Por João Paulo Lopes Tito

Diretor demorou a entender que, depois de atingido certo nível de qualidade no cinema, não dá para ser qualquer coisa. Novo filme dá indícios de ser fruto deste entendimento
[caption id="attachment_90718" align="alignleft" width="620"] Transtorno Dissociativo de Identidade abre as cortinas para um show de interpretação de James McAvoy, que vive Kevin, um criminoso que tem 23 personalidades[/caption]
Depois de se engalfinhar com Will e Jaden Smith no fiasco de "Depois da Terra" (2013), já vindo de uma derrota vergonhosa com "A Dama da Água" (2006), choveram críticas e diagnósticos de que M. Night Shyamalan já era (aliás, merece um estudo o fato de os franceses, ao contrário dos americanos, terem continuado a dar suporte às suas obras de forma mais incisiva mesmo durante esse período conturbado).
A verdade é que Shyamalan esperneou durante um tempo até descobrir que, depois de atingido certo nível de qualidade no cinema, não dá para ser qualquer coisa. É preciso, no mínimo, atender às expectativas. Daí ele lança esse petardo que é "Fragmentado" (2017), contrariando a torcida adversária.
A ideia inicial do filme é bem simples. Inclusive, já a encontramos distribuída por algumas outras obras como "O silêncio dos inocentes" (1991), "A cela" (2000) e "O quarto de Jack"(2015). Um cara vigia três garotas por alguns dias, as sequestra e encarcera em algum lugar isolado, sem contato com o resto da civilização. A missão do telespectador é tentar descobrir o que está acontecendo e acompanhar as tentativas (frustradas ou não) de fuga das reféns. Um pouco de síndrome de estocolmo ali, traumas de infância acolá, enfim.
A coisa começa a ficar realmente interessante quando descobrimos, junto com as sequestradas, que o captor é portador de um Transtorno Dissociativo de Identidade (popularmente conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla), o que abre as cortinas para um show de interpretação de James McAvoy. Kevin, o criminoso interpretado por McAvoy, tem nada menos que 23 personalidades (a do moleque de 9 anos, Hedwig, é simplesmente sensacional). Na tela, desfilam um pouco menos, mas encontramos referências a todas elas espalhadas pelo filme.
Assim que se dá conta disso, Casey, uma das reclusas, interpretada também de forma magistral por Anya Taylor-Joy (revelada no thriller "A bruxa", de 2015), começa a ousar em um truque psicológico ou outro na tentativa de penetrar na mente do sequestrador. Vale ressaltar, aliás, a excelente cenografia, que transforma todo o ambiente do cativeiro em uma excelente metáfora para essa mente doentia de Kevin.
É interessante que, desde o início, percebemos certo tirocínio em Casey. Algo mexe com ela de forma diferente em tudo aquilo (perceba a forma como ela rapidamente aconselha sua amiga Márcia a escapar da primeira investida de Kevin, agora assumido na personalidade "Dennis" – não se preocupe, não vou revelar mais do que isso). Infelizmente, por mais que Casey e sua trupe tentem, tudo leva a crer que nunca será possível saber tudo sobre Kevin/Dennis/Hedwig/Patrícia e todas as outras personalidades.
Inclusive, a personagem de Betty Bluckey, Dra. Karen Fletcher, de força dramática um pouco menor, até tenta nos auxiliar nessa dissecação das personalidades. Mas existe sempre uma porta a mais a ser aberta. E de soslaio, indícios de que algo mais brutal está brotando daquela moçoroca de personalidades – como o pôster já avisa, muito possivelmente uma 24a personalidade.
Shyamalan, como sempre, entrega uma direção instigante. O uso constante de câmeras subjetivas (as mais hitchcockianas, como os olhares através de buracos de fechadura, frestas de portas e de armários, são sempre as mais prazerosas), ou em planos móveis (os famosos "travellings") conduzem sempre o fio da atenção em meio a diálogos reveladores – em que pese num ritmo um pouco mais lento dessa vez.
Mas o grande responsável por jogar o diretor de volta aos holofotes após os desastres de público e crítica que se tornaram as últimas duas ou três de suas grandes produções é o roteiro. Shyamalan levou algo em torno de 10 anos para escrevê-lo, instigado pelos estudos em psicologia que sua esposa vinha levando desde então. Aliás, sabendo disso, torna-se ainda mais interessante que o filme tenha repercutido no público de hoje, uma década depois.
Existem algumas falhas básicas, como ter escalado três garotas como vítimas, mas fazer um bom uso narrativo de apenas uma – nossa protagonista. As outras duas são estereotipadas, sem uma base de construção (não sabemos absolutamente nada sobre elas – exceto que são perfeitinhas demais), e mal sabemos seus nomes – algo que sempre indica um futuro não muito promissor na trama. Mas, situando o filme dentro do gênero a que se propõe, nada que não possa ser perdoado.
Muita gente ficou perdida com o final do filme. Não é para menos. Existe ali uma referência surpresa a uma de suas outras obras – algo que o diretor fez questão de comentar em sua mais recente visita ao Brasil. Aliás, acostumados que estamos a grandes viradas de enredo ("plot twists"), que se tornaram a marca registrada de Shyamalan (as mais famosas, em "Sexto Sentido" e "A Vila", realmente são de cair da cadeira), o fim desse filme perde um pouco a força ao se escorar apenas nessa "surpresa". Pessoalmente, saí arrepiado. Mas, vá lá, assista e julgue por si.
A mensagem que fica é que M. Night Shyamalan está de volta na cena. "Os que sofrem são os mais evoluídos", diz uma das facetas de Kevin. Agradando a público e crítica (leia-se, faturando alto sem perder a qualidade), quando as luzes da sala de projeção se acendem, temos uma certeza: vem mais coisa boa por aí.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

Longa não é uma cinebiografia, mas um retrato bem feito da mulher que revolucionou a psiquiatria brasileira ao aplicar métodos que reumanizavam os pacientes
[caption id="attachment_90558" align="alignleft" width="620"] Nise da Silveira, representada no filme por Glória Pires, foi a primeira médica no Brasil a aplicar as artes plásticas como tratamento psiquiátrico[/caption]
A primeira cena de "Nise: O coração da loucura" (2015), de Roberto Berliner, incomoda pela sutileza. Um plano aberto, chapado em um grande muro cinza, revela um pequeno portão que, em minutos, recebe pancadas de uma mulher querendo entrar. A câmera deveria estar fixa, mas não está. A técnica de câmera na mão, utilizada em um momento totalmente inapropriado, transmite, nas entrelinhas, o incômodo e a falta de adequação que testemunharemos na próxima hora e meia, assim que aquela personagem entrar para além do muro. A moça querendo entrar é Nise da Silveira, e o muro cerca o Centro Psiquiátrico Nacional Pedro II – no Engenho de Dentro, Rio de Janeiro – e a mente de centenas de internos.
