Por Alisson Azevedo
Nada é pior para um corpo displicente do que um mal sem gravidade. Passo pela idade de Cristo, e não passo bem. Mas não posso dizer que passe mal. São pequenos achaques, é a dor menor das inflamações sem risco – tendinite, sinusite (ou rinite?). E para males menores, pequenos procedimentos: consultas de emergência, evasivos diagnósticos, licenças do trabalho, tão breves quanto envergonhadas. E comprimidos a perder de vista. (Aliás, acabo de perder uma caixinha cheia deles, e não posso alegar a falta da vista: a cegueira, como a loucura, tem seu método. Eu é que não.) “A tendinite é calcária”, me diz o médico, peremptório. Desconfio de umas balas que trago alojadas no peito, mas que se deslocam corpo afora, ou melhor, corpo adentro -- sem remédio. A sinusite é uma “inflamação dos seios da face”, me ensina o Google. Desconfio de certa carência de seios que me acomete desde a primeira infância até a idade de cristo -- sem remédio. Perco a hora dos remédios. Onde uma esposa fiel que me ajudasse a ministrar tantas pílulas, meu Deus? (Mas não foi para Deus que a perdi?) “Você não queria autonomia?”, me diria minha mãe, ligeiramente contrafeita. Queria, até me inflamarem os seios da face. Agora preciso é de seios sãos... E maternos é que não são. Perco o cartão do plano de saúde. Em que recepção o terei esquecido? Já vejo aquela recepcionista mignon a trazê-lo – e a ministrar as pílulas que faltam. “Quanta loucura por tão pouca aventura”, toca o rádio impertinente. Agora é o whatsapp. Onde a paz dos moribundos? Agora é a musa! Que delírio? Que delícia! E quer conversar, virtualmente. Inacessível, ainda e sempre – não importa se por carta ou pelo whatsapp. Ainda assim é melhor que a esposa fiel, melhor que a recepcionista mignon. Melhor é esquecer a “inflamação dos seios da face”. A princípio não falo de inflamações. Em nome da minha propalada autonomia, alego uma gripe que não inspira maiores cuidados. Mas falo da perda do cartão do plano de saúde. Será que a musa não poderia me ajudar a revirar a casa, as coisas, os móveis... em busca do cartão perdido? O combinado não era me emprestar os olhos, se eu precisasse? Oportunista é o que sou, ecoa um irado superego. Bem sei que perdi o dito cartão numa recepção qualquer – provavelmente a daquela recepcionista mignon. E não preciso dos olhos da musa, mas de seios... quer dizer, dos seios da face, novamente sãos. Ah, musa incauta! Quer por tudo me ajudar a revirar a casa, as coisas, os móveis... em busca do cartão perdido. Confesso meu pecado nada original, mesmo sob o risco de perder o paraíso – e perco. Mas a musa – porque é musa – compreende a humana falibilidade, a humana queda para o ridículo, a humana inflamação dos seios da face. A ela – à musa – sou só gratidão. Amanhã seguirei, recepções afora, minha solitária e autônoma busca do cartão perdido – e da recepcionista mignon. Por hoje está feita a crônica dos meus males menores. Para males menores, aliás, nada melhor que o gênero menor.
São Paulo, Estação Tietê. Duas vezes em menos de quatro meses: me sinto um cosmopolita Verdade que preferia Guarulhos ou, antes, Congonhas. Mas viajo de improviso e a soldo próprio. Dois manos se oferecem, em tom subserviente, para me conduzir ao metrô. Um segue à minha esquerda, o outro à minha direita: me sinto um capo sem organização. Mano à esquerda: -- Tu viu mais cedo aquele mano só de cueca? Mano à direita: -- Levaram tudo dele. Aqui ninguém deve andar sozinho. O que pra mim é ameaça, pra eles pode ser oportunidade, penso. Entro num pânico fugaz. Minha mochila com pertences corriqueiros (salvo meu notebook novinho e financiado), minha carteira com o de sempre (algum dinheirinho incluído), debaixo do braço um livro em Braille do Pessoa (que ninguém vai querer). Resultado: eu de cueca, com o Pessoa debaixo do braço. Mas eu não ando sozinho. Venço o pânico e entabulo conversa com meus manos. São Miguel Paulista. Sé, Itaquera (ou Brás?), depois o trem. No final já iriam comigo, se pudessem. E eu os levaria pra Goiânia, se desse. Sé. Itaquera. E não vem o trem. Sábado, portões lacrados, cidade incógnita. Pior que não ter pra onde ir é não saber pra onde voltar. Brás, redescubro aliviado. Quem tem boca e bengala, vai. Agora já pertenço ao metrô: um auxílio a cada estação, com aviso prévio via rádio. Vou do metrô ao trem, do trem ao táxi, e de táxi chego à Casa de Farinha. Sempre monitorado, via celular, pelo escritor Erre Amaral, o Lorde Cigano da Caravana Rolidey. Na Casa de Farinha me dão de um tudo: cama fresca, mesa farta, banho demorado e uísque á vontade. Enquanto o Xavier, médico à moda antiga, me diagnostica uma não menos antiga bala alojada, agora no ombro esquerdo, a Caravana Rolidey Chega para o almoço, lauto, aliás. Com Erre Amaral, Germano Quaresma e Sérgio Fantini, vêm Marina Ruivo e Adriane Garcia – nossa