“Não podemos fechar os olhos para o preconceito”
29 dezembro 2019 às 00h01
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Nova procuradora-Geral de Justiça do Tocantins acena para concurso público em 2020 e defende o reconhecimento dos promotores
A nova Procuradora-Geral de Justiça – a chefe do Ministério Público do Tocantins – é Maria Cotinha Bezerra Pereira. Natural de Paranã, município do sudeste do Tocantins, graduou-se em Direito pela PUC-GO em 1988 e especializou-se em Direito Penal, Processual Penal e em Estado de Direito e Combate à Corrupção. Atualmente, é mestranda em Prestação Jurisdicional e Direitos Humanos.
Membro do Ministério Público do Tocantins desde 1990, atuou como promotora de justiça nas comarcas de Alvorada, Araguaçu, Miranorte, Araguaína, Miracema, Paraíso e Palmas, onde exerceu as funções de assessora especial, assessora jurídica da Procuradoria-Geral de Justiça e chefe de gabinete do procurador-geral de Justiça. Em agosto de 2019, foi promovida ao cargo de Procuradora de Justiça. Após a aposentadoria do chefe da instituição em dezembro de 2019, Maria Cotinha foi elevada ao cargo de procuradora-geral de Justiça para mandato complementar que se finda em dezembro de 2020.
Antes de se tornar Procuradora-Geral de Justiça, qual foi o ponto referencial em sua carreira ministerial?
Sem dúvida o período em que atuei em Paraíso do Tocantins e isso perdurou por 23 anos. Foi lá que me formei como pessoa, constitui família e fui mãe. Atuei muitos anos nas áreas da família e sucessões, como também infância e juventude e tomei gosto pela causa. Implantei o Conselho Tutelar em mais de dez municípios. Posteriormente, migrei para área de improbidade administrativa, onde gosto muito de atuar. Uma missão um tanto quanto complicada, vez que devemos sempre tratar os investigados com urbanidade, civilidade, proporcionando-lhes a ampla defesa, pois o ofício não nos permite elegê-los como bandidos, antes do trânsito em julgado da decisão.
Em 2016 fui convidada para assumir um posto na administração, com a missão de assessorar o então procurador-geral, Clenan Renaut. Já na gestão do José Omar, assumi a chefia de gabinete. Um desafio, pois o cargo exige muito “jogo de cintura”. Gostei de ter exercido o cargo e considerei o resultado como satisfatório. Entendo que não se pode fugir dos desafios que a vida lhe oferece.
Depois disso, fui elevada à condição de Sub-Procuradora, visto que o dr. José Omar queria um promotor de justiça neste cargo, um antigo anseio da classe. Após a voluntária aposentadoria dele, assumi o cargo em “mandato tampão” até dezembro de 2020.
No que concerne às alterações na legislação, já que agora um promotor de Justiça pode se tornar Procurador-Geral sem ter sido elevado ao cargo de procurador, como a sra. avalia tal mudança?
De forma absolutamente democrática, na minha visão. Contudo, a regra não vale para todos os promotores do quadro. A especificidade é que ele esteja lotado numa comarca de terceira entrância e com mais de dez anos de carreira ministerial.
No que concerne ao empoderamento feminino e a ascensão delas aos mais altos cargos – como ocorre com a sra. neste momento – já é possível dizer que essa discriminação está perto de ser dizimada no Brasil?
Notadamente no Estado do Tocantins, o mais novo da federação e, praticamente, sem identidade própria, houve sim uma evolução nesse quesito e muitas mulheres tiveram oportunidades e exerceram cargos importantes. Especificamente em relação a mim, uma mulher negra no comando desta instituição, vejo como um sinal de representatividade e valorização da classe feminina. Os tempos mudaram e sou adepta da reformulação do ditado popular: “Ao lado – ao invés de atrás – de um grande homem, existe uma grande mulher”.
Evidentemente que, no exercício deste cargo, assim como outras mulheres que comandam outras instituições importantes, dificilmente seremos discriminadas. Contudo, aquela mãe de família, pobre, negra e em situação de vilipêndio, sofre com as condutas preconceituosas. Não podemos fechar os olhos para isso. Elas ganham menos, na maioria das vezes. Também experimentam menos oportunidades e isso contribui, ainda mais, com aquela condição. Inobstante a tudo isso, ainda enfrentam – após as separações – o fardo de sustentar os filhos, muitas vezes sem ajuda do ex-companheiro.
Portanto, isso é uma realidade, não podemos ignorar. Entretanto, nós, mulheres, no exercício de cargos importantes, temos por obrigação não apenas de reconhecer a situação delas, como também lutar por aquelas menos privilegiadas e em situação de vulnerabilidade.
Há uma tendência das promotoras e juízas assumirem as titularidades das varas que tratam dos casos de família e infância e juventude?
