonizados por negros nos últimos anos, ou com um envolvimento mais direto desses artistas, dá para chegar facilmente à constatação de que a temática acaba se esgotando na luta pela igualdade, na denúncia ao preconceito e na retrospectiva histórica das conquistas negras (esse ano mesmo, temos em destaque "Estrelas além do tempo", "Loving", "Eu não sou seu negro" e "Um limite entre nós"). Não que devamos dar pouca importância a isso — de maneira alguma! É indispensável que a humanidade nunca se esqueça das atrocidades já cometidas em nome da supremacia branca, e que continue avançando na eliminação das desigualdades. Principalmente no já surrado território americano. Mas há que se convir que a produção cinematográfica (e cultural, de maneira geral) não pode ficar restrita a essa temática — aliás, à temática alguma! A igualdade se alcança, também, na liberdade de explorar temáticas universais que estão lá, sempre existiram, mas que ainda perdem em urgência para temas mais profundos como a luta pela igualdade racial. Assim é que Barry Jenkins consegue deixar um pouco de lado as mazelas advindas do preconceito racial e de gênero (ainda que não os abandone completamente — nem poderia, já que Chiron é um negro americano da década de 80, em plena descoberta de sua sexualidade) para permitir-se tratar de um tema universal: o "conhece-te a ti mesmo". O interessante é que, de forma inteligente, nas entrelinhas, ainda assim Barry nos joga essa verdade crua da busca pela igualdade: O Templo de Delfos também aconselha negros e homossexuais. Como não? Filmes "de negros" também podem falar sobre temáticas intimistas e universais de forma belíssima, sem desprezar todas as lutas coletivas. Nesse contexto um pouco mais intimista, a beleza de "Moonlight" se revela em cada detalhe. Na trilha sonora meticulosamente inserida — delicada, melancólica, introspectiva. Na fotografia de cores frias, por vezes revelando a dureza do mundo contra o qual Chiron luta, e no qual quer se inserir. Nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigando a busca permanente pela essência do que é "viver" e "ser". No fundo, Chiron só quer se descobrir e ser aceito. Percebemos isso quando ele estranha o calor com o qual é recebido, inicialmente, por Juan e sua esposa Tereza. Se surpreende com a compreensão que depois vira beijo, oferecidos pelo melhor amigo. E, por fim, busca sofregamente por um colo, alguém que lhe compreenda sem julgamentos e lhe ofereça perspectivas, carinho, ligação. A rejeição está nos meandros da rotina comum. "Sob a luz do luar, garotos negros ficam azuis", diz um dos diálogos. Azul de uma melancolia profunda e individual. Azul de ainda inexplorado, misterioso, quase lacônico. E azul de uma sensualidade latente. Assim se descobre Chiron. Assim se revela ao mundo, ansiando que alguém o descubra — e o acolha. Azul é a cor mais profunda. João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

A viagem ao inferno de Bruno Ribeiro

“Febre de enxofre” propõe um jogo de espelhos, no qual obra e criador se fundem Sérgio Tavares Especial para o Jornal Opção O mito do homem que sela um pacto com o diabo ganha uma releitura vertiginosa em “Febre de enxofre”, de Bruno Ribeiro. Tomando o clássico “Fausto”, de Johann Wolfgang von Goethe, como tábua de comparação, a estreia no romance do escritor mineiro radicado na Paraíba revisita algumas das composições que dão norte ao texto trágico do autor alemão: a procura desbragada por um sentido na vida, os excessos, a rivalidade entre o mundano e o etéreo, o desejo que se torna a contundência do amor. A única diferença está na recompensa. Não se trata de aprisionar a alma, mas o corpo, a matéria viva, esse invólucro de pele, carne, ossos e excreções. A história tem início com uma despedida. Yuri Quirino, um poeta celebrado