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“O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência.” — esta frase lapidar de Dom Casmurro encapsula, com a precisão estilística de Machado de Assis, a essência da condição humana: o anseio de reconciliar passado e presente, juventude e maturidade, memória e identidade.

Foi o que encontrei, com certo assombro e prazer, em leituras por audiolivros na última semana. Bentinho, narrador introspectivo e ambíguo, não nos apresenta apenas sua história pessoal, mas também a tentativa universal de retomar o fio da juventude com a sabedoria — ou os fantasmas — da velhice. Seu projeto narrativo é, acima de tudo, um esforço de costurar o tempo, como quem tenta fechar um círculo imperfeito com os fios soltos da memória.

Machado de Assis, com sua agudeza psicológica, estrutura nessa imagem a metáfora central do romance: as “duas pontas da vida” — adolescência e velhice — não são apenas momentos cronológicos, mas territórios simbólicos. De um lado, o ardor das promessas; de outro, o peso das perdas. Bentinho tenta reatar essas pontas por meio da narrativa, mas sua tentativa já nasce fadada à frustração. A memória, esse tecido impreciso, é tanto o seu instrumento quanto seu labirinto.

O verbo “atar”, ao mesmo tempo simples e ambíguo, sugere uma ação precária. Atar pode ser unir, mas também pode ser prender. O passado que Bentinho deseja restaurar é uma construção filtrada por suas próprias culpas e inseguranças, mais reveladora de seu estado presente do que da verdade dos fatos. A narrativa, longe de ser reconstituição fiel, torna-se um espelho turvo onde se projetam frustrações, desejos e mágoas.

Esse embate entre memória e verdade ecoa a frase que exploramos em outro momento: “A vida é simples, já dizia Quixote!” — frase que não está no Dom Quixote, mas parece condensar sua filosofia. Se o cavaleiro da triste figura simplifica o mundo pela fantasia heroica, Dom Casmurro o complica pela suspeita melancólica. Ambos são, a seu modo, autores e vítimas de suas próprias ficções. Ambos distorcem a realidade em nome de uma verdade subjetiva e inalcançável.

A diferença está no tom e no propósito. Quixote transforma a banalidade em epopeia; Casmurro transforma a experiência em denúncia. Um vê o mundo como poderia ser, o outro como talvez nunca tenha sido. Quixote nos inspira a transcender a realidade; Casmurro nos ensina a desconfiar dela. São dois modos de encarar o mesmo abismo existencial: o tempo que passa, a identidade que se desfaz, a memória que trai.

Machado, em sua ironia cortante e compaixão disfarçada, revela nessa comparação entre os extremos uma lição profunda: a tentativa humana de dar coerência à vida é inevitável, mas sempre insuficiente. Nunca atamos por completo as pontas soltas da existência. O que conseguimos é, quando muito, disfarçar as emendas, alinhar os retalhos, ajustar as versões.

A vida, então, torna-se narrativa: mais do que um conjunto de fatos, é uma construção contínua. E, como toda boa história, está sujeita à interpretação. Quixote inventa o mundo para salvá-lo; Casmurro o reconstrói para justificá-lo. Ambos reconhecem que a realidade, por si só, é insuficiente — precisa de sentido, ainda que este sentido seja ilusório.

E se há alguma esperança possível nesse emaranhado de lembranças e desejos, ela talvez esteja naquilo que se leva consigo além da matéria. Mesmo sem recorrer a doutrinas explícitas, é possível vislumbrar uma concepção de existência que transcende a experiência sensível. A vida não se esgota nas páginas já escritas, nem se define pelas versões que contamos a nós mesmos. Ela se prolonga — em outros tempos, outras formas, outras dimensões — carregando não as distorções da memória ou os delírios da imaginação, mas a essência das escolhas e dos aprendizados vividos. Porque, ainda que imperfeita, a narrativa da vida continua.

Do outro lado da vida, escreve André Luiz que “a morte é simples mudança de veste, somos almas eternas”, e a existência terrena é apenas um estágio da longa jornada do ser. Atar as pontas da vida, assim, não é tentar reconstituir o passado com nostalgia ou pesar, mas reconhecer que cada fase tem seu valor formativo, e que tudo quanto aprendemos — em alegria ou dor — se transforma em patrimônio da alma. A velhice, longe de ser ruína, pode ser recomeço; e a morte, longe de ser fim, é apenas o desdobrar de uma nova etapa.