guia rumo à poesia. Ali já se iniciara a celebração da amizade e da literatura, e dali ela segue, rumo à Casa Amarela. E na Casa Amarela, tudo que se vê, se ouve, se lê, se faz e se refaz é arte – e beleza. São tão atentos os olhos, tão absolutos os ouvidos, tão poéticas as vozes, tão belos artistas e arte, que não quero maisir embora: preciso morar ali. E a solução possível – e desejável, e mágica – é me casar com Clarice, a exuberante filha do Akira, o timoneiro da Casa Amarela. Clarice, menina bonsai, que mistério tem São Paulo? São Paulo, cidade esfinge, que mistério tem Clarice? Será que poderei decifrar a cidade por aqueles olhinhos? Será que poderei ler em Braille aquela tatuagem, que é pra me dar coragem pra seguir viagem quando a noite vem? Parodio, divago, abuso da licença poética. É tradição que os cegos toquem: sanfona, piano, viola. Pós-moderno, só aprendi a tocar livros, e leio o “Poema em Linha Reta”, do Pessoa-Álvaro de Campos. Aquela ode à vileza, acrescida de uns bordejos pela desvairada noite paulistana, me abre inúmeras possibilidades. E a que está mais à mão é cobiçar a mulher do próximo. “Um beijo, Marina”, suplico em pensamento, “um só, apenas para repor o desejo em lugar fora do alcance”. Erre Amaral, nosso Lorde Cigano, mordaz como todo lorde e adivinho como todo cigano, me pede temperança. À parte o canhestro argumento da reparação, que permite aos cegos de agora a prática de condutas historicamente vedadas a eles, -- ainda que reprováveis, como beber e fumar em excesso, além, é claro, de cobiçar a mulher do próximo --, evoco “Bye bye Brasil”, o épico filme de onde partiu a Caravana Rolidey. Nosso Lorde Cigano passa então a infringir abertamente o décimo mandamento -- ao menos sob minha disforme perspectiva. Como punição ao meu reprovável comportamento, mesmo para os padrões admitidos aos cegos do meu tempo, durmo sozinho no sofá da mulher do próximo. E quando amanhece -- vergonha própria! --, é o próximo quem providencia nosso café da manhã, garante aos que voam o traslado ao aeroporto, e dá um abraço de despedida em todos que partimos. É também pelas generosas mãos do próximo que retorno à Casa de Farinha, à procura do Xavier. Queria mesmo era ir à Casa Amarela à procura de Clarice, mas ainda é cedo – ou já é tarde? O Xavier, médico à moda antiga, me oferece beiju com carne de bode como fortificante, versos como lenitivo, canções como anestésico. Não sem antes de me diagnosticar mais balas alojadas, o médico do sertão paulistano me conduz à Estação Tietê. É tanta minha vontade de ficar, que quase perco o ônibus. São tais e tantos os amigos que deixo, que trago a dor da volta. É tão imenso o amor que busco, que me dói logo de saída. Por isso preciso de versos, por isso preciso de prosa. Por isso me integro e me entrego à poesia da Caravana Rolidéy. Qual será nosso próximo destino? Que mistério tem Clarice? Prometo me abster de cobiçar a mulher do próximo. Quem quer que seja a mulher, quem quer que seja o próximo. Não quero mais dormir no sofá...
Desde Homero, a musa vem bafejando o verso com o sopro de vida que lhe garante a permanência. Quase sempre fugidia, esquiva, inacessível, ela funciona como uma espécie de mecenas espiritual da poética -- e do poeta. Afinal, o que seria da "Divina Comédia" sem Beatriz, da lírica de Camões sem sua Dinamene, do pastor Dirceu sem sua Marília bela? Isso para ficar nuns poucos cânones da tradição. A modernidade, malgrado seu propalado antilirismo, não logrou prescindir da musa. O cinema, benjamim das artes, é pródigo em beldades que oferecem às grandes obras o tal sopro de vida que lhes garante a permanência. Não é outro o papel de uma Brigitte Bardot, de uma Juliette Binoche ou de uma Giulietta Masina -- "puta de uma outra esquina" --, senão o de perenizar, por meio da beleza, os grandes filmes nos quais atuam. A beleza, aliás, é o grande artifício de perenização da arte. Além de abordar os chamados temas e dilemas universais, a obra artística, para garantir-se eterna, precisa ser bela -- ainda que terrivelmente bela. E o instrumento mais eficaz da beleza -- embora não seja o único -- é a musa. Por sua força gravitacional, seu magnetismo, a musa tem, na origem, o poder de mobilizar o artista a realizar sua obra. Obra realizada, cabe à musa, como instrumento do belo, atrair os passantes ao misterioso pântano da arte. E é o moto contínuo dessa força de atração que garante a perenidade de um poema, de um romance, de um filme ou de uma tela. Nascida do alumbramento, da miragem, do "sonho num transe", a musa se converte, tanto para o artista quanto para quem frui a obra que a retrata, num amálgama de falta, de desejo, de esperança. E é a falta que move, é o desejo que atrai, é a esperança que eterniza. É a musa, enfim, a força motriz da arte. Pelo menos da arte na qual acredito: eis minha meia verdade.