por seu primeiro livro, observa a namorada Luciana embarcar num avião com destino ao Rio de Janeiro, onde passará uma longa temporada. Ainda no aeroporto, abalado pelo frescor da separação, o personagem é abordado por um indivíduo estranho — “cabelos longos e negros, olhos e lábios finos, porcelana em forma de gente” — que se apresenta como Manuel di Paula, um fã, e afirma ter uma proposta de trabalho: escrever sua biografia. Para tanto, Quirino deveria se mudar para Buenos Aires, cidade natal do biografado, cuja mansão serviria de hospedagem. O trato também envolveria acerto financeiro. “Não tenho tempo. Tem sim. Acho que não. O seu tempo é eterno, Yuri. Não te apresses. Não te apegues. O tempo caminha na sua direção”, altercam. Apesar da insistência do desconhecido, o poeta decide voltar para Campina Grande, onde afoga suas mágoas na esbórnia, varando a madrugada entre a fauna local constituída por prostitutas, travestis, adictos e artistas. Num momento, está num cabaré; num outro, num lançamento de livro. Neste último, reencontra Malena, uma ex-amante, que agora namora um playboy dublê de poeta. Quirino transa com ela, transa com prostitutas, transa poesia e com travestis. Passa os dias bebendo com amigos, queimando o dinheiro que tem, enquanto não cola o rosto na tela do computador, chorando a saudade de Luciana em conversas via Skype. Durante essa aventura hedonista, a figura misteriosa de di Paula é sempre uma sombra. Parece estar em todos os lugares, singrando o espaço-tempo, a fim de que o poeta o biografe. Chega, inclusive, a assediar Luciana, no Rio de Janeiro. Quirino continua o rechaçando o quanto pode, escorado na solidez complacente do pai. No entanto, quando a extravagância se revela uma jornada (quase fatal) de autodestruição, ele aceita o serviço e toma o avião rumo à Argentina. A contextura dessa primeira parte se dá por meio de uma narrativa ágil, por vezes frenética, que muito lembra a carpintaria de autores como Luís Antônio Giron e, especialmente, Reinaldo Moraes. Blocos textuais que se conformam a partir de um vernáculo de transgressões e obscenidades, cujos significados transcendem o enredo. Neste caso, um exame sardônico da poesia contemporânea brasileira (“com a pós-modernidade, tudo é poesia) e da mercadização de autores de redes sociais que, na verdade, não passam de “paredes em branco”. Ribeiro desconstrói a forma, encavalando prosa linear e diálogos, abrindo apêndices, num ritmo que repercute a psiquê de seu protagonista. Achando um termo adequado na fala do próprio personagem, algo como “Beethoven dopado de LSD”. Daí tem início a segunda metade, e o romance parece girar uma chave de contenção. Assim como acontece na parte dois de “Fausto”, a trama vai se enchendo de um clima mais velado, reduzindo o compasso e indicando outras intenções. O passado de di Paula (e, por conseguinte, o da sua família) vai sendo descoberto, tal uma história dentro da história (ou um fantasma dentro de um fantasma), na qual o autor propõe uma analogia entre não pertencimento e vampirismo. As referências também mudam: vão de Edgar Allan Poe (“A queda da casa de Usher”) a Julio Cortázar (“Casa tomada”). Ribeiro constrói uma viagem ao inferno, que é uma viagem pelo sentido identitário, pela literatura que avança contra a própria literatura para consumi-la e fazer, do seu livro, uma experiência anônima. Com isso, o que se tem, afinal, é um jogo de espelhos confrontados cujos aços refletem o próprio autor. A quebra da barreira entre obra e criador, mostrando que a escrita nem sempre é uma maneira de expurgar demônios, mas também a chance de se fazer um pacto com o diabo. Sérgio Tavares é jornalista e escritor, autor de “Cavala”, vencedor do Prêmio Sesc Leia trechos do romance de Bruno Ribeiro: TRECHO 1 ¿O que há em minha boca sem dente? ¿Só