No coração da Chapada dos Veadeiros, a cidade de Cavalcante viverá nesta quinta-feira, 25, um daqueles dias que se tornam memória afetiva e coletiva. Às 16h, no espaço da feira municipal coberta, 49 casais dirão “sim” em um casamento comunitário organizado pelo Tribunal de Justiça de Goiás (TJGO), dentro do programa Raízes Kalungas – Justiça e Cidadania. Um grande salão foi preparado para receber famílias inteiras que, vindas de áreas urbanas e da zona rural, oficializarão uniões que em muitos casos já atravessam anos.

Entre os noivos estará a juíza da comarca local, Isabela Rebouças Maia, de 33 anos, que escolheu viver o mesmo rito que ajudou a organizar. Ela chegou a Cavalcante há apenas seis meses, em 5 de março. Natural de Salvador, Bahia, encontrou na cidade goiana uma sensação de pertencimento. “O lugar é maravilhoso, as pessoas são muito acolhedoras, e aí surgiu a ideia da gente fazer um casamento comunitário em Cavalcante. Eu já estava noiva”, relata em entrevista ao Jornal Opção.  

Segundo ela, algumas pessoas ficaram surpreendidas quando ela tomou a decisão. “Nada me faz diferente dos outros casais. Eu sou uma pessoa como todas as outras, mas acho que pelo cargo, enfim, não sei, as pessoas ficam muito chocadas quando escutam, né, que eu tô casando no comunitário”.

Isabela está noiva do professor e empresário Erik Rebouças da Cunha Leoni, de 34 anos, companheiro de quase cinco anos. O casal se conheceu ainda na academia, quando ele era estagiário e ela, aluna. A amizade nasceu de uma coincidência curiosa, o mesmo sobrenome, e foi se fortalecendo com conversas, amigos em comum e apoio mútuo, até que, em novembro de 2020, se transformou em namoro. 

Durante esse tempo, o incentivo de Erik foi um suporte que fez a diferença para Isabela. “Ele foi a pessoa que mais me apoiou nesse caminho, que é um caminho normalmente muito solitário, ele me apoiava muito, eu brincava que ele acreditava mais em mim do que eu mesma, na capacidade que eu teria de um dia ser aprovada no concurso”, conta.

O resultado veio em outubro do ano passado, quando Isabela passou no concurso do TJGO. Poucos dias depois, em 8 de novembro, data em que completavam quatro anos de namoro, Erik pediu a amada em casamento. “Ele falou ‘para onde você for eu vou, eu lhe acompanho, a gente vai fazer dar certo onde você for no Goiás’”, relembra. 

O noivado tinha como plano um casamento para daqui a “quatro anos”. A vida, no entanto, acelerou o ritmo. Em uma reunião virtual para organizar o evento comunitário, a juíza ouviu as explicações sobre a logística, a certificação de documentos pelas sociedades cartorárias, a organização da cerimônia pelo Tribunal , e vislumbrou uma oportunidade.

“Durante a reunião do casamento comunitário, eu ouvi ele falando, eu perguntei se eu podia casar na verdade, eu falei, não, mas eu posso casar também? Se eu pagar as custas do casamento, eu posso casar?”

O que se seguiu foi um silêncio eloqüente de dois minutos na videoconferência. “Aí todo mundo ficou com aquela cara de espanto no Zoom.” A pergunta quebrou um protocolo não escrito. A sugestão seguinte de um dos participantes: “mas doutora, será que seu marido vai querer?”, soou como uma das convenções que Isabela buscava transcender.

A resposta veio de uma ligação telefônica feita ali mesmo, no meio da reunião. “Você topa casar no dia 25 no comunitário?”, perguntou ela a Erik. A resposta foi imediata: “Se você quiser, a gente vai”. “Bora, bora. Foi basicamente isso. Foi uma coisa muito espontânea e natural.”

O gesto da juíza, no entanto, não foi pensado para ser um destaque no evento, ao contrário, ela insiste em que sua história não pode se sobrepor às demais. “Não é sobre uma juíza que resolveu casar no comunitário, é sobre um casamento que é tão legal feito pelo tribunal que até uma juíza resolveu casar”, reforça.