É corriqueira a crença de que poetas não devem se misturar à vida e aos (corriqueiros) problemas da humanidade. Daí que tais entidades -- os poetas -- deveriam viver apartadas de seus semelhantes, ou pelo menos distantes deles uns bons degraus, acima ou abaixo, para evitar contágio. E desde a "República" de Platão, inúmeros vates não só acreditaram nessa sentença, como a cumpriram fielmente. Tanto é assim que já houve poetas malditos, exilados, isolados, flagelados, aniquilados, divinizados. E não só por vontade alheia, mas também por decisão própria. Esse estranhamento é mais um dilema da própria atividade poética, e menos um fruto da propalada inadaptação dos fazedores de versos. Ele contém em si o engano equivalente a se atribuir argúcia aos advogados, zelo aos enfermeiros, organização aos bibliotecários. Essas são, na verdade, características peculiares às atividades pelas quais os indivíduos vocacionados -- e somente estes -- são absorvidos. Minha hipótese para o estranhamento como dilema peculiar à atividade poética está diretamente relacionada ao lugar do poema na linguagem, que para mim é o de instantâneo perfeito da existência. O escritor Milton Hatoum diz que o poema é a forma perfeita da literatura. Para ele, com quem concordo, o romance, o conto, a crônica -- pobre crônica! -- podem conter, e não raro contêm, altos e baixos que não necessariamente comprometem sua qualidade literária. (O escritor Erre Amaral, por exemplo, estudioso de Guimarães Rosa e aficionado por seu "Grande sertão: veredas", indaga a quem passa qual a serventia e o destino de um certo personagem Gramacedo, que surgiu e sumiu do romance sem dizer a que veio. Mas a presumida lacuna não compromete um vintém da qualidade literária da obra-prima rosiana.) Já o poema -- o bom e belo poema --, seja como forma perfeita da literatura, seja como instantâneo perfeito da existência, não comporta altos e baixos. Como tudo que é belo, enquanto forma perfeita da literatura, o poema requer inteireza e simetria. E enquanto instantâneo perfeito da existência, ele requer a radiância, o "quê da coisa", ou, numa palavra, o "encantamento do coração". A atividade poética, tão inequivocamente submetida ao bom e ao belo -- e, por mera exclusão, também ao seu contrário -- traz em si uma forte carga de estranhamento. Por um lado, a ideia de poema como forma perfeita da literatura conduz ao inumano estranhamento da perfeição. Por outro, o lugar do poema como instantâneo perfeito da existência leva a outro estranhamento: o da perfeita captura do humano, não por um ente divino ou diabólico, mas pelo próprio humano. Daí a inadaptação, intrínseca ou extrínseca, de grande parte dos indivíduos absorvidos pela atividade poética. Afinal, como podem conviver sem estranhamento o poeta com o homem comum, o homem comum com o leitor de poesia, o leitor de poesia com o poeta? Essa tensão é aumentada quando leitor de poesia, poeta e homem comum habitam o mesmo indivíduo. Alguém que lê Camões e ainda assim se arrisca a fazer poemas, não estando por isso isento de cuidar bem de sua vida e da dos seus, carece de muito prumo para não perder o rumo -- com o perdão pela rima pobre. Felizmente estamos numa crônica, em si mesma imperfeita. Mas basta aparecer A Musa que valha a pena, e lá vou eu a rascunhar uns versos. Mas logo eu, que li Maquiavel e gosto de genética? Resta saber Qual será mesmo o lugar da musa nesses versos que rascunho...
Estar solteiro depois dos trinta anos me parece um bom pretexto para um mergulho (in)seguro no perigoso aprendizado da conquista. Não a exuberante caça selvagem -- esse admirável esporte de rendimento para o qual jamais tive a menor vocação. mas sim a conquista de alguém que realmente valha a pena nesse imenso oceano de tédio e superfície que em regra costuma ser o do garimpo de pessoas disponíveis, interessantes, singulares. O encontro, apesar de implodir o tédio e transcender a superfície, não garante a conquista. A não ser pra quem nasceu alemão, negão, Chico Buarque -- ou com algum outro singular distintivo de sorte. Aos mal nascidos resta se conformarem com o encontro sem entrega, ou aprenderem com outros mal nascidos, porém bem-sucedidos na "difícil, dangerosíssima" arte da conquista. Mal nascido que sou, mas suficientemente abusado para não desistir de tentar transformar um raro encontro aprazível numa entrega sem par, opto por aprender com os mestres malditos da boa conquista. Danusa Leão foi talvez a mais bela e cobiçada mulher de seu tempo. Musa de Di Cavalcanti e irmã de Nara Leão, a diva da bossa nova, Danusa foi cortejada por grandes cabeças e bons corpos dos meados do século XX. Acabou por se casar com o poderoso jornalista Samuel Wainer, dono do jornal "Última Hora", criado para defender o derradeiro e combalido governo Vargas. Após alguns anos, três filhos e muito glamour, a mais cobiçada mulher do Brasil de então foi seduzida pelo cronista, compositor, poeta e gorducho Antônio Maria -- funcionário do jornal de seu marido. Era o improvável, também porque Antônio Maria era o antípoda e rival da bossa nova da qual Danusa fora musa e anfitriã. Mas ele tinha coração e ouvidos. E esgrimiu um argumento poético e definitivo à amada: "Não consigo viver sem você". Não era qualquer um, não era qualquer uma. Danusa largou tudo e foi viver com seu poeta, enquanto durou o amor. Outro mal nascido que teve que se virar em suas guerras de conquista foi o genial Ray Charles, meu colega de cegueira. Nascido negro e pobre numa Geórgia absurdamente racista, Ray teve que aprender a lidar com seu talento, com sua cegueira, com o dinheiro, com as mulheres -- que ganhou e perdeu. "Ray" (Taylor Hackford, 2004), sua magistral cinebiografia, mostra bem como aquele gênio incompleto e fora do padrão se torna um poderoso conquistador de ouvidos -- e de belas mulheres. A partir de sua sensitiva busca da beleza, Ray Charles logra divisar algo que precede a conquista: o encantatório momento do encontro. Cego, , Ray não se contenta com a falácia diversionista da "beleza interior". Ele deseja, demanda, conquista -- as partes da beleza apreensíveis pelos quatro sentidos que lhe restam. E persegue a radiância, o "quê da coisa", existente como energia extrassensória em tudo que é belo. Aprendiz de Ray Charles, encontro a mulher que guarda em si a beleza que me mobiliza. E porque aprendo com Vinicius que "Uma mulher tem que ter alguma coisa além da beleza / Qualquer coisa feliz / Qualquer coisa que ri / Qualquer coisa que sente saudade", descubro mais. Descubro que ela já leu Machado, que em política está quase à minha esquerda, que não rejeita um trago, que não recusa um verso, que pretende morar na filosofia, que cremos no mesmo Deus. Agora é conquistá-la, agora é que são elas. Não posso dizer, como o poeta de Danusa, que não viveria sem ela -- meu tempo é outro, a vida é outra. Mas posso dizer, sem pudor e com olhos ardentes, que morreria se desistisse dela -- da busca que ela representa. Com ou sem conquista, bem ou mal nascido, farei por merecer, sempre.