Nise está entre as primeiras mulheres no Brasil a se formar em Medicina, em 1931. Isso o filme não mostra. Aliás, um dos aspectos instigantes da obra está justamente no fato de ser um recorte rígido de um período específico da vida de Nise, deixando-nos todos curiosos a respeito do antes e do depois de sua passagem pela História. Isso obviamente tem um motivo de ser.
O que se vê na tela inicialmente é a sua reintegração enquanto funcionária da saúde pública, adentrando um meio claustrofóbico física e socialmente. Médicos empertigados no machismo de seus jalecos brancos dividem suas teorias mal comprovadas com o sofrimento escatológico de pacientes à margem da sanidade. Um purgatório na Terra, esquecido por Dante e pelo resto da humanidade. Não há espaço para a luz, para a esperança, ou para qualquer expressão individual criativa – consciente ou inconscientemente.
A chegada da médica, entretanto, causa um rebuliço na rotina do sanatório. Ao aplicar técnicas pioneiras como o uso das artes plásticas e do contato com animais como forma de humanização – fruto muito mais de sua capacidade de observação e intuição do que de quilos de literatura médica – Nise revoluciona a psiquiatria. Os reflexos podem ser apontados até hoje por qualquer profissional da área.
O que o filme deixa de lado, talvez numa preocupação excessiva em evitar qualquer tipo de propaganda ideológica, é que Nise da Silveira era militante comunista na juventude. Há tímidas referências em um ou outro diálogo. Nascida em Maceió, mudou-se para o Rio de Janeiro em 1927, já casada com o sanitarista Mário Magalhães da Silveira, onde começou a engajar-se nos meios artístico e literário, principalmente com aplicação na área médica. Chegou a militar pelo Partido Comunista Brasileiro. Em meados da década de 30, entretanto, durante a Intentona Comunista, foi denunciada por uma enfermeira enquanto carregava livros de doutrina marxista, o que a levou à prisão em 1936. No presídio Frei Caneca, permaneceu por mais de um ano, onde fez amizade com Graciliano Ramos, recluso também naquele estabelecimento. Fato curioso é que Nise é mencionada no livro "Memórias do Cárcere", do alagoano.
Encontramos Nise nesse ponto. Liberta, é reincorporada ao serviço público em 1944. A bela interpretação de Glória Pires nos mostra uma personalidade austera, destemida, decidida a deixar a militância política de lado para se dedicar à sua missão de vida: a psiquiatria. Trocou o livro vermelho de Marx pelo de Carl Gustav Jung. A cara feia dos colegas médicos não lhe mete medo.
Decidida a combater os métodos violentos de tratamento mental amplamente estimulados na época, como a lobotomia e a eletroconvulsoterapia, seus métodos humanísticos libertam expressões do inconsciente de seus pacientes (a quem prefere chamar de "clientes"), restabelecendo de forma mais eficaz o elo destes com a realidade através da simbologia. Os resultados são surpreendentes, e até hoje são tidos como referenciais.
Aliás, suas descobertas nessa área a levaram a estabelecer contato com seu mestre Jung – algo retratado en passant na tela, mas de reflexos profundos em nosso país. Nise foi a responsável por introduzir e divulgar no Brasil os estudos da psicologia junguiana. Foi pioneira também nesse aspecto.
O filme não são só flores. Escorado numa mise-en-scène essencialmente novelesca, com uma ou outra atuação beirando à canastrice e uma trilha sonora bem modesta, a sensação que fica é que a história de Nise merecia um pouco mais. Certos diálogos soam muito mecânicos, e algumas dinâmicas propostas iniciam-se e interrompem-se de forma desnecessariamente abrupta – por exemplo, a sequência do jogo com a bola de meia (não vou contar mais do que isso, prometo!).
Porém, amparando-se em um roteiro que utiliza fórmulas já consagradas em "Patch Adams - o amor é contagioso", "Uma lição de amor" e "Tempo de despertar", e com excelentes atuações de Augusto Madeira, Claudio Jaborandy, Júlio Adrião e Fabrício Boliveira, não é de se estranhar que a obra tenha batido a marca de 23 mil ingressos vendidos em sua estreia, mesmo com exibição em apenas 56 salas em todo o país. Algo louvável para um filme nacional parcamente divulgado e que contou com um orçamento abaixo da média.
Berliner não se propõe a fazer uma cinebiografia completa, propriamente dita. Escolhe apenas uma janela para abrir, retratando o período em que a médica desenvolveu seus trabalhos no Engenho de Dentro. Mas uma janela significativa, que mostra a revolução iniciada por Nise na área da psiquiatria, o impacto de seus estudos na introdução da obra junguiana no Brasil, e seus esforços individuais na tentativa de superar pensamentos retrógrados arraigados na cultura médica e sanitarista do país – dentro e fora das academias.
É fundamental, entretanto, que se tenha um pouco mais de curiosidade para ultrapassar o excerto representado na obra de Berliner e descobrir mais sobre essa figura ímpar da medicina, da psiquiatria, da psicologia e, porque não, das artes plásticas no Brasil e no mundo. Apenas para começar, fica a sugestão do documentário “Imagens do Inconsciente”, de 1986, dirigido Leon Hirszman e com roteiro da própria Nise, recentemente lançado em DVD no país. As obras feitas por clientes do Engenho de Dentro também podem ser facilmente apreciadas numa busca rápida pelo Google.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

Tom Zé não depende de instrumento algum para criar música e já existia como gênio em países que sabem valorizá-lo. Por isso é, ainda hoje, mais conhecido no exterior
[caption id="attachment_89440" align="alignleft" width="620"] Tom Zé, o artista que não depende de instrumento algum para fazer música[/caption]
Em 1967, a recém fundada Música Popular Brasileira (MPB), tida ainda como um movimento artístico bem mais do que como um gênero musical, saiu às ruas numa manifestação explícita bradando, dentre outras coisas, contra a guitarra elétrica. Artistas como Elis Regina, Jair Rodrigues, Geraldo Vandré, Edu Lobo e até Gilberto Gil levantavam a bandeira do "Defender o que é nosso", transformando a guitarra em um símbolo da invasão estrangeira na cultura nacional.