abismo? Um labirinto de espelhos e dentro de cada reflexo uma luz contendo as Américas, milhões de olhos derretendo, as mulheres da nossa, minha vida, pedaços de cigarros, engrenagens rodando e violentando colossos, três milhões e quatrocentos e quatorze padres loucos invocando Lúcifer para destruírem o totalitarismo do filho Jesus Cristo, desertos equiláteros deslizando pelas gengivas pútridas, longos cabelos negros tornando-se uma só química capilar, nervos de aço, um tumor no cu, cancro mole, pai comendo vinte e duas garçonetes da cidade natal que não lembro mais o nome, a menina que disse que me esperava, ela nos espera, um redemoinho de poetas, um dinossauro em decomposição, sombras me perseguindo, a pobreza em forma concreta: é um mar sem água, e finalmente vi, vimos, minha, nossa morte; no rosto dele, em meu rosto, poeta, coagulam tripa e picos na veia, eu sou aquilo que todos conhecem e temem, admiram e odeiam, dentro das galáxias reproduzem meu nome, na minha boca eu gargarejo escritores e cuspo gênios, eu sou os pingos da chuva que deslizam pelo corpo humano, a projeção do passado, a metafísica do cão, a máquina sem capital, a luz branca do inferno, o deslizar de todas as fezes do mundo: você. ¿O que você fez? Perguntei. Ele tirou a campânula do meu peito, uma fumaça subiu, ele disse: você está pronto. ¿Pronto? Sim, você está pronto para escrever a biografia de Manuel di Paula, poeta. Sentia uma vertigem sem fim, tombava dentro da minha própria constituição humana: perdido. Amanhã começamos. Beatriz o levará até seu quarto. Fui para o meu quarto em ziguezague. Beatriz sorriu, escreveu em um papel buenas nochese saiu. Dormi. Dia seguinte, respirei e fui conhecer essa cidade que não era uma cidade, era uma hecatombe de mim mesmo. De nós. Não havia mais retorno. TRECHO 2 ¿Sabe o que ela disse para mim antes de partir para o Rio de Janeiro? Estávamos no aeroporto, sozinhos, de mãos dadas. Minutos depois eu conheceria este puto do Manuel di Paula, mas neste momento, lhe juro, eu sabia que suas palavras eram verdadeiras, sabia. Yuri, ela disse e sua voz era firme, ¿você parou pra pensar em sua fraqueza? Eu parei para pensar na minha. Não importa, mas sou instável, oscilante, sei que você odeia isso, ¿mas sabe por que você odeia? Porque você tem medo do futuro. Você calcula cada passo, pois tem medo de cair, você teme as feridas e para isso criou uma carranca de certezas; você clama por aí que é cheio de cortes e que são elas que fazem você ser o escritor celebridade underground que é; falácia. O escritor em você nasceu do medo. Você teme tanto que escreve, difere sombras no papel, reproduz um grito seco que nunca poderia ter saído de ti, mas transborda da caneta; ¿sabe por que te amo? Porque você é um homem cheio de medos e são eles que fazem de você tão cheio de paixão e vontade; pois um homem com medo é um homem que não perde tempo, é alguém que precisa planejar tudo antes que seja tarde, é intenso por vida; você vive como se sempre fosse tarde, estou atrasado é seu dizer favorito, mesmo que não esteja; a pulsação no seu peito passa para o meu e aqui estamos; minha oscilação e dúvida nada mais são do que uma defesa contra sua loucura. Sem meus cuidados, nós estaríamos mortos, Yuri. Minha tensão, pilha, voz grave, nervosismo, ansiedade, não chegam perto do que passa no seu corpo, no interior de ti; a curvatura do seu demônio-bicho toma o aeroporto, toma João Pessoa, toma é tudo, é tão forte que um dia vai ganhar vida, vai comer gente ao redor, universo, galáxia, mastigar o próprio Deus e Diabo; eu conheço esse bicho, Yuri, nunca o vi, mas conheço. Eu não tenho medo dele, posso senti-lo com sua boca de eco, posso escutá-lo e não tema, pois estamos juntos, é sua loucura que me incentiva a ser forte e é minha ansiedade que o incentiva a ser