Histórias de amor em paz não costumam dar em grandes romances, em belos poemas ou em qualquer outra obra-prima dos gêneros maiores. Mas esta, para que não se perca nos desvãos do tempo – e principalmente para que não se perca a esperança – merece ao menos uma singela crônica. (O gênero menor tem lá suas vantagens.) Quando ele veio ao Brasil pela primeira vez, ela atravessava um daqueles longos namoros sem presente. Embora vivamente interessado, ele se resignou. Afinal, O romantismo alemão, não custa lembrar, é grave, respeitoso, paciente. Somente quando ela terminou um namoro que no fim das contas já fora vencido pela inércia, os dois puderam enfim encurtar o caminho para a distância. Mas esse foi, como veremos, um lento e sinuoso percurso. No início, nosso feliz casal podia viver seu idílio com o fogo e a folga dos estudantes. Durante pelo menos metade do ano, ou ele vinha pro Brasil,, ou ela ia pra Alemanha. Mas nem só de fogo e de folga vive um grande amor, ainda que feliz. O muito trabalho, o parco dinheiro e outras chatices do gênero acabaram por minguar os encontros dos nossos namorados a meros dois meses por ano – durante as férias de cada um. Foi então que ela decidiu que precisava ir morar na Alemanha. Não necessariamente com ele, mas perto dele. Terminou seu mestrado na obscura Goiânia, e foi fazer doutorado em plagas germânicas. Seu objeto de estudo? A produção de insumos naturais para a progressiva melhora do plantio e da colheita dos víveres. Simples assim, mas apenas pra quem tem a força propulsora do amor, a coragem dos amantes intrépidos, e pelo menos uma pedra no meio do caminho. Numa palavra, pra quem sabe “amar: verbo intransitivo”. Era noite. Ouvia essa história extasiado como o adolescente de outrora, tanto pela verve narrativa da nossa heroína à minha frente, quanto pela arrebatadora beleza da amiga que eu tinha ao lado e a quem fulminava com olhos postiços de esperança e contemplação. No ponto alto da noite, nossa heroína deu a senha para que minha amiga e eu instaurássemos a realidade naquela senda de sonho improvável e de riso docemente constrangido. Foi então que amanheceu. Resta a prometida crônica de um amor feliz, e alguns poemas guardados na gaveta, como belo e terrível espólio de um – quem sabe? – amor também. Ambos os amores sem filhos, que pudessem desfrutar a ingente e promissora colheita dos víveres.
(“That was Laura, but she's only a dream”) Saio de Goiânia, mas Goiânia não sai de mim. Se perto, toda cidade é melhor que a minha. Se longe, nenhuma cidade é páreo pra minha. (Pode-se substituir “cidade” por “mulher” e se chegará à mesma -- e melancólica -- conclusão.) São Paulo, por um megaexemplo, é o maior barato. Mas na minha Goiânia a comida é barata, e a água, abundante. (Como o amor da mulher amada, que era pouco e se acabou.) Que os novos bandeirantes não me ouçam, não me leiam, não me interroguem. Terá sido uma profecia a bravata do Anhanguera? Desembarco na Estação Tietê. Por certo havia um rio por lá. O Tietê? Agora há só uma estação sem chuvas e muitos paulistanos perdidos. Aliás, para cada estação – sem chuvas, diga-se -- há muitos paulistanos perdidos. Estação da Luz, enigma que o autofalante me decifra. Pra quê tanta escada, meu Deus! Cadeirantes de todas as estações, uni-vos. Em Goiânia não há metrô nem autofalante, mas tampouco há escadas. Nem calçadas., Ai de mim que sou andante! E romântico. Agora é Estação Ana Rosa, sussurra o pregão. E eu me lembro da mulher amada: “que é da Rosa nos cabelos?” Não é hora. Mulher amada em Goiânia não há mais: já era. Por Deus, sem mais nem menos? “Estação Paraíso”, avisa a anódina voz. Terei perdido o meu para sempre? “Senhora, por que me abandonaste?” Vila mariana. Viva Mariana! Eis uma rima fácil para uma vaga esperança. “...saída à esquerda do vagão”. Será a Praça da árvore? Ainda bem que não ando só: dois vagabundos, o Nei e eu, vagões adentro, vagões afora. Vagamundo! Na Praça da Árvore chove uma chuvinha imaginária a que costumam chamar garoa. Não dá pro gasto, mas já é um alento. No bar do Pincel, os amigos do Nei me desenham um coração corintiano. É falso, mas não deixa de ser um coração-reserva, já que o titular anda meio mal das pernas. Falar em pernas, com um par daquelas eu ia até pra Irlanda. Mas a proverbial sisudez das beldades paulistanas – será solidão? -- me faz querer voltar mesmo é pra minha Ítaca sem Penélope. Ah, as mulheres de Goiânia! Ah, uma mulher em Goiânia. Sigo sendo um gavião fiel. Enquanto leio a “Ode Marítima”, descemos a Santos: lá sou amigo do Nei. Praia, sol e cerveja. E os novos amigos de infância me protegem do excesso de praia, de sol, de cerveja. E de cidades, e de saudade... São Paulo, cidade dos excessos. Até a falta d’água é um excesso. E o recesso da chuva, e a chuva, quando vem. “Em Goiás não havia navios e tivemos de inventar tudo, até as palavras”, me explica o poeta exilado. Ele agora reinventa ideias de esquerda para um Partido vivo – e canhoto, graças a Deus. O poeta Adalberto Monteiro me abre a casa, me dá do melhor vinho, arranca-me a verdade e me acalenta o combalido coração – o titular – com versos assim: “Renascer (por Adalberto Monteiro) O encanto fugiu, avoou e se acabou. Não há o que fazer, nem mesmo ouvir um tango. No amor o desencanto Equivale à morte. Ele expele, Afasta, finda, sepulta, crema. Com a mesma força que o encanto Atrai, aproxima, entrelaça. Por ora não há nada a fazer Senão ocupar-me da terrível tarefa De retirar milhares de camadas de ti Que se fixaram em mim. De tanto dormires sobre o meu peito, A máscara do teu rosto ficou moldada Por sobre o meu coração. Quando, novamente, o infortúnio atravessar Uma faca enferrujada na minha carne Não terei as tuas mãos para sacá-la De minhas entranhas. Quando for lua cheia Não te terei ao lado, Para aos berros anunciá-la a ti Como se estivesse a anunciar a descoberta De um astro novo. Inúteis as lágrimas. Dispensável pôr –me de joelhos. Se alegre, se saltitante, À tua frente, como um potro adolescente, Deixei de te encantar, Não seria com a espinha dobrada E os olhos nevados de sal Que eu faria o teu coração Novamente bombear Carinho por mim. Nada a fazer. Exceto aprender, com a aurora A renascer”. E eu, paulistano só por um instante, me perco a cada estação, a ver navios que não há – posto que jamais os tenha visto. Só os invento, porque sou goiano. Renascerei?
