Coletiva após exibição de “Marighella”, seu primeiro filme à frente da direção, acabou se transformando tacitamente num primeiro ato internacional de resistência ao governo de extrema direita instaurado no Brasil

O Brasil vive o pior momento de sua história, depois do golpe de 64

Rui Martins*
De Berlim

A coletiva com a crítica internacional, após a exibição do filme Marighella, no Festival Internacional de Cinema de Berlim, acabou se transformando tacitamente num primeiro ato internacional de resistência ao governo de extrema direita instaurado no Brasil.

Não há a menor dúvida, a imprensa internacional está muito bem informada e acompanha atentamente o que se passa no Brasil, com o retrocesso social programado e a intenção de se refazer a história brasileira. A nova geração de jornalistas, que nasceu depois do Golpe Militar de 64, não parece disposta a aceitar as intenções do governo Bolsonaro de anular os avanços obtidos, depois do retorno à democracia, em termos de direitos humanos, proteção à população pobre e negra e respeito ao direito dos indígenas de viverem em suas terras.

Reafirmando sua vocação de ambições políticas, o Festival de Berlim, deu espaço ao ator e agora realizador cinematográfico Wagner Moura, para mostrar como convidado especial seu primeiro filme, dedicado ao resistente guerrilheiro Carlos Marighella. Assassinado em novembro de 1969, nos arredores da avenida Paulista, o primeiro líder e herói da resistência armada ao Golpe de 64, é pouco conhecido pelas jovens gerações. O filme Marighella, com Seu Jorge no papel principal, tem por objetivo preencher essa lacuna, embora não esteja garantida sua exibição nas redes normais de cinema.

Wagner Moura, o conhecido ator no filme Tropa de Choque, do realizador José Padilha, não tem papas na língua e considera seu filme Marighella como o primeiro produto cultural da cena brasileira, sobre a luta contra o Golpe de 64, e ao mesmo tempo um instrumento da resistência necessária em favor dos negros das favelas e dos indígenas, no Brasil de hoje.

Seu Jorge não escondia sua satisfação por estar em Berlim representando o cinema brasileiro e por ter trabalhado com Wagner Moura, tendo consagrado toda sua paixão por esse projeto, tendo se dedicado inteiramente ao conhecimento da vida do líder Marighella, seja por leituras, entrevistas e depoimentos de pessoas que com ele conviveram.

Wagner Moura explica a utilização da violência dentro do filme, que se poderia também considerar como um action film, pela influência exercida sobre ele pelos realizadores belgas Irmãos Dardenne. Como seria um filme feito pelos Irmãos Dardenne sobre Marighella? Pergunta-se Wagner Moura.

¨A minha geração é muito alienada, mas os jovens da geração de Marighella deram sua vida por algo no qual acreditavam. Na resistência à ditadura, as pessoas se sacrificavam umas pelas outras. Marighella não só sacrificava sua vida na resistência como sacrificava o tempo que poderia passar com seu filho Carlinhos, diz Wagner Moura.

¨Fala-se nas escolas brasileiras na Revolução Francesa, mas não se fala na necessária revolução dos negros no Brasil, acentua Wagner Moura. No momento, o governo está refazendo a história brasileira, enquanto os professores já começam a ser vigiados. Já não querem mais que se diga Golpe de 64 e sim Movimento de 64. Ao mesmo tempo, procuram criminalizar a arte.¨

¨Os produtores estão com medo de programar meu filme nos cinemas. Queríamos distribuir o filme ao retornar de Berlim, porém isso parece não ser possível¨, diz Moura.

Explicando o porquê da falta de apoio da população aos resistentes, Wagner Moura lembra que logo após a revolução cubana, os norte-americanos sentiram a possibilidade da esquerda chegar ao poder. Havia, então, muita propaganda junto ao povo para convencer a população de que os comunistas eram a pior coisa possível. Em Cuba, Fidel Castro logo teve apoio da população, porque ninguém mais acreditava no Batista.

¨Marighella não foi um superherói, era um ser humano com suas falhas, uma delas foi a de não ter se preocupado suficientemente com sua segurança, embora tivesse sido autor de um mini-manual do guerrilheiro urbano¨, comenta Wagner Moura.

¨A situação brasileira atual é horrível. É o pior momento para a população negra nas favelas e para a população indígena. O presidente é homofóbico e racista. Nós ficamos no foco ao fazermos esse filme e vir aqui apresentá-lo. Nos deparamos com muita merda e vamos enfrentar muita merda, mas não temos medo. Se for mal para nós do filme, será muito pior para os setores da população ameaçados. O assassinato dos negros tem uma explicação, como disse um policial dentro do filme – se eu mato um negro é porque não posso matar um vermelho¨, acrescenta Moura.

Se houver dificuldade para distribuir e mostrar o filme Marighella, o que será por si só um ato de censura indireta, a equipe de Wagner Moura fará exibições independentes no interior e dentro dos movimentos sociais. ¨Seria um absurdo não se levar o filme para aqueles aos quais ele se destina¨, argumenta Wagner Moura.

*Rui Martins, de Berlim, convidado pelo Festival Internacional de Berlim.