um protetor e é seu medo que me incentiva a ser dura e é minha paralisação que o torna ativo; eu vejo você, Yuri. Eu poderia ter voltado de diversas maneiras para a Paraíba, amorosa, romanticazinha, mimada, mas não temos tempo para isso, algo maior do que nós está pairando no ar: o seu bicho, Yuri, é dele que tô falando. E é dele que você precisa cuidar. Agora saiba: eu quero você e estarei do seu lado; você pode ver meu bicho também, ¿não pode? Por isso que nunca seremos capazes de nos esquecermos... E você imaginou que eu voltaria como relâmpago, daqueles kamikazes que se imortalizam no céu na forma de cicatriz. Não. Eu retornei tormenta, daquelas que puxam tudo para o ralo, inundando qualquer rastro de rua. TRECHO 3 ¿E é amor? Aquela arma apontada no peito. ¿E é dor? Interrompo a traveco e em meio a gritos enlouquecidos, eu digo: nunca rime amor com dor, caralho. Já disse, ¿não disse? Disse menino, oxe, fique calmo. É difícil ter inspiração, a gente não somo artista não. ¿Calmo? ¿Vocês pensam com o intestino? ¿E a novinha? ¿Não veio hoje? As duas travecos ficam caladas. Nós três estávamos em uma das casinhas barrocas que ficam na frente da rodoviária velha. Locais que são tomados de conta por velhinhas rugosas que cobram dez reais a hora em um quarto. Cafetinas antigas, daquelas que pariam menino como se cagassem. O quarto fedia a estragado; cama de casal no chão e uma mesa de centro. Papéis e jornais enfeitavam o espaço; nós sentávamos na cama e escrevíamos com as canetas que eu trazia de casa. Elas arregalaram os olhos e começaram a me escutar. Poesia, queridas, fiquei de pé, é se perder em território linguístico. Já diria o infeliz Octavio Paz, “somos filhos do romantismo alemão”, filhos dessa ideia da inspiração, da luz no poeta, o abençoado das palavras, ora não, não existe essa abominação. Antes os verdadeiros pioneiros do século XIX, o simbolismo, a decadência, somos nós; Rimbaud, Mallarmé e Baudelaire, antes este último nome, o primeiro dos malditos e modernos. Aqui para vocês, uma cópia de Flores do Mal... Leiam e, na próxima classe, digam o que acharam. Digam da maneira de vocês, mas digam. Já diria Baudelaire, “ser sempre poeta, incluso na prosa”, atrevo a dizer, agora citando Yuri Quirino - eu próprio, caso não saibam - ser sempre poeta incluso na vida. E vocês, assim como eu, são poetas na vida. A ruptura é um retorno às origens e o dia-a-dia de vocês é pura ruptura. Vocês têm o que, mas não tem o como. Mas ter o que é mais importante do que o como. O que há de estudantes de literatura preenchidos pelo como não há como contabilizar, são bilhões, trilhões, e nenhum deles tem o que, o que, o que, ¿o que vou contar? Nada. Baudelaire vivia atrás do que, bebendo putas e comendo vinhos. Rimbaud abandonou tudo, ainda ninfeto, para virar traficante na África. ¿E Artaud? ¿Que viveu sua própria obra transgressiva, respirando utopia e vomitando manifestos dilacerados e falidos? Eles tinham vida, amores, cheios de que, atravessados pelo como, resultando a mistura em dinamite lapidada. ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Matar amores, gente, cotidiano, trabalho, algo deve tombar. Dissecar a linguagem e jogá-la em cima do cadáver, só assim a poesia pura renascerá. Repitam comigo: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? As duas ficam sem jeito. Começo a pular e grito: repitam. Elas repetem: ¿O que deve morrer para a escrita surgir? Você, eu aponto para a travesti de peruca loira, escreva uma poesia agora, sem pensar em métrica ou rima, assassine o soneto: escreva algo envolvendo morte, isso mesmo, quero algo com efeito poético e que carregue finitude. Ela pisca os olhos freneticamente, empolgada, pega a caneta, pensa por alguns segundos e começa a escrever. TRECHO 4 A depressão vinha. Luciana não foi