Em que pese o idealismo de valorizar o patrimônio artístico e cultural brasileiro, Tom Zé nunca teve a pretensão de achar que sabe o que é a essência da música nacional e o que é a estrangeira. O que é instrumento gringo e o que é instrumento tupiniquim. Pelo contrário, sempre acreditou que o valor não deve ser dado aos meios, mas sim ao conteúdo que reflui —
esse sim, portador da identidade cultural. O artista não deve colocar seu ego (e muito menos um instrumento musical) à frente de sua obra.
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Essa e outras opiniões estão semeadas pelo filme "Fabricando Tom Zé", obra de Décio Matos Jr., lançada em 2006 e exibida nesta semana no Cine Cultura, dentro da programação da Bienal Internacional de Cinema Sonoro (BIS), que acontece em Goiânia até o dia 26 de março. O filme acompanha momentos interessantíssimos com o artista — ora camuflado em sua equipe, no decorrer de uma turnê europeia que passa, dentre outros lugares, por Veneza, Turim e Paris; ora explicitamente, com entrevistas bem humoradas e reveladoras.
Não há possibilidade de se fabricar um Tom Zé. Porque "fabricar" — um processo industrial e dependente de planejamentos, projetos, moldes e intenções objetivamente elaborados — pressupõe a replicabilidade. Tom Zé é único. Daí a ironia do título da obra de Décio que, a pretexto de tentar explicar o artista, faz uma desconstrução de seu modo de vida e, principalmente de criação musical na tentativa bem sucedida de valorizar sua vida e sua obra.
Nesse contexto, Tom explica a uma câmera sempre presente, mas muito mais voyeurista do que instigante (ao contrário dos filmes de Eduardo Coutinho, por exemplo), que as suas deficiências enquanto artista padrão o levaram a desenvolver outras formas de expressão musical. Sua deficiência enquanto instrumentista ou cantor o forçaram a procurar novos instrumentos e novas vozes capazes de expressar de forma fiel sua ânsia em ser escutado. Em suas palavras, se existiam tocadores de guitarra e de enceradeira, e se já havia muitos bons guitarristas, seria ele o primeiro tocador de enceradeira. Às favas a guitarra elétrica. Ou o piano, ou o trombone, ou qualquer forma de limitação do artista em si.
Como um dos expoentes do movimento Tropicalista nas décadas de 1960 e 1970, Tom Zé acabou esbarrando no ostracismo com a ditadura e o fim do movimento. "Nunca tive problemas com a ditadura. Mas que ela me fodeu, fodeu", declara a certo ponto, contando sobre seus embates com a censura. Desvalorizado por seus próprios pares, Tom Zé nunca esteve no centro das atenções. Até hoje, seu nome é muito mais exaltado no exterior do que dentro do próprio país. Entrevistas com o artista em sua terra natal, que lhe traz, até hoje, os bons ares e a calma da vida interiorana, se contrastam na tela com grandes públicos em festivais europeus. Mas isso nunca foi problema para ele.
Uma sequência em especial — uma das melhores do filme — retrata uma briga entre ele, sua banda e um técnico de som do Montreux Jazz Festival, colocando para fora todo o inconformismo de Tom com a arrogância dos países desenvolvidos em relação à cultura brasileira. Afinal, talvez sua própria vida e obra reflitam, de maneira direta, os empecilhos que o estereótipo do subdesenvolvido carrega nas costas para se afirmar no exterior e no próprio país. Mas não é preciso atear fogo às guitarras elétricas. "Eles só não podem nos tratar de forma vil", declara, inconformado.
Com variações entre arrogância ("o rock nacional é um rock traduzido, essa é a verdade") e humildade, principalmente nos relacionamentos pessoais ("eu to tentando, na minha vida, ter a felicidade de trabalhar sem arrebentar meu estômago, nem tratar a Neusa [sua esposa] mal"), Décio mostra que Tom é um ser humano comum, mas um artista único, com uma obra vasta e ainda bastante inexplorada.
Não é possível fabricar Tom Zé. Ironicamente, no final da década de 80, David Byrne, um produtor norte-americano, sem saber que era exceção, conseguiu dimensionar para o próprio Brasil o artista que não depende de instrumento algum para criar música, e que já existia como gênio, "made in brazil", em países que sabem valorizá-lo. O cara que veio explicar para confundir.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

A lembrança é o que perpetua nossa existência enquanto agentes no mundo e é contra isso que nosso velho Logan luta no novo e último filme sobre o "imortal" Wolverine
[caption id="attachment_87443" align="alignleft" width="620"] A falta de perspectiva do velho Wolverine é o grande vilão do novo longa sobre o mutante[/caption]
Milan Kundera, em seu livro "A imortalidade", declara a certa altura que o homem pode pôr fim à sua vida, mas não pode fazê-lo com sua imortalidade. Escapa dos homens o controle do tempo — tanto o biológico, quanto ainda mais o psicológico. E se a fugacidade da vida biológica é a única certeza que carregamos, por outro lado a idade mental permanece relativamente estável no decorrer do tempo. Distraído, todo ser humano é um sem-idade — constatação também de Kundera.
Quando assistimos ao novo longa de James Mangold, vemos o velho e imortal Wolverine trabalhando como chofer de limousine em algum lugar na fronteira dos Estados Unidos com o México. Abatido, dá evidentes mostras de cansaço. As inúmeras lutas e perdas da vida o consomem. De maneira paradoxal, é como se a imortalidade o matasse lentamente, dia após dia. Mas é o velho Logan que os fãs gostariam de ter visto nas telas desde o início.
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Wolverine é um personagem concebido em 1974 por Len Wein e John Romita, como membro do grupo de mutantes "X-Men", da Marvel Comics. Eventualmente também participou de outras equipes de super-herói, como a Tropa Alfa ou os Novos Vingadores. Um sucesso tão grande que terminou por alçar voo solo, ganhando uma revista própria.
A imortalidade do mal humorado James Howllet (nome "civil" do herói) é garantida por um poder de cura (conhecido nos quadrinhos como "fator de cura") e por um esqueleto revestido artificialmente de Adamantium, uma liga metálica fictícia indestrutível. É tudo o que você precisa saber para assistir a esse novo filme da Fox em parceria com a Marvel Entertainment.
