Vereadores cristãos pedem à prefeitura a retirada dos livros distribuídos pelo MEC que tratam de diversidade sexual

Livro de ciências para alunos do 5º ano está no centro da polêmica com vereadores sobre ensino de questões de gênero e sexualidade na rede municipal do Recife | Foto: Sumaia Vilela / Agência Brasil
Livro de ciências para alunos do 5º ano está no centro da polêmica com vereadores sobre ensino de questões de gênero e sexualidade na rede municipal do Recife | Foto: Sumaia Vilela / Agência Brasil

Alunos da rede municipal do Recife podem ficar sem livros didáticos de várias disciplinas por três anos caso a bancada cristã da Câmara de Vereadores consiga proibir o uso de obras que citam questões de gênero e homossexualidade.

Os parlamentares pediram à prefeitura a retirada dos livros distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) que tratam de diversidade sexual. O Executivo local defende o uso dos títulos e avisa que não arcará com a reposição caso as obras sejam realmente proibidas. Em nota, o MEC afirma que não há possibilidade de substituição dos exemplares.

No centro do problema está um livro de ciências para alunos do 5º ano do ensino fundamental, cuja idade regular é 10 anos. No capítulo sobre sexualidade do ser humano, o livro Juntos Nessa 5, da editora Leya, traz dois parágrafos contestados pelos vereadores. O livro destaca que “faz parte da sexualidade conhecer a si mesmo e aos outros, e os comportamentos que estão relacionados à identidade sexual”. A explicação vem em outra parte da mesma página – identidade sexual quer dizer “identificar-se com o sexo masculino ou com o sexo feminino”.

Há ainda outro trecho que fala da união homoafetiva. “Entre os relacionamentos conjugais, existem casais formados por um homem e uma mulher e casais formados por pessoas do mesmo sexo”. Ao lado da explicação, uma foto de família formada por mãe, pai, uma menina e um garotinho, o único negro do grupo.

Os principais agentes da cruzada contra os livros didáticos são os vereadores Luiz Eustáquio (Rede) e Carlos Gueiros (PSB). Eustáquio chegou a levar um exemplar do Juntos Nessa 5 ao plenário da Câmara dos Vereadores para “mostrar o conteúdo ensinado em sala de aula”.

“A questão de homofobia, essa questão de as pessoas terem de ser respeitadas como elas são, eu ensino isso aos meus filhos. É diferente da questão que está sendo ensinada no livro. Ela induz que você vai escolher se é masculino ou feminino, e é sobre isso que tenho plena discordância. E principalmente você ensinar questões de sexualidade para crianças a partir dos 6 anos aos 10 anos de idade. Eu acho que esse é um papel dos pais”, afirma.

Evangélico da Assembleia de Deus, o vereador é autor de dois requerimentos endereçados ao prefeito do Recife, Geraldo Júlio (PSB), sobre o tema. Um deles pede informações sobre todos os livros entregues às escolas municipais, incluindo quantidade e obras. A intenção, segundo ele, é criar uma frente parlamentar para analisar todas as obras e indicar quais podem ser usadas pela prefeitura. O segundo requerimento solicita a retirada de todo o material didático que contenha qualquer menção a gênero da rede de ensino.

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), foram distribuídos 623 livros do aluno e 23 manuais do professor do livro de ciências Juntos Nessa (5º ano) para dez escolas da rede municipal do Recife.

O vereador Carlos Gueiros também entrou na briga para proibir o uso do livro nas escolas. Autor do Projeto de Lei de nº 26/2016, ele quer não só proibir o título como “outros meios definidos que versem sobre a ideologia de gênero e diversidade sexual”.

 

Diretora defende a escolha do livro

Na rede de ensino do Recife, a Escola Municipal Abílio Gomes foi uma das que escolheu o Juntos Nessa 5 para as turmas de 5º ano do ensino fundamental. A instituição, que na avaliação do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2013 teve a nota mais alta entre as unidades municipais do Recife, fica na comunidade Entra Apulso, uma região pobre do bairro de Boa Viagem, zona sul da capital pernambucana. Com um exemplar nas mãos, a diretora Marta Beatriz de Araújo critica a versão dos parlamentares sobre o conteúdo do livro.

“O livro não estimula, não incita, simplesmente cita que existem casais formados por pessoas do mesmo sexo. Que se identificam com pessoas do mesmo sexo. Isso não é um estímulo à escolha, é a constatação de um fato que tem na sociedade. Nós, enquanto educadores, não podemos nos furtar do dever de ter na sala um espaço de discussão, e não estímulo. O aluno tem direito a ter esse espaço de discussão”, defende Marta Beatriz, explicando que trata a questão pelo viés do combate ao preconceito e à homofobia.

 

A diretora diz que ficou sabendo da tentativa de impedir o uso do material didático no dia em que fazia a reunião de entrega dos exemplares para os alunos. Para ela, os vereadores desrespeitam o trabalho da equipe da escola ao tentar retirar os livros da rede municipal.

“A gente não fez [a escolha] aleatoriamente. Paramos para analisar livro por livro, coleção por coleção, e não era uma editora só, eram várias. Cada uma chegava com sua caixa de material e a gente analisava para poder escolher os livros por disciplina e por ano. Então é uma coisa trabalhosa. Para depois de tudo isso vir uma pessoa e achar que pode desmanchar um trabalho de uma equipe? Acho complicado isso. Quer dizer, eu como professora não posso escolher meu material de trabalho? É o fim do mundo”.

Os livros foram distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC) por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). A cada ano é aberto um prazo para que escolas públicas de todo o país escolham as obras que vão usar em cada uma das séries. Os livros valem por três anos e são repassados de aluno a aluno durante esse período.

A diretora critica ainda a falta de compromisso dos vereadores com o uso do dinheiro público. “Os livros são fruto de dinheiro de impostos nossos. Meu, seu, de todos nós. Eles foram comprados para serem usados durante 3 anos. Se eles forem recolhidos quem vai repor os livros? O vereador vai repor com recurso próprio ou vai se fazer nova compra com recursos públicos?”, questiona. “Acho que tem que pensar em propostas efetivas voltadas para a educação, que tragam retorno efetivo. Isso não vai trazer nenhum retorno, ao contrário: está se tirando material didático do aluno. Acho importante que se faça esse questionamento.”