O primeiro governo de Marconi Perillo (1999-2002) foi alvissareiro para a área da cultura. Com o historiador e letrista Nasr Chaul à frente da antiga Agepel (Agência Goiana de Cultura Pedro Ludovico Teixeira), foram criados o Fica (Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, na Cidade de Goiás), o Canto da Primavera (em Pirenópolis) e o Tempo (Festival de Teatro de Porangatu). Para além dos festivais, o primeiro governo Marconi resgatou, ainda que timidamente, a construção de uma política pública de cultura, interrompida anteriormente com o fim do governo de Henrique Santilo (1987-1990). Já em seu segundo governo (2003-2006), Marconi se rendeu à cultura do espetáculo e da ostentação. A cambaleante Agepel foi rebaixada a agência de promoção de festivais -- o Fica, o Canto da Primavera e o Tempo. E recebeu uma inglória tarefa, típica da megalomania dos antigos mecenas: tirar do papel o Centro Cultural Oscar Niemeyer -- projetado pelo próprio --, cronicamente inconcluso. O governo Alcides Rodrigues (2006-2010) cumpriu, sem brilho, a batida agenda dos festivais. Foi marcado pelo exotismo de ter à frente da pasta da cultura a polivalente Linda Monteiro, primeira-dama da Terra FM, baluarte do mau gosto country-Gyn. Com Gilvane Felipe à frente da Agepel, Marconi devolveu a pasta da cultura ao bom gosto, mas iniciou seu terceiro governo (2011-2014) sem grandes pretensões para a a área pela qual sempre fez questão de manifestar especial apreço. Mas os artistas e a sociedade impuseram ao governo uma nova agenda da qual, pelo menos num primeiro momento, ele não pôde se desvencilhar. A promoção da Agepel a Secretaria Estadual de Cultura (SECULT-GO) e o penoso parto do Fundo Estadual respectivo são recentes conquistas que a comunidade cultural supunha absorvidas pelo próximo governo Marconi. Autoproclamado “o governador da cultura” em encontro com artistas ocorrido no palácio das Esmeraldas no início do ano, Marconi se disse amante das artes em geral – e dos livros em particular. Naquela ocasião, ao refluir de um abrupto corte perpetrado por seus tucanocratas no nascente Fundo Estadual de Cultura, o governador afirmou estar aberto ao diálogo com o segmento cultural, pelo qual ratificou seu especial apreço. Menos de um mês após reeleito, “o governador da cultura” enviou à Assembleia Legislativa o projeto de lei da reforma administrativa, que dentre outros cortes rebaixa a Secult-GO à subcondição de subsecretaria no âmbito da Secretaria Estadual de Educação. Em nível federal, foi no governo Sarney (1985-1990) que a cultura ganhou status de política pública autônoma em relação à educação, com a criação do Minc (Ministério da Cultura). Tendo sobrevivido a todos os governos desde a sua criação, o que não é pouco, o Minc foi fortalecido no governo Lula, com a marcante ascensão de Gilberto Gil ao posto de ministro. A gestão do ministro Gil contribuiu para consolidar a cultura como política pública, por meio de instrumentos como o Plano, o Sistema e o Fundo Nacional de Cultura. Por exigência legal para o repasse de recursos federais, esses três instrumentos devem ser replicados nos estados. E a gestão do plano, do sistema e do fundo nos estados com mais de meio milhão de habitantes deve ficar a cargo de uma secretaria (exclusiva) de cultura. Nessa linha, em 2012 o governo Marconi converteu a Agepel em Secult-GO, e em 2013 implementou o Fundo Estadual de Cultura. Em dois anos os recursos destinados à área quintuplicaram, apesar do desmantelo da máquina. Agora, surpreendentemente, “o governador da cultura” propõe o desmonte da pasta – e, consequentemente, o desmonte das incipientes políticas públicas a ela afetas. Sempre que anexada à gigantesca pasta da educação, a raquítica cultura é engolfada. Disso até Sarney já sabia, tanto é assim que criou o Minc. Marconi também sabia, tanto que transformou a Agepel em Secult-GO. Mas isso foi em 2012, antes da reeleição. Agora ele defende uma subsecretaria para a subcultura. O problema é que a subcultura só pode ter, no máximo, um subgovernador. Os artistas acusaram o golpe abaixo da linha da cintura. Promovem, em protesto, bundaços cênicos pelas praças do poder. Bundaços cênicos... Própria metáfora, incautos artistas.