Inserido no mesmo universo dos filmes anteriores dos X-Men e dos filmes solo de Wolverine (sempre interpretado por Hugh Jackman), esta obra de Mangold (que também dirigiu o controverso "Wolverine: Imortal") consegue se sustentar sozinha. Aliás, Wolverine é um personagem tão complexo — e exatamente por isso, tão rico — que pode ser considerado com o único sobrevivente de todos os nove filmes já produzidos para os mutantes (botando na lista também "Deadpool", de Tim Miller, com todas as tiradas hilárias sobre o velho Wolvie e seu alter ego da vida real, Jackman). Dentre obras promissoras como "X-Men - Primeira Classe" (2011, Matthew Vaughn) a fiascos como "X2" (2003, Bryan Singer), a franquia tem se renovado paulatinamente, mantendo apenas uma constante por 17 anos: Logan.
Nos quadrinhos, Wolverine é um cara extremamente violento, anti social e beberrão. Até o último filme lançado, muito pouco desse lado havia sido convincentemente apresentado ao público, mas isso mudou. A obra recebeu classificação indicativa "Rated R" nos Estados Unidos — o que equivale a algo como "indicado para maiores de 18 anos". No Brasil, pegou "16 anos", o que tem levantado as orelhas dos fãs.
Além da questão da classificação indicativa, a obra usa como propaganda o fato de contar, provavelmente, com a última atuação de Hugh Jackman como Wolverine.
Mas vamos logo ao cerne da questão: "Logan" é um filme de ação que cumpre muito bem seu papel. Acostumados que estamos com o visual excessivamente claro e didático de "Vingadores", talvez esse Wolvie desagrade alguns. Ostenta uma fotografia melancólica e árida, imiscuída à paisagem desértica do interior do sul americano, traduzindo o estado de espírito do velho Logan (o que orna, também, com a despedida de Jackman).
Em termos de adaptação, talvez esteja tão bom quanto os filmes de "Sin City", o Batman de Nolan, a saga "Kick-Ass" ou o último "Justiceiro". Sem dúvida alguma é um filme mais sombrio, com uma carga dramática pouco comum a filmes baseados em HQs. Depois da exibição, fica até mais fácil colocar o personagem na mesma estante de Max Rockatansky (de Mad Max), ou do Han Solo de Harrison Ford — figuras controversas, solitárias, com sua própria lógica de vida, mas sem dúvida alguma, heróis. Prepare-se, porque tem muita pinga, sangue e boca suja (as cenas de ação são fantásticas).
A jornada de Logan é completamente sem sentido, inicialmente. Porque assim tem sido a sua vida, afinal de contas. A imortalidade é uma maldição. Wolverine não sabe mais o que esperar do mundo, e se limita a cuidar devotadamente do nonagenário professor Charles Xavier — o sempre ótimo Patrick Stewart, numa interpretação bem mais livre e descomprometida do que nos últimos filmes. Logan vive num mundo em que seus conhecidos já se foram. Poucos ainda restam. Aparentemente pelo isolamento reprodutivo, os mutantes deixaram de se espalhar pelo mundo. Não há notícias de novos "mutunas" há muito tempo, o que limita as perspectivas dos vivos e envenena e envelhece quem ainda tenta se sustentar sobre as pernas. É essa falta de perspectiva o grande vilão da trama. O tempo como algoz, essa borracha implacável.
As coisas começam a mudar de tom quando bate à porta de Logan a pequena Laura (a atriz espanhola Dafne Keen), uma garota extremamente violenta (lembra-se da Hit-Girl, de "Kick-Ass"? Uma versão mexicana arisca dela — se cuida, Trump!) e que anda aos tapas com uma poderosa corporação que tem interesse em desvendar — e, muito provavelmente, exterminar — seu DNA.
No romance “Rimas de vida e de morte”, Amós Oz, proclamando uma sentença de morte muito mais óbvia e cruel do que a que estamos acostumados, diz que estaremos no mundo só até o dia em que morrer a última pessoa a se lembrar de nós. A lembrança é o que perpetua nossa existência enquanto agentes no mundo. É contra isso que nosso velho Logan luta. E é nisso que, agora com Laura, talvez encontre também sua redenção.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

Filme de Barry Jenkins é uma pedrada na vidraça da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, que foi acusada de racismo na última edição do Oscar
[caption id="attachment_87769" align="aligncenter" width="620"] "Moonlight" consegue, nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigar a busca permanente pela essência do que é "viver" e "ser"[/caption]
"Quem é você, Chiron?". A pergunta que aparece no trecho final de "Moonlight: Sob a Luz do Luar" se arrasta pelas entrelinhas de todo o novo filme de Barry Jenkins, desde o começo. Mas as cenas iniciais não são sobre o protagonista Chiron.
Juan, vivido por Mahershala Ali, é um traficante de bairro que evita conflitos e não se orgulha do que faz. Na rotina de um dia qualquer é interrompido pela correria de crianças — o menor, fugindo do bullying, tenta evitar ataque dos maiores que o perseguem. Assim somos apresentados a Chiron: acuado, arisco, desconfiado. Apelido, "Little".
O filme acompanha três fases da vida do franzino "Little". A infância, período em que se afiniza à figura masculina de Juan e luta contra a violência viciada de sua mãe, que finge que educa e tem ciúmes de quem quer que se aproxime durante sua constante ausência; a adolescência, em que firma sua independência em relação à vida caótica da genitora, mas ainda não se posiciona firmemente perante a vida social na escola e na vizinhança; e a fase adulta, na qual ganha mais autonomia, toma posse de sua masculinidade e se escora no corpo forte e avantajado para se impor como traficante, mas que ainda não tem muita certeza sobre nada.
O filme aborda de forma genérica questões raciais, sexuais, sobre drogas e também abandono familiar. Mas não se esgota só nisso.
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Depois de muitos protestos Hollywood afora — inclusive na noite do 88° Oscar, no ano passado, em que Chris Rock vestiu a roupa de camaleão e subiu no muro para tentar desempenhar a diplomática missão de, ao mesmo tempo que receber e valorizar as críticas à falta de reconhecimento a artistas negros no mercado cinematográfico, promover uma reconciliação destes com a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas — "Moonlight" é uma verdadeira pedrada na vidraça.
Indicado a oito categorias da maior premiação do cinema americano, mas injustificadamente não tão ouriçado quanto "La La Land", de Damien Chazelle, o filme conta com um elenco principal só de artistas negros. Além de Trevante Rhodes, estão no casting a cantora Janelle Monaé, Naomie Harris ("Mandela: O caminho para a liberdade"), Mahershala Ali ("Um Estado de Liberdade"), André Holland ("Selma") e Edson Jean ("Cães de Guerra"). Barry Jenkins conduz a locomotiva (dirigindo e roteirizando) demonstrando, de uma vez por todas, que a Academia não pode — e nem se quisesse, conseguiria — deixar passar batido o poder da cultura negra.
