Demóstenes Torres

Raul Seixas morreu em 21 de agosto de 35 anos atrás, mas continua descrevendo o Brasil como se tivesse feito um show ontem à noite no Maracanãzinho. Em “Gita”, uma das parcerias com o escritor Paulo Coelho, define-se como “a vela que acende, a luz que se apaga, a beira do abismo, o tudo e o nada”. Com 4 décadas de antecedência, estava pronto o epitáfio do setor elétrico em quase todos os Estados, confiantes na energia poluente, cara e em declínio no mundo inteiro.

O adeus do Maluco Beleza se deu antes do surgimento das redes sociais e na débâcle do chamado “milagre brasileiro” na economia. Seguindo os passos do 1º grande sucesso, “Ouro de tolo”, em 1973 explodiu outro clássico, “Metamorfose ambulante”. Guiaria os adesistas da política e a seara das mídias digitais deste 2024 com:

“Eu quero dizer

Agora o oposto do que eu disse antes

Eu prefiro ser

Essa metamorfose ambulante

Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Aí, tem de Rita Lee, que morreu em 2023 e falou algo semelhante em 1991, ao poeta norte-americano do século 19 James Russell Lowell, uma das duplas preferidas das plataformas com textos feitos por ela ou não.

Coelho mudaria do estilo insano para a literatura fast food, trajetória inversa à de Seixas, que começou brega e atingiu o ápice nessa doidura chamada rock’n roll. Foi descoberto por –veja só– Jerry Adriani, com quem tocou, para quem compôs letras açucaradas, como também para Odair José e Leno e Lilian. Os versos não são tão irreconhecíveis, pois alguns acabaram aproveitados até em “Gita”.

Óbvio que Raulzito investia seu tempo e genialidade em algo mais útil que breguice, política, economia e ser o Nostradamus de WhatsApp, Instagram et caterva. Não se sabe o que havia fumado numa segunda-feira carioca para resultar em “Super-Heróis”.

Numa esquina, viu o apresentador Silvio Santos com seu já emblemático sorriso. O cantor não ria, preocupado com a Seleção Brasileira, à época detentora da glória que ainda ostenta, a de melhor equipe de esporte do planeta em todos os tempos. Claro, não com o time de 1974, que perderia a Copa do Mundo, nem com o de 40 anos depois, que ficaria em 6º lugar na Copa América. Os milhões de fãs do homem do Baú da Felicidade, em prantos nesta semana de sua morte, concordariam com o nome da música, ao contrário da torcida apupando a seleção de Dorival Jr.

É em “Super-Heróis” que aparecem os epítetos Dom Raulzito e Dom Paulete (Coelho, o dos livros) dando vivas ao rei Faiçal, da Arábia Saudita, que seria assassinado no março seguinte. Faiçal e outros soberanos do petróleo haviam forjado a crise que duraria até o início dos 1980, por motivo diferente de agora: temia-se o fim das reservas de petróleo e, hoje, há delas para todo lado e a projeção é para substituir totalmente os combustíveis fósseis. Os carros elétricos são só um dos exemplos.

Ainda na incursão pelas vias da cidade maravilhosa, quando o implacável povo do Rio pensou que a roupa do rei de Riad fosse fantasia de carnaval, Dom Raulzito saiu “pela tangente disfarçando uma possível estupidez” ao cruzar com Henrique Costa Mecking, o Mequinho, que naqueles 1970 chegou a ser o 3º melhor enxadrista do mundo no xadrez. Assim como não se produzem mais compositores como os seus contemporâneos, igual ocorre com as celebridades.

Seixas pergunta na canção: “Quem é que no Brasil não reconhece o grande trunfo do xadrez?”. Hoje, os colegas de Mequinho conseguem algumas vitórias, mas estão longe do pelotão de elite. Aclamados em público são influencers e quejandos, a quem se pedem selfies sem disfarçar a real estupidez. Melhor seria sair pela tangente.

Na letra, Mequinho morre atropelado por Emerson Fittipaldi. Cita ainda Marlon Brando que, 20 anos depois de sair de cena, é perseguido pelos revisores de biografia escorados no politicamente correto, ávidos em condená-lo por cenas do filme lembrado na canção de Raulzito, “O último tango em Paris”.

Do que versejou (no caso, com Dom Paulette e Marcelo Motta), talvez a candidata a lacrar atualmente seria “Tente outra vez”. Repetiria-se o efeito das demais, pois Raul entoaria uma coisa tentando dizer outra e o público de YouTube e Spotify entenderia o que quisesse, ou seja, nada (no caso, auto-ajuda, tipo a elaborada por Dom Paulete para recordes de tiragens do Afeganistão à França). Alçaria nos algoritmos o líder religioso modinha que entoasse:

“Não diga que a canção está perdida

Tenha fé em Deus, tenha fé na vida

Tente outra vez

Beba

Pois a água viva ainda tá na fonte (tente outra vez)

Você tem dois pés para cruzar a ponte

Nada acabou, não, não, não.”

Nossos ídolos não são mais os mesmos, todavia, Raul Seixas envelheceu bem ou nada, se o sinônimo for anacronismo. O hit que lhe deu o apelido mais célebre, “Maluco Beleza”, um primor de 1977, estará na ordem do dia atravessando gerações. Duas se passaram e permanece jovem:

“Esse caminho que eu mesmo escolhi/ É tão fácil seguir/ Por não ter onde ir”. Rimas pobres, significado mais rico que os poços do Rei Faiçal. Melhora qualquer astral recomeçar a vida ouvindo: “Enquanto você/ Se esforça pra ser/ Um sujeito normal/ E fazer tudo igual/ Eu do meu lado/ Aprendendo a ser louco/ Um maluco total/ Na loucura real”.

É de se imaginar o que Raulzito gravaria pós-covid.

O imenso acervo de preciosidades conta com “Rock do Diabo”, erroneamente tachado de pai do estilo, contudo, por qualquer exame de DNA negaria. Em verdade, em verdade, vos digo: é filho de Raul Seixas.

“Me dê um porco vivo para eu encher minha pança

Três quilos de alcatra com muqueca de esperança.”

Quem abriria um show, um disco, uma canção, um stand-up com essas palavras? Seria chamado de satanista por causa do demônio do frontispício e, por isso, cancelado, a menos que aplicasse o humor, não o ensopado de peixe misturado à expectativa de dias melhores. Raulzito agiu na contramão atrapalhando o tráfego de obviedades e seguiu enfileirando estrofes impecáveis:

“Enquanto Freud explica as coisas

O diabo fica dando toque

Existem dois diabos

Só que um parou na pista

Um deles é do toque

O outro é aquele do exorcista.”

Sua verve faz muita falta e tudo se transforma em ótima desculpa para escutá-lo. Ouça “Panela do diabo”, o disco com Marcelo Nova cujo lançamento coincidiu com sua morte, não atropelado por Fittipaldi, mas pela pancreatite conseguida pelos vícios a 120 por hora. Tem criações como “Pastor João e a igreja invisível”:

“Eu não sei se é o céu ou o inferno

Qual dos dois você vai ter que encarar.”

Raulzito foi diretinho para o Paraíso dos Imortais. Na peleja particular, seus demônios foram exorcizados nos palcos, onde transformou água em vinho, chão em céu, pau em pedra, cuspe em mel. Para ele, “não existe impossível”.

Então, “let me sing, let me sing”.

Demóstenes Torres, 63 anos, é ex-presidente da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, procurador de Justiça aposentado e advogado.