Como funciona o casamento comunitário

Ao todo, são 49 uniões a serem oficializadas em uma mesma cerimônia, conduzida por magistrados do TJGO. O tribunal assumiu toda a organização burocrática e prática: checagem de documentos, proclamas, transporte dos noivos vindos da zona rural, roupas de casamento obtidas por meio de campanhas de arrecadação, arranjos de beleza preparados pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac) e um jantar para 500 pessoas, preparado pelo do Sesc Cora com insumos do TJGO.

“Tem muita história bacana, muita mobilização para poder fazer isso acontecer. É a primeira vez que o Tribunal de Justiça faz um evento maior e entrega isso para noivos em casamento comunitário”, explica a juíza, que, como diretora do fórum, trabalhou ativamente na organização. “Realmente quer se entregar uma experiência para esses casais.”

Para muitos, trata-se da primeira oportunidade de formalizar uma relação. A região Kalunga reúne cerca de 8.400 habitantes, grande parte vivendo em áreas de difícil acesso, onde a burocracia cartorial ainda representa uma barreira.

As outras 49 histórias

A solicitude de Isabela em desviar o holofote encontra justificativa nas narrativas ricas que compõem o mosaico do evento. Duas delas, em especial, ilustram a capacidade de adaptação e o significado da data.

Uma das uniões será celebrada por videoconferência. O noivo encontra-se em uma aldeia no Mato Grosso, sem acesso a um cartório para realizar o casamento por procuração. Diante do impasse, a equipe jurídica estudou o Código de Normas e encontrou uma solução inovadora: utilizar o sistema de videoconferência do próprio Tribunal. Enquanto a noiva estará presente na feira coberta, o noivo dirá seu “sim” a centenas de quilômetros de distância, graças a um sinal de internet que atravessa o cerrado.

Outra história que comoveu a juíza é a de uma noiva gestante. “Na hora de escolher o vestido ela ficou muito em dúvida de como escolher porque ficou com medo do tamanho que estaria a barriga”, conta Isabela, que ajudou na entrega das roupas. O casal decidiu oficializar a união para que a criança “nascesse na constância do casamento”, um desejo que fala de um novo começo para a pequena família.

Um dia para celebrar o amor e a cidadania

Já na história de Isabela e Erik, enquanto a cidade se enche de parentes vindos da Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, a ansiedade foi se distribuindo de forma desigual. Erik, que gerencia uma empresa de assessoria fitness em Salvador e vive uma “ponte aérea” entre a capital baiana e Cavalcante, é quem carrega a expectativa. “Todo dia de noite, quando ele não estava aqui, todo dia antes de dormir ele mandava ‘Faltam tantos dias para a gente casar’”, ri a magistrada. Ele estava “agoniado” com detalhes como a roupa e o vestido.

Erik Rebouças da Cunha Leoni e Isabela Rebouças Maia | Foto: Arquivo pessoal

Isabela, imersa no trabalho, na tarde da entrevista, ainda estava na zona rural e confessa que a ficha só caiu na semana anterior, ao provar o vestido. “Eu olhei no espelho e falei, ‘é, realmente, eu vou casar’. A noiva optou por um modelo deliberadamente simples, sem bordados ou rendas. “Eu não quero chamar a atenção, né? Porque eu acho que quem tem que chamar a atenção são as outras noivas.”

O toque pessoal veio de um acessório de crochê para o cabelo, feito por Josi, uma artesã da comunidade kalunga que também é servidora do ponto de inclusão digital do fórum. Um símbolo do laço que já a prende àquela terra.

A celebração será conduzida pela juíza Patrícia Bretas, conhecida por sua oratória sensível. Haverá bênçãos ecumênicas, a solenidade da assinatura das certidões e a festa que se seguirá. Para Isabela, o casamento é “uma festa, uma celebração da escolha de duas pessoas de permanecerem unidas, compartilhando vida, objetivos, sonhos — apoiando-se nos momentos de sintonia e, principalmente, nas diferenças.”

Programa Raízes Kalungas

O Programa Raízes Kalungas é uma iniciativa do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) que promove acesso à justiça, cidadania e inclusão social para a comunidade quilombola Kalunga, o maior do Brasil, localizado em Goiás. O projeto nasceu para ouvir as necessidades da comunidade, fornecer serviços essenciais e documentos, e fortalecer a participação dos poderes públicos e da comunidade no desenvolvimento do território, além de promover ações de saúde, educação digital e regularização fundiária. 

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