Aliás, aqui cabe uma observação importantíssima sobre o papel do filme em toda essa discussão sobre o reconhecimento do trabalho de artistas negros. Se você pegar os principais filmes americanos protagonizados por negros nos últimos anos, ou com um envolvimento mais direto desses artistas, dá para chegar facilmente à constatação de que a temática acaba se esgotando na luta pela igualdade, na denúncia ao preconceito e na retrospectiva histórica das conquistas negras (esse ano mesmo, temos em destaque "Estrelas além do tempo", "Loving", "Eu não sou seu negro" e "Um limite entre nós"). Não que devamos dar pouca importância a isso — de maneira alguma! É indispensável que a humanidade nunca se esqueça das atrocidades já cometidas em nome da supremacia branca, e que continue avançando na eliminação das desigualdades. Principalmente no já surrado território americano.
Mas há que se convir que a produção cinematográfica (e cultural, de maneira geral) não pode ficar restrita a essa temática — aliás, à temática alguma! A igualdade se alcança, também, na liberdade de explorar temáticas universais que estão lá, sempre existiram, mas que ainda perdem em urgência para temas mais profundos como a luta pela igualdade racial.
Assim é que Barry Jenkins consegue deixar um pouco de lado as mazelas advindas do preconceito racial e de gênero (ainda que não os abandone completamente — nem poderia, já que Chiron é um negro americano da década de 80, em plena descoberta de sua sexualidade) para permitir-se tratar de um tema universal: o "conhece-te a ti mesmo". O interessante é que, de forma inteligente, nas entrelinhas, ainda assim Barry nos joga essa verdade crua da busca pela igualdade: O Templo de Delfos também aconselha negros e homossexuais. Como não? Filmes "de negros" também podem falar sobre temáticas intimistas e universais de forma belíssima, sem desprezar todas as lutas coletivas.
Nesse contexto um pouco mais intimista, a beleza de "Moonlight" se revela em cada detalhe. Na trilha sonora meticulosamente inserida — delicada, melancólica, introspectiva. Na fotografia de cores frias, por vezes revelando a dureza do mundo contra o qual Chiron luta, e no qual quer se inserir. Nos olhares e diálogos curtos, mas significativos, instigando a busca permanente pela essência do que é "viver" e "ser".
No fundo, Chiron só quer se descobrir e ser aceito. Percebemos isso quando ele estranha o calor com o qual é recebido, inicialmente, por Juan e sua esposa Tereza. Se surpreende com a compreensão que depois vira beijo, oferecidos pelo melhor amigo. E, por fim, busca sofregamente por um colo, alguém que lhe compreenda sem julgamentos e lhe ofereça perspectivas, carinho, ligação. A rejeição está nos meandros da rotina comum.
"Sob a luz do luar, garotos negros ficam azuis", diz um dos diálogos. Azul de uma melancolia profunda e individual. Azul de ainda inexplorado, misterioso, quase lacônico. E azul de uma sensualidade latente. Assim se descobre Chiron. Assim se revela ao mundo, ansiando que alguém o descubra — e o acolha. Azul é a cor mais profunda.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

Kenneth Lonergan entrega um longa que, embora se aproprie de um grande clichê, é belíssimo em sua forma de tratar o assunto
[caption id="attachment_87309" align="aligncenter" width="620"] Lee e Patrick Chandler (Casey Affleck e Lucas Hedges) nos surpreendem ao personificarem a maior certeza que a humanidade já teve: apenas a morte nos espera no fim do caminho[/caption]
É fácil perder a paciência com atendentes de telemarketing, com o trânsito ou com filas de supermercado, mas quando você perde a cabeça com alguém que lhe é gentil ou lhe pede desculpas, é sinal de que algo anda muito mal.
É o caso de Lee Chandler, protagonista de “Manchester à beira mar”, o mais recente filme escrito e dirigido por Kenneth Lonergan. Kenneth já havia entregado “Conta Comigo”, bastante elogiado em 2000, mas passou ligeiramente despercebido uma década depois quando lançou “Margareth”, em 2011. Agora, retorna aos holofotes abordando um assunto comum em sua curta filmografia: a morte e suas implicações a quem permanece do lado de cá.
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O mal-humorado Lee Chandler, interpretado de forma magistral por Casey Affleck, é uma espécie de faz-tudo que trabalha numa administradora de condomínios em Boston, nos Estados Unidos. As cenas iniciais do filme nos apresentam a seus clientes costumeiros, um mais chato do que o outro, interrompidos de forma proposital pelo diretor. O corte abrupto nas transições de cena nos traz certo alívio.
Quando o filme nos conduz um pouco mais a fundo na rotina de Chandler, entretanto, chama a atenção a mistura de apatia com amargura que o zelador carrega nas costas. Tudo bem que a clientela e a rotina não ajudam, mas uma briga de bar deixa mostrar muito mais do que uma mera troca de socos e pontapés. O rosto ainda jovem de Lee revela-se uma carapaça protegendo — ou escondendo — o que de verdade habita no lado obscuro de sua alma.
Contudo, uma notícia pesada ameaça romper esse lacre. A morte de seu irmão, Joe Chandler (interpretado por Kyle Chandler), o leva a abandonar tudo temporariamente para cuidar das burocracias inerentes à fatalidade. Mesmo tendo que lidar com médicos, funerária e com aspectos legais, entretanto, Lee mantém seu acreditado autocontrole para tocar a vida.
Lee acha que está no controle de tudo. Sempre teve essa falsa impressão, mas o que vemos através das nuances que Lonergan paulatinamente disseca diante de nossos olhos — inclusive com flashbacks milimetricamente calculados — é o oposto disso. Chandler não consegue lidar nem consigo mesmo. Está o tempo todo prestes a explodir — mas esse “não explodir” o consome. O seu “foda-se” soa sempre muito mais sincero que o seu “muito obrigado”. E nas suas brigas diárias, tentando organizar um turbilhão de sentimentos engasgados, a vida lhe empurra muito mais do que consegue suportar.
É assim que descobre, por exemplo, que o irmão lhe empurrou a missão de ser o tutor do sobrinho, Patrick (interpretado por Lucas Hedges), de quem era muito próximo na infância, mas que por circunstâncias da vida acabou se afastando. Em meio a risadas e sobrancelhas franzidas, Patrick se incumbe de ajudar o diretor na missão de desvendar a esfinge Lee a nós, espectadores.