exclusividade, com Malena também teve distância no relacionamento. Desde pequeno, em Minas Gerais, após mudanças e mais mudanças de cidades, eu lutei contra a dor do adeus. Sinto-me feito aqueles soldados traumatizados do Vietnã, ao invés de crises sobre cadáveres, tenho crises de amor. Não há como produzir dessa maneira, sabendo que a mulher que você tanto quer está em outro lugar. Nunca consegui concretizar um relacionamento normal, sempre teve barreiras em forma de bueiros, longos e negros, tão afastados das minhas mãos que nem conseguiria medir quilometragem. Fecho o notebook e não respondo o recado de Luciana. Preso em Campina Grande, sem trabalho, sem escrever, sem nada. Meu pai é um bom homem, vem até minha casa e diz que pagará o aluguel, mas que não rola de ser assim para sempre. Sei que você é poeta, filho, ele diz, sei que você ganhou prêmios, mas porra, vai trabalhar, cacete. E eu abaixo a cabeça. Observo a varanda, três andares, no máximo conseguiria ficar aleijado. Tentar se matar e fracassar é uma das coisas mais patéticas do universo, a outra são as coisas que dizemos quando estamos amando. Ou seja, eu estava próximo de ser o maior patético do universo. Crise de gente branca é deplorável. Decido dar uma volta pelo meu bairro, Catolé, e vejo o quanto cresceu. Agora tem prédios onde havia barro, tudo desenvolve, cresce dentro do ecossistema das moradias humanas, prolifera feito barata e não existe remédio que as extermine. Agora é obra diariamente, gritos de pedreiro, assovios, movimento, tudo indo para frente. Agora é imobiliária, martelo, trator, pastilhas, argamassa, base, mão, capacete, madeira, capital, investimento, e só sei que tudo mudou. As coisas evoluem, os corpos não. Movimento é vida. TRECHO 5 O idoso disse que quando o pai foi encontrado morto, a cidade passou por um momento de horror. A filha do prefeito estava grávida e, quando foi parir, teve uma criança sem cabeça e braço. O bebê nasceu vivo, chorava, ria, vivia: ninguém sabia como, mas era possível escutar seu choro reverberando por toda a cidade; os médicos tentaram encontrar os membros dentro da vagina da mulher, mas não havia nada, literalmente nada; o bebê sem cabeça e braço chorava sem parar, assombrando a todos da cidade. Até que o marido da mulher matou o filho e foi preso. Cinco dias depois, o marido foi encontrado em sua cela transformado em um bode vermelho: os policiais o mataram e jogaram a carcaça do animal no rio; dois dias depois, o rio estava vermelho; as plantações deixaram de crescer; os alimentos apodreceram; chovia pregos diariamente; a maioria da população se mudou para a capital, e os que ficaram tiveram que passar por uma temporada terrível e escassa de comida, pois tudo apodrecia. Os moradores das cabanas enlouqueceram e muitos se mataram e outros imploravam ajuda a Deus. Todos os bebês nascidos neste período vinham com alguma deficiência, a maioria nascia com demência ou com alguma parte do corpo faltando. Bebês decapitados e insanos foram se infestando pela cidade de Tigre; maridos bodes, mulheres perdendo os dentes e se tornando ninfomaníacas, bandidos se transformando em ratos, chuvas ácidas toda quinta-feira e eventuais terremotos e trovões de sangue; a maldição cessou quando a mansão caiu no Delta do Rio Paraná; o idoso não sabe a data em que isso aconteceu, perguntei o ano ao menos, mas ele virou as costas e pediu para eu esquecer essas coisas: a família di Paula viveu em todos os séculos, dias, anos, não tem um dia para isso, só há esquecimento e é o que se deve fazer, ele disse em castelhano e fechou a porta envelhecida da sua casa. Manuel di Paula carrega séculos de trevas em suas costas, uma maldição familiar, uma herança que o aterroriza até hoje. E também aterroriza a todos nós que aqui resistimos e escrevemos o que restou do todo.

