São Paulo, Estação Tietê. Duas vezes em menos de quatro meses: me sinto um cosmopolita

Verdade que preferia Guarulhos ou, antes, Congonhas. Mas viajo de improviso e a soldo próprio.

Dois manos se oferecem, em tom subserviente, para me conduzir ao metrô. Um segue à minha esquerda, o outro à minha direita: me sinto um capo sem organização.

Mano à esquerda: — Tu viu mais cedo aquele mano só de cueca?

Mano à direita: — Levaram tudo dele. Aqui ninguém deve andar sozinho.

O que pra mim é ameaça, pra eles pode ser oportunidade, penso. Entro num pânico fugaz. Minha mochila com pertences corriqueiros (salvo meu notebook novinho e financiado), minha carteira com o de sempre (algum dinheirinho incluído), debaixo do braço um livro em Braille do Pessoa (que ninguém vai querer). Resultado: eu de cueca, com o Pessoa debaixo do braço.

Mas eu não ando sozinho. Venço o pânico e entabulo conversa com meus manos. São Miguel Paulista. Sé, Itaquera (ou Brás?), depois o trem.

No final já iriam comigo, se pudessem. E eu os levaria pra Goiânia, se desse.

Sé. Itaquera. E não vem o trem. Sábado, portões lacrados, cidade incógnita.

Pior que não ter pra onde ir é não saber pra onde voltar. Brás, redescubro aliviado. Quem tem boca e bengala, vai.

Agora já pertenço ao metrô: um auxílio a cada estação, com aviso prévio via rádio.

Vou do metrô ao trem, do trem ao táxi, e de táxi chego à Casa de Farinha. Sempre monitorado, via celular, pelo escritor Erre Amaral, o Lorde Cigano da Caravana Rolidey.

Na Casa de Farinha me dão de um tudo: cama fresca, mesa farta, banho demorado e uísque á vontade.

Enquanto o Xavier, médico à moda antiga, me diagnostica uma não menos antiga bala alojada, agora  no ombro esquerdo, a Caravana Rolidey Chega para o almoço, lauto, aliás.

Com Erre Amaral, Germano Quaresma e Sérgio Fantini, vêm Marina Ruivo e Adriane Garcia – nossa guia rumo à poesia.

Ali já se iniciara a celebração da amizade e da literatura, e dali ela segue, rumo à Casa Amarela.

E na Casa Amarela, tudo que se vê, se ouve, se lê, se faz e se refaz é arte – e beleza. São tão atentos os olhos, tão absolutos os ouvidos, tão poéticas as vozes, tão belos artistas e arte, que não quero maisir embora: preciso morar ali.

E a solução possível – e desejável, e mágica – é me casar com Clarice, a exuberante filha do Akira, o timoneiro da Casa Amarela.

Clarice, menina bonsai, que mistério tem São Paulo? São Paulo, cidade esfinge, que mistério tem Clarice?

Será que poderei decifrar a cidade por aqueles olhinhos? Será que poderei ler em Braille aquela tatuagem, que é pra me dar coragem pra seguir viagem quando a noite vem? Parodio, divago, abuso da licença poética.

É tradição que os cegos toquem: sanfona, piano, viola. Pós-moderno, só aprendi a tocar livros, e leio o “Poema em Linha Reta”, do Pessoa-Álvaro de Campos.

Aquela ode à vileza, acrescida de uns bordejos pela desvairada noite paulistana,  me abre inúmeras possibilidades. E a que está mais à mão é cobiçar a mulher do próximo.

“Um beijo, Marina”, suplico em pensamento, “um só, apenas para repor o desejo em lugar fora do alcance”.

Erre Amaral, nosso Lorde Cigano, mordaz como todo lorde e adivinho como todo cigano, me pede temperança. À parte o canhestro argumento da reparação, que permite aos cegos de agora a prática de condutas historicamente vedadas a eles, — ainda que reprováveis, como beber e fumar em excesso, além, é claro,  de cobiçar a mulher do próximo –, evoco “Bye bye Brasil”, o épico filme de onde partiu a Caravana Rolidey.

Nosso Lorde Cigano passa então a infringir abertamente o décimo mandamento — ao menos sob minha disforme perspectiva.

Como punição ao meu reprovável comportamento, mesmo para os padrões admitidos aos cegos do meu tempo, durmo sozinho no sofá da mulher do próximo. E quando amanhece — vergonha própria! –, é o próximo quem  providencia nosso café da manhã, garante aos que voam o traslado ao aeroporto, e dá um abraço de despedida em todos que partimos.

É também pelas generosas mãos do próximo que retorno à Casa de Farinha, à procura do Xavier. Queria mesmo era ir à Casa Amarela à procura de Clarice, mas ainda é cedo – ou já é tarde?

O Xavier, médico à moda antiga, me oferece beiju com carne de bode como fortificante, versos como lenitivo, canções como anestésico.

Não sem antes de me diagnosticar mais balas alojadas, o médico do sertão paulistano me conduz à Estação Tietê. É tanta minha vontade de ficar, que quase perco o ônibus.

São tais e tantos os amigos que deixo, que trago a dor da volta. É tão imenso o amor que busco, que me dói logo de saída.

Por isso preciso de versos, por isso preciso de prosa. Por isso me integro e me entrego à poesia da Caravana Rolidéy.

Qual será nosso próximo destino? Que mistério tem Clarice? Prometo me abster de cobiçar a mulher do próximo. Quem quer que seja a mulher, quem quer que seja o próximo. Não quero mais dormir no sofá…