A Manchester do título do filme não é a cidade inglesa, como alguns apressados poderiam concluir. Tampouco aquela vizinha de Boston, no centro de Nova Hampshire. Manchester-by-the-sea é uma comunidade de pouco mais de 5 mil habitantes, na cidade de Cape Ann, condado de Essex, em Massachusetts, cuja principal atividade econômica é a pesca e o turismo à beira mar. O nome da currutela também é uma metáfora para a vida do nosso protagonista. Não por acaso, a estória não se passa numa cidade “de veraneio”, mas durante o inverno. E, se pegarmos o mar com seu significado universal e até esotérico, veremos que ele não representa o equilíbrio e a constância de uma baía pesqueira, mas a turbulência e transitoriedade das ondas batendo na areia.
A alegria e tranquilidade são efêmeras na vida de Lee, frequentemente associadas aos passeios de barco que costumava fazer com o irmão e o sobrinho. Os pontos mais leves do filme, inclusive, são no barco. Por outro lado, os planos longos e não tão fechados acentuam a carga dramática, contrapondo sempre as belas paisagens de Manchester-by-the-sea com a realidade pesada com que os personagens precisam lidar.
O ápice dramático do filme, embalado por uma belíssima trilha sonora composta por Lesley Barber (que, justiça seja feita, esteve magistralmente presente por toda a obra), traz a revelação definitiva sobre a origem do peso que Lee carrega nas costas. E é pesado. No rolar dos créditos, Kenneth Lonergan traz a difícil lição de que nem sempre é possível superar. Por mais que tenhamos esperanças, nem sempre sobram as forças necessárias, e é preciso reconhecer que as escolhas foram erradas, o caminho não deu resultado. O pescador nem sempre vence a luta contra o peixe — principalmente quando lhe falta experiência.
Já dizia Renato Russo, a irracionalidade toma conta “quando querem transformar esperança em maldição”. Esperar e lutar por dias melhores é instinto do ser humano, mas na busca impensada por superar um trauma, muitas vezes perdemos oportunidades únicas de sermos felizes, de tocar o barco e seguir em frente de forma verdadeira. É quando o abismo deixa de ser observado e passa a olhar para dentro de quem o observa.
“Manchester à beira mar” é, definitivamente, um filme de Oscar. Atuações vibrantes (além de Affleck e Hedges, ainda podemos conferir Michelle Williams em mais uma participação simples, mas decisiva), trilha sonora belíssima, fotografia do mesmo modo. E em que pese tratar-se de um bom roteiro, mas com temática amplamente já explorada em outras obras, surpreende que Kenneth Lonergan tenha se apropriado sabiamente do clichê: A única certeza que temos — cada um de nós, independentemente do drama que nos acomete — é uma lápide fria de mármore no fim do caminho.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG

Com uma violência que funciona praticamente como personagem autônomo, o longa, que marca o retorno de Mel Gibson à direção, foi salvo por Andrew Garfield

[caption id="attachment_86070" align="alignright" width="300"] "Terra e Luz", filme de terror goiano, foi muito comentado durante a Mostra | Foto: Reprodução[/caption]
No sábado, 28 de janeiro, a Mostra de Cinema de Tiradentes anunciou os grandes vencedores da 20ª edição do festival, que reuniu aproximadamente 35 mil pessoas, exibindo 108 filmes de curta, média e longa metragem em 57 sessões, entre os dias 20 e 28 de janeiro, na cidade histórica de Tiradentes, Minas Gerais.
Goiás, que teve participação até agora tímida, mas marcante na história da Mostra de Tiradentes — na edição do ano passado, o documentário “Taego Ãwa”, dos irmãos Marcela e Henrique Borela, concorreu na Mostra Aurora e recebeu diversos elogios —, neste ano, foi representado pelo longa “Terra e Luz”, de Renné França, que além de diretor e roteirista, também é professor do curso de Cinema e Audiovisual do Instituto Federal de Goiás, na cidade de Goiás.
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“Terra e Luz” foi exibido no dia 27 de janeiro, em sessão na Mostra Bendita, um espaço reservado a filmes de horror e terror, e que não compõe as mostras competitivas. Bancado com recursos próprios, o filme foi orçado em cerca de R$ 6 mil e construiu sua trama de tensão ancorada numa realidade pós-apocalíptica para tecer uma metáfora ao desfazimento do indivíduo face às pressões do mundo.
Apesar dos aspectos filosófico e sociológico presentes, a obra utiliza-se das características do nicho de horror de forma sólida, sem se escorar apenas nos estereótipos óbvios do estilo. Ou seja, este é sim um “filme de vampiro”, mas não só isso. O enredo gira em torno de um homem faminto que vaga em busca de saciedade, mas que precisa lidar com vampiros que saem para caçar durante as noites quentes do cerrado goiano. Nessa jornada, o protagonista vivido pelo ator Pedro Otto não consegue nos convencer de que seja mesmo o herói, afinal, quem precisa sobreviver não tem tempo para se preocupar em corresponder a moldes estéticos de sistemas preestabelecidos.
Essa premissa, aliás, se aplica ao próprio filme de França. Situado num contexto de ebulição cultural e cinematográfica em Goiás, “Terra e Luz” fugiu dos sistemas tradicionais de produção, representando o típico cinema de resistência, de reação imediata. Em entrevistas, o próprio diretor ressaltou, por mais de uma vez, a urgência na produção da obra, que não podia depender de intrincados e burocráticos processos de captação para sair do papel.
É exatamente por isso que “Terra e Luz” é perfeito para figurar dentre os destaques da Mostra de Tiradentes, que neste ano levantou a bandeira do “Cinema em Reação/Reinvenção na Crise”.