Num boteco qualquer da minha rua, eu conversava com um bom camarada sobre os dilemas de sempre: os rumos da esquerda desarmada, o estado da arte de umas tantas mulheres extraviadas, os termos da cronicamente vindoura reforma política. De repente, Tom Jobim. Num ambiente tão prosaico, tão barzinho, tão goiano – no sentido pejorativo-cultural do gentílico --, aquela música era ao mesmo tempo improvável e imprópria. Embalada por um violão preciso e por uma voz marcadamente feminina, a conversa seguiu bossa nova. (O rematado clichê me livra da indesculpável inconfidência, ressaltando a sólida e longeva cumplicidade masculina.) De repente, Céu. Entre standards do Tom e um ou outro samba antigo, aquela cantora imprevista deu um jeito de evocar uma boa novidade do seu – do nosso tempo. A paulistana Céu ganhou projeção internacional já em seu primeiro álbum, lançado em 2005. Ela faz o que se costuma chamar world music, que no seu caso é a velha e boa música brasileira temperada por influências estrangeiras notáveis. No fundo, Céu refaz o caminho feito por Tom, Astrud e João Gilberto na década de 1960. Com um pé no moderno e outro no eterno, ela repõe o Brasil na cena musical mundial da atualidade. Difícil é ouvir Céu – ou Tom, ou Astrud, ou João Gilberto -- em Goiânia, e mais ainda, num boteco qualquer da minha rua. Só podia mesmo se chamar Gabriela a dona da voz que embalou minhas divagações de fim de noite. E Gabriela Ventura, acompanhada por um certo Mateus -- cujo sobrenome sucumbiu à minha imprecisão etílica -- e seu violão preciso. Serão namorados? Como diz a canção, “do lado de lá tanta ventura / e eu a esperar pela ternura / que a enganar nunca me vinha”. Às vezes vem, até pensei.
Alguns anos depois daquele insólito levante, eu obtive do escritor Roberto Amaral, nosso professor de português à época dos fatos, o seguinte depoimento: “Coincidiu que naquele momento eu lia Sartre – 'O existencialismo é um humanismo' --, e vivia, vivíamos, a angustiante ameaça de demissão coletiva, afinal consumada. De súbito, no intervalo de umas pachorrentas aulas matinais, uns minguados pirralhos entoaram um grito de guerra que me fez supor um delírio sartreano: 'Queremos ser! Queremos ser! Queremos ser!' Progressivamente, os infantes subversivos da quinta e sexta séries foram secundados pelos grandalhões imberbes da sétima e até da oitava. Eis que, num átimo, meninos vigorosos e meninas saltitantes ecoavam por toda a escola o grito que, aos meus ouvidos, soava como uma sentença existencialista: 'queremos ser! Queremos ser! Queremos ser!' 'O quê? O quê? O quê?' Era a pergunta que corria de boca em boca entre professores, funcionários e mesmo entre uns poucos alunos desavisados (ou alienados, como anacronicamente classificavam os próceres da miniestudantada.) Aliás, foi a parcela mais alheada dos estudantes que me ajudou – a mim e aos meus pares – a entender as razões do movimento. E essas razões eram, por assim dizer, assaz existenciais. A nova direção do colégio (Rudá) cancelara a semana esportiva, uma espécie de olimpíada interna durante a qual as aulas eram suspensas. O cancelamento da Semana Esportiva do Rudá – a SER -- retirara dos estudantes seu troféu coletivo. E era por ele aquele prosaico brado com sotaque sartreano: 'Queremos SER! Queremos SER! Queremos SER!' Enquanto o protesto se dissolvia sem sucesso aparente, eu cogitava haver naqueles alunos a centelha do engajamento proposto pelo filósofo d’O ser e o nada. Ao descobrir que existiam, eles agora queriam ser. E o ser tem lá suas urgências – ainda que seja uma mera (a olhos alheios) semana esportiva”. O que o Roberto Amaral só viria a saber depois é que o ser -- pelo menos o meu ser – tinha lá outras urgências. Quando lideramos aquele improvável protesto, o Augusto e eu queríamos provar à Luiza que a injustiça não prevaleceria. E vê-la sorrir de novo. A Luiza era filha e sobrinha das duas irmãs recém-apeadas da direção da escola. A alegre menina (ou estonteante mulher) nem entrada nos 15 anos agora andava tristíssima. E o Augusto e eu, à frente do inoperante grêmio, só no que pensávamos era numa ação capaz de devolver à Luiza o riso perdido. A causa era nobre. Veio o mote da semana esportiva, e com ele o apoio das camadas inferiores (quinta e sexta séries). Fortalecidos pela base, estabelecemos uma aliança pontual com a elite da escola: os brutos fisiológicos da sétima e da oitava. Fizemos, enfim, a boa e velha política. Mas quando fomos chamados pela nova direção para uma “conversa”, questões pessoais tumultuaram o processo. Acusados de “amiguinhos” da Luiza, cujos interesses estavam calcados no nepotismo, fomos taxados de complacentes com a antiga direção e seus malfeitos. A semana esportiva foi rapidamente esquecida, e a nova direção criou seus fatos novos. O Augusto se declarou à Luiza, tão mais bela quanto triste. Pra mim ela disse que explodiu em indignação, mas ele me contou foi outra coisa. E pediu segredo. No fim do ano a escola fechou. O terreno, de origem filantrópica mas em área nobre, foi vendido a uma grande universidade privada. Ah, e os professores foram Demitidos coletivamente. Não consta que tenham protestado.
