O racismo estrutural ainda persiste como uma barreira no Sistema de Justiça brasileiro, manifestando-se em práticas cotidianas e institucionalizadas que frequentemente permanecem invisíveis e toleradas. Essa é uma das principais conclusões da pesquisa “Características do racismo estrutural (re)produzido no Sistema de Justiça: uma análise das discriminações raciais em tribunais estaduais”, realizada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Os resultados, divulgados na última quinta-feira (28), durante o Seminário de Pesquisas Empíricas Aplicadas às Políticas Judiciárias, revelam como a baixa efetividade de políticas de redução das desigualdades raciais e o limitado grau de letramento racial contribuem para perpetuar essas práticas.

A pesquisa, conduzida por especialistas da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Federal Fluminense (UFF), expôs como o racismo estrutural impacta diferentes aspectos da Justiça. A análise incluiu entrevistas com magistrados, servidores, defensores públicos, advogados e promotores, além de observações de audiências e interações nos tribunais. Dados fornecidos pelo CNJ e literaturas acadêmicas complementaram as conclusões, oferecendo um panorama detalhado das relações raciais no campo jurídico.

Segundo o professor da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP, Paulo Eduardo Alves, a discriminação persiste mesmo após a implementação de políticas como as cotas raciais para ingresso na magistratura.  “Mesmo investidas de autoridade, essas pessoas sofrem e vivenciam discriminação”, enfatizou Alves. O professor do Instituto de Estudos Comparados em Administração de Conflitos da UFF, Pedro Heitor Barros Geraldo, complementou, destacando o papel ativo de muitos entrevistados na luta por mudanças institucionais e pela equidade racial.

Dados sobre representatividade

O Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, citado pela pesquisa, revelou uma discrepância evidente entre a composição racial da população brasileira e a ocupação de cargos no Sistema de Justiça. Embora pessoas negras representem 55,5% da população, elas ocupam menos de 15% das posições na magistratura e apenas 30% dos cargos administrativos. Por outro lado, pessoas brancas representam mais de 80% dos magistrados e quase 70% dos servidores.

A situação é ainda mais crítica para mulheres negras, que enfrentam barreiras adicionais em comparação a homens negros e mulheres brancas. Apesar de representarem uma parcela das servidoras públicas, elas continuam sub-representadas em cargos de maior prestígio e enfrentam discriminações frequentes no ambiente de trabalho.

Manifestações do racismo no cotidiano judiciário

Os relatos coletados destacaram diversas formas de racismo vivenciadas por profissionais negros. Microagressões, desqualificação profissional e até restrições de circulação em espaços institucionais foram mencionadas como práticas comuns. Além disso, candidatos negros enfrentam desigualdades desde o processo de formação jurídica, passando por dificuldades no acesso ao ensino superior e estágios, até os desafios de se estabelecerem em suas carreiras.

Os episódios de discriminação também se manifestam em situações aparentemente triviais, como a exigência frequente de identificação em espaços controlados, e em práticas como o “racismo recreativo”, que utiliza o humor para mascarar preconceitos e perpetuar opressões.

Diante desses desafios, a pesquisa elaborou uma série de recomendações para mitigar o racismo no Sistema de Justiça. Entre as propostas está o reconhecimento explícito do racismo institucional e a criação de estruturas independentes para monitorar e registrar casos de discriminação. Além disso, recomenda-se a ampliação de políticas de cotas, com reserva de vagas em todas as fases de concursos públicos, e o fortalecimento de programas de acolhimento e acompanhamento ao longo das carreiras jurídicas.

Outra medida é a inclusão do letramento racial na formação de profissionais do Direito. A pesquisa sugere que temas como “Direito e Relações Raciais” sejam incorporados aos currículos universitários e às provas de concursos para a magistratura, promovendo uma compreensão mais profunda das dinâmicas raciais no Brasil.

Impacto além do Direito

Para a professora do Programa de Pós-graduação em Direito e da área de Direitos Humanos da Faculdade de Direito da USP, Gislene Aparecida dos Santos, o estudo realizado pelo CNJ transcende os limites do Direito. Ela destacou que o trabalho pode influenciar não apenas o Sistema de Justiça, mas também o debate público sobre a necessidade de ações mais efetivas para combater o racismo estrutural.

O diretor da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB), Marco Adriano Fonseca, reforçou a importância de uma visão decolonial e inclusiva para a construção de um Estado Democrático de Direito. “A partir de uma nova leitura, de uma nova visão, decolonial, integrativa, inclusiva e plural acima de tudo, estaremos cumprindo os objetivos da nossa Constituição Federal e, sobretudo, o preâmbulo que exorta para uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”, declarou.

Os dados e análises da pesquisa serão utilizados para orientar novas políticas no âmbito do Pacto Nacional do Judiciário pela Equidade Racial. Entre as ações prioritárias estão a criação de comitês permanentes para formular e monitorar políticas antirracistas e a adoção de padrões claros para condução de processos judiciais envolvendo pessoas negras, garantindo que seus direitos sejam respeitados.

Além disso, o CNJ continuará promovendo estudos por meio da Série Justiça Pesquisa, iniciativa que visa fortalecer a cidadania e a democracia por meio de investigações científicas voltadas para a melhoria do Sistema de Justiça.

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