Festival de Berlim chega ao fim. Conheça os vencedores dos Ursos de Ouro e Prata

Festival, que teve recorde de filmes brasileiros participantes, terminou sem nenhum prêmio para o Brasil, que novamente usou festivais internacionais para protestos [caption id="attachment_87613" align="aligncenter" width="620"] "Sobre Corpo e Alma", da cineasta Ildikó Enyedi, venceu o Urso de Ouro de melhor filme[/caption] Rui Martins Especial para o Jornal Opção, de Berlim O estranho filme húngaro "Sobre Corpo e Alma", da cineasta Ildikó Enyedi, no qual um homem e uma mulher têm o mesmo sonho, embora não se conheçam e só trabalhem no mesmo lugar, ganhou o Urso de Ouro de melhor filme no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Os sonhos ocorrem numa floresta. Maria, controladora da qualidade da carne bovina e da presença de gordura num matadouro moderno, sonha ser um alce fêmea; Endre, o patrão do matadouro sonha ser o alce macho. [relacionadas artigos="87126, 87441, 87225"] Essa coincidência de relações entre eles e o casal de alces intriga uma psicóloga, que descobre que ambos sonham a mesma coisa — uma atração entre os animais, que se aproximam, mas não copulam. Informados pela psicóloga, ambos passam a se perguntar sobre os sonhos da noite anterior, se aproximam e chegam a dormir no mesmo quarto, a pretexto de conferir os sonhos. Maria tem tudo de uma mulher fria, solitária, que, mesmo na cantina, procura ficar só para comer. Tem tudo de uma frígida, que vê pornografia por curiosidade e não para se excitar. Endre procura entrar nesse mundo frio e reservado. Esse mesmo tema de mulher frígida ou com problemas de relacionamento sexual surgiu no filme romeno "Ana Meu Amor", revelando ser provavelmente uma consequência do isolamento das pessoas na sociedade moderna. O Urso de Prata do Grande Prêmio do Júri foi para o filme do cineasta franco-senegalês Alain Gomis, "Félicité", nome de uma mulher congolesa em Kinshasa, que canta num bar e cujo filho motoqueiro sofre um acidente e perde uma perna. Entre cantos e músicas, perda de emprego, falta de dinheiro para tratar do filho, Félicité, cujo nome quer dizer felicidade, se mantém forte, decidida, lutadora, social e exuberante, nada tendo a ver com a Maria apagada e fria do filme Urso de Ouro. O terceiro prêmio pela ordem de importância, é o Urso de Prata Prêmio Alfred Bauer para filmes que trazem alguma inovação. No caso, o filme da polonesa "Agnieszka Holland", cujo título "A Pista" consiste numa trama entre policial e naturalista, envolvendo uma engenheira aposentada, Duszejko, vivendo numa região montanhosa perto da fronteira com a República Checa. Vidrada em astrologia, ela garante poder dizer a data de sua morte, com base na data do seu nascimento e signo astral. Bem na moda, ela é vegetariana e não suporta temporadas de caçadores, carnívoros em geral e muito menos quem mata cachorro para medir a pontaria. Por isso, fotos de caçadores com seus troféus podem se transformar num guia para assassinatos em série, cometidos discretamente e de maneira orgânica e biológica. O Urso de Prata de melhor direção foi para o filme o "Outro lado da Esperança", dirigido pelo finlandês Aki Kaurismaki, no qual o papel principal é de um sírio clandestino acolhido por um dono de restaurante, enquanto a Finlândia se alinha entre os países sem solidariedade. O Urso de Prata de melhor interpretação feminina foi para a coreana Kim Min-hee, no filme "Sozinha de Noite na Praia", de Hong Sangsoo. O Urso de Prata de melhor interpretação masculina foi para Georg Friedrich, no papel de um pai numa viagem pelas montanhas desertas norueguesas, junto com o filho que o detesta por ter se separado da mãe. Filme "Noites Claras", de Thomas Arslan. O Urso de Prata do melhor roteiro foi para Sebastian Lelio e Gonzalo Maza, pelo filme transgênero "Uma Mulher Fantástica", de Sebastian Lelio, com a transsexual Daniela Vega. O Urso de Ouro para o melhor curta-metragem foi para o cineasta português Diogo Costa Amarante com o filme "Cidade Pequena". O filme "Pendular", de Julia Murat, ganhou o prêmio da crítica internacional FIPRESCI. Como previmos, os filmes brasileiros não ganharam nenhum prêmio, nem os oficiais dos júris independentes. Depois das manifestações político-partidárias em Cannes, Locarno e agora em Berlim, fica nossa sugestão para os cineastas e atores brasileiros suspenderem essas iniciativas que vão se tornando ridículas e, se continuarem, acabarão virando piada. Deixem o manifesto, as faixas e os slogans para quando o filme ganhar algum prêmio, não antes. Não utilizem pretextos políticos para chamar atenção sobre seus filmes. Rui Martins esteve em Berlim, convidado pelo Festival Internacional de Cinema

Apesar de ainda ser supervalorizado, Concretismo não passou de um fiasco

Buscando reagir à “perda de qualidade” na poesia brasileira, observável na passagem da geração de 1930 para a geração de 1945, o Concretismo revelou-se um movimento catastrófico