Apesar do segundo turno lá e cá, a parte desta eleição que realmente poderia fazer a diferença para o Brasil e para Goiás acabou. E acabou tão melancolicamente como a entrada de um ingênuo palhaço no malicioso picadeiro da política. No Congresso Nacional eleito, em quase nada diferente do atual, o palhaço é o menor problema: ele é no máximo um sintoma do cinismo generalizado em relação à política, tão característico do nosso tempo. (Toma lá, dá cá.) Um problema que se agrava no legislativo federal é a progressiva onda demagógico-conservadora. Em todo o país, os puxadores de votos para a Câmara federal carregam numa verborragia sem charme, insistem no malogrado casamento entre moral e política, e apresentam soluções simples para problemas complexos. (A julgar pelo que se viu no horário eleitoral gratuito, o problema da segurança pública estará resolvido já depois do carnaval.) Um especialista dirá que os puxadores de votos não refletem a média do pensamento do Congresso. Ainda bem... Mas será que eles não refletem a média do pensamento dos eleitores? Os partidos dão guarida aos campeões de votos, para aumentar o quosciente partidário e eleger mais parlamentares. A manobra começou com o nanico e neofascista PRONA (partido da retificação da Ordem Nacional) e seu (“meu nome é”) Enéas, funcionou e foi assimilada até pelas grandes legendas. Em Goiás, o delegado Waldir bateu recorde histórico de votos (274.625). Eleito pelo PSDB, na campanha ele disse coisas que fariam corar os tucanos ortodoxos de plumagem uspiana. A começar pelo slogan que criou para divulgar seu número – 45 do calibre e 00 das algemas --, o deputado federal goiano mais votado do partido cujo cardeal (FHC) defende a legalização do uso da maconha adotou a linha do “eu prendo e arrebento”. Já por aqui, a gana justiceira do delegado não há-de causar espécie entre os tucanos graduados. Aliás, ele terá até um par “neocon” na bancada. Trata-se do deputado federal reeleito João Campos, também delegado. Evangélico e mais discreto que seu novo colega, ele se destacou pela defesa de um projeto de lei que propunha a “cura” dos homossexuais. Ruborizados, os tucanos nacionais o isolaram. Mas seus eleitores, não. A cada quatro anos, sempre surgem artigos e comentários críticos sobre o crescimento da bancada conservadora no Congresso. E ela cresce a cada eleição, com a cumplicidade ou a omissão dos grandes partidos. O mais surpreendente é que essa tendência continue, mesmo depois das ruidosas manifestações de junho de 2013. É com essas bancadas retrô que o Brasil vai fazer reformas para o futuro? Faz não...
As eleições fervilhando país afora e eu aqui metido em poesia. E nem se trata de poesia brechtiana, do tipo “o indivíduo tem dois olhos / o partido tem mil olhos”. Trata-se de Hilda Hilst e sua “Ode descontínua e remota para flauta e oboé -- de Ariana para Dionísio”. O título em si já é um verso lírico, e diz muito. Em dez imbricadas canções, uma trovadoresca Ariana canta seu belo e resignado amor por um exuberante Dionísio – o grande ausente. Zeca Baleiro, numa pegada de gênio, musicou esse decálogo lírico de Hilst, e confiou cada uma das dez canções a uma tarimbada intérprete. É gente do quilate de Mônica Salmaso, Ângela Ro Ro, Zélia Duncan e Maria Betânia. (Ângela Maria destoa um pouco, mas é bom revê-la em boa companhia.) Lançado em 2006 sem qualquer apelo comercial, “Ode descontínua e remota ...” foi o disco da década. Esgotado, pode ser ouvido livremente na Internet. Foi a própria Hilda quem propôs a Baleiro a parceria, após se encantar por seu primeiro trabalho (“Por onde andará Stephen Fry?”). Morta em 2004, a poeta não viu o projeto concluído. Mas Zeca não decepcionaria a autora de “Júbilo, memória, noviciado da paixão”. Nos sofisticados arranjos, nas harmonias pontilhadas por raros instrumentos – como flauta e oboé --, no lírico jogo melódico que alinhava as dez canções, Zeca Baleiro urdiu uma legítima obra-prima a partir da “fonte de prata” de Hilda Hilst. E obra literária, porque as canções surgiram primeiro como poemas, e têm a força destes. Como prova (no sentido de degustação), segue a Canção I. Mas vale a pena degustar as dez, porque “Ariana pode estar sozinha / sem Dionísio, sem riqueza ou fama (...”. Canção I É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas. Voz e vento apenas Das coisas do lá fora E sozinha supor Que se estivesses dentro Essa voz importante e esse vento Das ramagens de fora Eu jamais ouviria. Atento Meu ouvido escutaria O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio. Porque é melhor sonhar tua rudeza E sorver reconquista a cada noite Pensando: amanhã sim, virá. E o tempo de amanhã será riqueza: A cada noite, eu, Ariana, preparando Aroma e corpo. E o verso a cada noite Se fazendo de tua sábia ausência.
A venda de todo boteco, mercadinho ou birosca de rua deveria ser regulada pela mão forte do Estado. Parece uma medida intervencionista, mas não é. Quer dizer, até é – as questões de mercado obedecem a uma dialética bastante peculiar --, mas sempre a bem do capitalismo desenvolvido. E a bem, também, do consumidor mal acostumado. Dia desses fui tomar a vitamina de sempre, na lanchonete de sempre. Venderam a lanchonete; pior, adulteraram a vitamina. Só o capitalismo desenvolvido é capaz de evitar tragédias desse naipe. E o Brasil tem um bom exemplo. Alguém ainda se lembra do caso Ambev? Quando Skol, Brahma e Antarctica resolveram acabar com a concorrência, muitos bebedores temeram a descaracterização de suas respectivas cervejas prediletas. Paranóia pura. Cada cerveja seguiu com seu gosto, seu cheiro, seu malte próprio. Tudo devidamente regulado pelo Estado. Não teve a mesma sorte a vitamina da lanchonete da esquina lá de casa, agora sob nova direção e péssimo gosto. Num colóquio sobre as agruras da vida adulta – no propício ambiente das redes sociais, evidentemente --, descobri que o mercado vizinho à minha amiga também mudou de dono. E mudou as coisas de lugar, a qualidade das coisas, o preço das coisas, o cheiro das coisas. Ah, os cheiros! Alguma agência reguladora devia proibir a mudança dos cheiros das coisas e dos lugares de que gostamos. O cheiro do pão de queijo da minha infância era muito melhor do que o pão de queijo da minha infância. (Que aliás não era mau.) Nestes tempos bárbaros, basta uma birosca mudar de direção e ficamos nós à deriva, ao deus-dará, em total abandono -- em busca do cheiro perdido.