Os vencedores da Mostra
Os filmes do festival foram exibidos dentro de três mostras competitivas, por seis premiações diferentes. A de Melhor Longa pelo Júri Popular, teve como vencedor o documentário “Pitanga” (SP), dirigido pela estreante Camila Pitanga e por Beto Brant. Na categoria Melhor Longa pelo Júri da Crítica, que compõe a Mostra Aurora — o carro-chefe do festival — a vencedora foi a obra “Baronesa” (MG), de Juliana Antunes. O Melhor Longa pelo Júri Jovem, na Mostra Olhos Livres, foi “Lamparina da Aurora” (MA), de Frederico Machado. Na categoria Melhor Curta pelo Júri Popular foi aclamado “Procura-se Irenice” (SP), de Marco Escrivão e Marcelo Mendonça. O Melhor Curta pelo Júri da Crítica, na Mostra Foco, foi “Vando Vulgo Vedita” (CE), de Andréia Pires e Leonardo Mouramateus. E o Melhor Curta, pelo Júri Canal Brasil, foi “Vando Vulgo Vedita”. Uma novidade nessa edição foi o prêmio Helena Ignez, conferido pela primeira vez a título de homenagem a mulheres que tenham trabalhado na produção de obras inscritas no Festival. A primeira homenageada foi Fernanda de Sena, diretora de fotografia em “Baronesa”. Outra homenagem especial dessa 20ª Edição foi às atrizes e diretoras Leandra Leal (estreante com o documentário “Divinas Divas”), e Helena Ignez (já experiente, com um extenso currículo, e homenageada pelo conjunto de sua obra). Esta última, aliás, também nomeou a já mencionada nova premiação em homenagem à capacidade produtiva da mulher no cinema. Sobre mulheres e cinema, aliás, foi bem interessante notar o aumento na produção e participação feminina na edição deste ano — algo que também deverá impactar o mercado cinematográfico em geral, paulatinamente. Dos 108 títulos da programação, 43 tinham presença feminina na direção (algo em torno de 40%). À parte a quantidade produzida, também a qualidade mostrou-se garantida, já que quatro, das seis premiações conferidas, contaram com diretoras premiadas. Confira a lista completa dos vencedores da 20ª Mostra de Cinema de Tiradentes: Melhor Longa – Júri Popular “Pitanga” (SP) - Camila Pitanga e Beto Brant Melhor Longa – Mostra Aurora – Júri da Crítica “Baronesa” (MG) - Juliana Antunes Melhor Longa – Mostra Olhos Livres – Júri Jovem “Lamparina da Aurora” (MA) - Frederico Machado Melhor Curta – Júri Popular “Procura-se Irenice” (SP) - Marco Escrivão e Marcelo Mendonça Melhor Curta – Mostra Foco – Júri da Crítica “Vando Vulgo Vedita” (CE) - Andréia Pires e Leonardo Mouramateus Melhor Curta – Mostra Foco – Júri Canal Brasil (Prêmio Aquisição Canal Brasil) “Vando Vulgo Vedita” (CE) - Andréia Pires e Leonardo Mouramateus 1º Prêmio Helena Ignez Fernanda de Sena - Diretora de Fotografia em “Baronesa” Homenageadas especiais- Leandra Leal
- Helena Ignez

[caption id="attachment_85563" align="aligncenter" width="620"] Mostra de Tiradentes caminha ao lado de festivais considerados como “alternativos” e isso é importante para o cinema nacional[/caption]
Todo ano, e cada vez mais, milhões de olhos afoitos acompanham a divulgação da lista de filmes indicados ao Oscar. Mais do que mera concorrência, os preferidos da Academia acabam virando referencial do que o mercado tem de melhor a oferecer, e simbolizam o posto máximo a ser aspirado por qualquer realizador do audiovisual. Não é à toa que o prêmio virou referência também em outras áreas (e, assim, o “Eisner” virou o Oscar dos quadrinhos, “Grammy” o Oscar da música e o “Emmy” o Oscar da televisão). Mas a estratégia não é inocente, por óbvio. Questões artísticas, não raro, são cotadas à margem na escolha dos melhores. O mercado está por trás de tudo.
O resultado é que frequentemente nos questionamos se os escolhidos para concorrer em cada categoria realmente são merecedores de tamanha atenção. Seríamos todos tão leigos a ponto de não perceber a beleza escondida em “Crash - No Limite” (ganhador de melhor filme em 2004), a genialidade de “Shakespeare Apaixonado” (vencedor na categoria principal em 1998), ou a justiça de 14 indicações a “La La Land” neste ano?
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Seja o que for, aqui abaixo do Equador, há duas décadas nadando contra a maré, a Mostra de Cinema de Tiradentes chega à sua 20ª edição e se firma como um dos principais festivais do Brasil. Com a abertura em 20 de janeiro passado, o festival anunciará os vencedores neste sábado, 28, mantendo firme o propósito de fomentar o cinema nacional.
Em gritante e irônico contraste com a maior premiação de cinema do mundo, a Mostra de Tiradentes escolheu, especialmente esse ano (mas em perfeita consonância com os ideais originários do festival), prestigiar o chamado cinema de resistência e reação. Conscientes de que vivemos em tempos obscuros, com a crise econômica batendo à porta, os realizadores buscaram cultivar um espaço para as produções independentes, ou que dependessem de meios alternativos de captação de recursos — os tradicionais seriam aqueles advindos de editais, leis de incentivo, concursos etc.
À parte a questão orçamentária, o que se busca é a valorização do cinema dito livre, com maior liberdade de criação e velocidade de reação. Com esse objetivo, a Mostra caminha ao lado de festivais considerados como “alternativos” ou com um viés independente, como o Festival de Sundance, criado na década de 80 pelo ator e diretor Robert Redford, por exemplo.
Mas qual a importância de nadar contra a maré?
Historicamente, o cinema brasileiro se desenvolveu a partir de uma relação tumultuada com o mercado. Inicialmente com parcos recursos, fomentou-se a produção sem que se preocupasse com o mercado consumidor. A preocupação dos produtores brasileiros era atingir o padrão de qualidade da indústria hollywoodiana.
Assim, grandes estúdios da primeira metade do século passado, como a Atlântida Cinematográfica, a Companhia Vera Cruz ou a Cinédia, responsáveis por obras icônicas da chanchada nacional, acomodaram-se em recursos de fácil assimilação pelo público (como o humor grosseiro, a paródia e as marchinhas de carnaval) para que fosse possível a popularização das obras. O resultado foi o cultivo de um público pouco exigente, ainda afeito majoritariamente às produções gringas.
Em oposição, anos mais tarde, o Cinema Novo veio com uma proposta intencionalmente pobre de recursos — em que pese rica de significados (a chamada “estética da fome”) — causando um distanciamento ainda maior do cinema nacional com o público de massa. O Cinema Marginal, logo em seguida, tentou reatar a relação com o mercado popular, e participou do início da difícil transição para o que viria a ser o modelo de produção nacional pelas próximas décadas: a Embrafilme, empresa estatal de fomento e produção instituída na ditadura.
Durante todo esse tempo, o cinema nacional falhou em sua grande empreitada, que foi a instituição de um vigoroso e estável mercado consumidor. Em compensação, galgou degraus cada vez mais altos rumo ao que seria uma “identidade do cinema nacional”.
Entendida essa realidade, é possível verificar a importância que os festivais de cinema têm na definição dos rumos do cinema nacional e internacional. Os mercados estão sendo constantemente construídos, e os festivais são a vitrine do que é produzido em determinada época — a nossa época.