A Rosa me levou ao comício pra ouvir o discurso do meu tio. Insisti com a avó pra que fosse ela mesma, mas alegou doencinha mole e não foi, não pôde, não quis. A rosa me contou logo a verdade: que o candidato do avô não era o mesmo do meu tio, e que por isso a família andava meio desunida. Eu gostava muito da Rosa, porque ela me contava as coisas. Se não sabia, inventava. A avó andava aflita pelo que diziam ao avô de uns discursos do meu tio. Coisa de gente velha, mas eu queria muito ir ao comício. E a Rosa também. O avô não queria deixar, mas a avó disse a ele que criança não vota – e a Rosa não contava. Que a Rosa prestasse muita atenção no discurso do velho, foi a ordem que a avó deu, longe do avô. Mas que não me deixasse perceber, porque eu não era lá de muita confiança: perguntava mais que filho de padre. A Rosa era meio moca pra palavra bem falada, coitada. Dependia de mim até pra entender programa de rádio. Na ida pro comício, entre uma volta e outra, me pediu pra prestar muita atenção no discurso do meu tio. Ora, se era só o que eu queria!... Antes do meu tio falou muita gente. Depois, só o candidato dele, e eu pensei que aquilo era bom. Meu tio era tão engraçado que nem parecia irmão do avô. Não era homem palhaço: tinha sido subprefeito e dono de fazendas de gado gordo. Só sabia rir do que tinha -- e do que não tinha também. Quando começou o discurso, nem a Rosa conseguiu parar de prestar atenção. Falou dos tempos de subprefeito, que fizera uma coisa e outra e que fulano e beltrano ali se lembravam. Os outros não, que eram pequenos. Depois contou que ficou pobre, por causa da crise, dos posseiros e de uma briga com uns padres canhotos. (Perguntei pra Rosa sobre os padres, ela se benzeu e respondeu que canhoto não é de Deus. Acho que não entendeu nada). Meu tio pediu o voto de cada um, falou que às vezes nem a própria família apoia, por causa das rixas políticas, e explicou que, por isso, na outra eleição a vaca foi pro brejo. Quis saber da Rosa que vaca era essa, e ela me mandou prestar atenção. Era o que ela fazia quando não tinha o que dizer ou o que inventar. Não consegui mais prestar atenção em nada. Tive dó do meu tio por causa da vaca – vai ver era a última das suas fazendas de gado gordo! Em casa, perguntei pra avó por que a vaca do meu tio foi pro brejo. “Por causa das rixas políticas dele”, o avô falou bravo, do quarto. Meu tio perdeu a eleição. O avô não votou nele, “por causa das rixas políticas”. Mas a avó votou escondido, a Rosa me contou. Passado um bom tempo, meu tio apareceu na casa do avô. Os dois tomaram café, muito animados. Quando encontrei maneira, perguntei: “Por que a sua vaca foi pro brejo, tio?” Ouvi primeiro um pigarro seco do avô. Logo meu tio riu, dizendo: “Porque desobedeci meu pai, menino. Ele me disse pra nunca brigar com gente de saia: mulher, padre e juiz. Briguei com os três e a vaca zangou.”
“Miguel, entre outras características que o fazem muito especial, chegou com a Síndrome de Down. Seja bem-vindo, querido Miguel. Como disse seu irmão, você chegou na família certa! Agora, todos nós vamos crescer com muito amor, sempre ao seu lado." Com essas palavras Eduardo Campos e sua esposa Renata saudaram publicamente a chegada de Miguel, seu quinto filho. E deram um belo exemplo de como uma família deve receber uma criança com deficiência. Esse simples gesto amoroso pode ser visto em muitas famílias – inclusive na minha --, mas seu contrário é menos raro que o desejável. Dias depois do nascimento de Miguel, há pouco mais de seis meses, o jornalista Elio Gaspari contou a história de uma irmã do presidente Kennedy que tinha uma depressão que lhe atrasava a aprendizagem. Só por isso o pai lhe submeteu a uma lobotomia experimental que lhe comprometeu a fala e parte dos movimentos. Dos 23 aos 86 anos, ela viveu abandonada por sua exitosa família. As famílias muito ricas, quando excluem seus filhos com deficiência, é por vergonha. Já as muito pobres, quando o fazem, é por ignorância. No Tocantins, conheci crianças cegas bem pobrinhas, cujas famílias as privavam quase inteiramente de qualquer convívio social: não as levavam às reuniões familiares, à igreja, tampouco a parques de diversões. Como consequência, essas crianças eram muito introspectivas, com pouco desenvolvimento dos sentidos e baixo rendimento escolar – quando iam à escola. Não sei o que aconteceu com elas, mas provavelmente se tornaram adultos com desemvolvimento humano bem abaixo de seu potencial. Minha experiência é mais parecida com a do Miguel. Tive a sorte de nascer “na família certa”, que superou muito bem o inevitável choque de saber que tinha um filho cego de nascença, no seu sexto mês de vida. Além das vãs e caras tentativas de reverter o irreversível, aquele casal de bancários de um rincão do Mato Grosso chamado de Vale dos Esquecidos teve a preocupação de jamais me privar de uma infância feliz. Tanto que fui imperador da bandeira do Divino Espírito Santo em festejos, cavalheiro nuns bons casamentos, tive barulhentos brinquedos, subi em árvore, tomei banho de cachoeira, e até arranjei um amigo que vendia picolé na cidade, com quem travei sociedade e fugi de casa por um dia – o que me rendeu merecidas palmadas. Quando cheguei à idade de entrar na escola, meus pais se mudaram para a capital e pude aprender a ler e escrever -- as duas habilidades que mais me enriquecem na vida. A amorosa saudação de Eduardo e Renata ao seu filho Miguel leva a crer que ele será uma criança feliz. Sua deficiência – mais uma “entre outras características que o fazem muito especial” --, certamente merecerá cuidados, mas não o impedirá de realizar plenamente suas potencialidades. Por uma atroz fatalidade, Miguel não terá seu pai por perto. Mas para ele, Eduardo Campos deixou um inestimável, fundamental e indelével legado – o legado do amor.