Nacionais ou internacionais, grandes ou pequenos, todos têm o seu valor, mas o público — nós — devemos nos conscientizar do nosso papel na definição do que seja “o melhor”, porque nós somos o mercado. É preciso saber olhar o que nos é exibido. Nadar contra a maré nada mais é do que voltar os olhos ao que a indústria majoritária não tem interesse em que vejamos.
Mais do que nunca, vivemos na Era dos Festivais. Nesse contexto, o Oscar merece tanta atenção quanto o “Troféu Barroco”, cujos vencedores, em 5 categorias, serão anunciados neste domingo na cidade de Tiradentes, em Minas Gerais.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estudante de Cinema e Audiovisual

Filme de Matt Ross coloca à prova a capacidade que cada indivíduo tem de pertencer a uma sociedade cada vez mais heterogênea sem tornar inválida a existência alheia
[caption id="attachment_85347" align="aligncenter" width="620"] Ben Cash dispensa aos filhos uma educação extremamente rígida, vivendo longe das mazelas do mundo contemporâneo, mas até que ponto a ordem é mais importante que a liberdade?[/caption]
Capitão Fantástico (2016) é um filme interessante. De cara, é possível dizer se trata de um filme de (e para) pais e filhos. Os pais choram ao final, revendo o tipo de educação que impuseram aos filhos até aqui, mas recordando também quanto amor esteve envolvido. E os filhos, embevecidos com o tipo de criação libertária que conhecem na tela, aspiram as habilidades quase super-humanas dos seis pequenos coadjuvantes.
Ben (que, ironicamente, lega a seus filhos o sobrenome “Cash”) carrega consigo fortes convicções ideológicas anti-estabilishment. Os valores familiares que propaga são “Power to the people! Stick it to the man!”, lemas populares de grupos socialistas, pacifistas, anarquistas e minorias em luta pelo reconhecimento de seus direitos nos anos 50 e 60. Seu profeta, Noam Chomsky (Jesus seria apenas um elfo mágico, fruto de mentes doentias).
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Carregando essas convicções ideológicas, com a cumplicidade da esposa (que aparece apenas como memória do protagonista ou como cadáver — e isso tem um papel fundamental no sentido do filme), dispensa aos filhos uma educação extremamente rígida, vivendo na selva, longe da civilização e das mazelas do mundo contemporâneo.
Mas enxergar o segundo longa de Matt Ross — antes, um pouco prolífico ator de Hollywood, mas agora, depois de faturar o prêmio de melhor direção na mostra “Un Certain Regard” em Cannes, diretor em ascensão — apenas como uma comédia romântica sobre educação infantil é pouco. O Capitão se propõe a discutir os caminhos do poder e seus custos individuais.
Quando William Golding escolheu crianças para protagonizar o seu “Senhor das Moscas”, em 1954, muito provavelmente queria utilizá-los como metáfora ao conceito de “estado de natureza”, aquele estado do indivíduo selvagem, ainda sem o compromisso de viver em sociedade. Os adultos do livro, todos mortos, simbolizariam as leis, o Sistema. E nesse contexto em que não existem regras pré-estabelecidas, sobreviver é o mote principal para qualquer decisão. Nessa condição natural, todos os homens são potencialmente iguais, e suas características diferenciadoras compensam-se. Na obra de Golding, o carisma de Ralph ou a inteligência de Porquinho eventualmente compensariam a força bruta e a austeridade de Jack. Como cada um utilizaria essas características para se manter vivo — o que inclui dominar a maioria e estabelecer um “reinado” — já é outra história.
O sangue e o ímpeto selvagem das imagens iniciais do filme nos levam equivocadamente a crer que a família de Ben vive a liberdade plena. O perfeito “estado de natureza”. Só que, ao contrário do que ocorre no “Senhor das Moscas”, existe um adulto ali infiltrado. Alguém que reina absoluto e impõe suas regras àquele pequeno grupo de pseudo-selvagens — regras como treinos de condicionamento físico pesados todos os dias, horário para leitura de clássicos, prática musical, agricultura de subsistência, defesa pessoal e até proibição de ficar nu perto de pessoas que estão comendo dão forma àquela micro sociedade. Não são selvagens. São membros de uma comunidade alternativa que renega o sistema, com todas as suas cocas-colas venenosas, celulares e videogames alienantes e cumprimentos simpaticamente hipócritas. “Stick it to the man”.
Mas a grande questão do filme está escondida nessas entrelinhas aí: o cara que governa essa comunidade não tem um Contrato Social prévio. “The Man”. O presidente nunca foi aclamado. E, como diria Rousseau, se a lei não é auto-imposta, a liberdade vira escravidão.
É bom perceber como Ross — que também escreveu o roteiro da obra — apresenta seu plano maligno. Primeiro, constrói a ideia de sistema perfeito. Depois, o desconstrói aos poucos, mostrando suas imperfeições e nos incutindo a desconfiança, inclusive expondo-o num embate com o sistema capitalista que todo mundo conhece. Essa desconfiança também contagia os filhos de Ben, “os súditos”. Surge o questionamento, seguido da indignação — nossa e dos moleques. Já dizia John Locke, o liberal, que quando o Estado quebra o pacto com os seus cidadãos, há motivo mais do que suficiente para a ruptura.
No decorrer das cenas, somos inevitavelmente levados a questões como “até que ponto a ordem é mais importante que a liberdade?”, “Qual o custo individual para se manter a ordem coletiva?”, “Os sacrifícios valem à pena?”. Se levarmos em consideração o tumultuado momento político pelo qual passamos, em que a legitimidade de um Presidente da República é questionada pela forma como ascendeu ao poder (no Brasil), ou o impacto que bandeiras polêmicas levantadas podem causar na coesão social (nos Estados Unidos), o filme toma uma profundidade ainda maior. E o protagonista sintetiza toda a angústia que surge no momento em que os anseios de um grupo se dissociam das convicções de quem o lidera — legítima ou ilegitimamente. Aliás, o que determina essa legitimidade? Em que momento surge, ou deixa de fazer efeito?
Capitão Fantástico, sem dúvidas, tece uma crítica irônica à sociedade de consumo e à forma como criamos nossas crianças nos dias de hoje. Mas seu grande mérito está em colocar à prova como cada um, individualmente, enfrentará os desafios de pertencer (ou não se sentir como parte) a uma sociedade cada vez mais heterogênea, onde cada um é obrigado a encontrar a melhor forma de sobreviver sem tentar, a todo custo, aniquilar “o outro”.
Pensando melhor, “interessante” é uma qualificação proibida para esse filme.
João Paulo Lopes Tito é advogado e estudante de Cinema e Audiovisual