Quando surgem as vagas, o edital é publicado e os juízes e promotores devem se inscrever voluntariamente. Está aberto para qualquer um deles. Porém, quase sempre, em razão da sensibilidade delas, as mulheres se identificam e se candidatam. É natural. O instinto materno, muitas vezes, fala mais alto. Eu mesmo fiquei muitos anos no exercício dessas funções, vivia intensamente cada problema e, confesso: sofria junto aqueles dilemas.
Naturalmente, há brilhantes promotores e juízes do sexo masculino que atuam nas varas de família e isso tem que ser reconhecido também. Todavia, nos violentamos quando enfrentamos, em outras varas, feminicídios, inquéritos repletos de fotografias de corpos de mulheres violentadas ou mutiladas ou mesmo tribunais de júri em que as vítimas foram mulheres. Enquanto promotores de Justiça, somos confrontados, diariamente, com todas as mazelas da sociedade.
A Assembleia Legislativa acaba de aprovar o orçamento geral para 2020, entre os quais o do Ministério Público, na ordem de R$ 219 milhões. É possível manter a instituição durante todo o ano, sem solicitar suplementação de receitas ao governo estadual?
Se não houver contingenciamentos durante o ano e for repassada a exata quantia aprovada no orçamento, não solicitaremos um real a mais. Contudo, é necessário esclarecer que, em 2016, quando assumi o cargo administrativo na Procuradoria-Geral de Justiça, o dr. Clenan me encarregou de integrar a Comissão encarregada de identificar as prioridades e confrontá-las com o orçamento. Foi lá que tive a oportunidade de aprender e discutir as nossas reais necessidades, em conformidade com as nossas receitas.
Para 2020, propomos um planejamento estratégico, milimetricamente elaborado de forma colaborativa e compartilhada. Solicitamos R$ 242 milhões para que pudéssemos atender todas as nossas demandas. Após reuniões e debates, ficou demonstrado que o governo do Estado do Tocantins não conseguiria arcar com tal valor. Sentamos novamente, reorganizamos, contingenciamos elegendo prioridades e demonstramos que, com menos de R$ 219 milhões, seria impossível gerir a instituição, como também, provamos que a sociedade seria prejudicada.
Esse valor foi, finalmente, aprovado pela Assembleia Legislativa e será suficiente para fazer frente a todas as despesas e investimentos em sedes próprias (Palmeirópolis, Figueirópolis e Filadélfia), além do novo prédio em Paraíso do Tocantins. Se não houver contingenciamentos por parte do Executivo, evidentemente, como já disse no início.
Considerando o déficit de promotores de Justiça, existe a possibilidade de realização de um novo concurso público?
Após o Programa de Aposentadoria Incentivada (PAI), onze colegas aderiram na primeira etapa e mais três na segunda. Hoje há, no mínimo, quatorze vagas abertas. Não estão previstas, no orçamento de 2020, verbas para empossar e pagar salários de novos promotores, mas nada impede deflagrarmos um concurso público e empossá-los em 2021. Não posso garantir que serão quatorze vagas, mesmo porque o Poder Judiciário estuda extinguir algumas comarcas como menos de mil processos, como já fez em Tocantínia e Axixá, mas pelo menos sete vagas precisam ser repostas.
O MPE tem mantido, não apenas em Palmas, mas também no interior, uma boa relação institucional com as câmaras de vereadores das cidades, discutindo projetos e apontando soluções para as mais diversas demandas da população. Qual é a sua perspectiva sobre o tema?
Constitucionalmente, os promotores de Justiça têm independência para tratar do relacionamento institucional com as casas legislativas. Isso é muito bom e traz autonomia para o fiscal da lei. As peculiaridades do Tocantins devem ser observadas, mesmo havendo uma regra geral traçada pelo Conselho Superior, contudo, o que deve prevalecer mesmo é o diálogo entre as instituições. Antes de bater, formalizar denúncias e processar, nós temos que dialogar. A lei do silêncio em Palmas, por exemplo, foi amplamente debatida e ainda está sendo discutida com os parlamentares. Nossa posição não pode se resumir ao punitivismo; é necessário adotar uma postura mediadora, porque é nosso dever proteger os interesses da sociedade.
Enfim, quais são suas perspectivas para a conclusão do seu mandato, ao final de 2020?
Tanto o dr. Clenan quanto o dr. José Omar escolheram – muito bem – a equipe técnica. É nota dez, que trabalha diuturnamente para atender os anseios de toda a sociedade. São pouco mais de 500 servidores em todo Estado, mas todos eles comprometidos com as nossas demandas. São 98 promotores de Justiça, dentre os quais 33 na capital, além de 12 procuradores. Considero, sinceramente, que estamos fazendo milagres ante a uma população de 1,5 milhão de habitantes. Os promotores de justiça precisam ser reconhecidos e não demonizados, porque após a CF/88, nossas atribuições aumentaram sobremaneira e, a luta é árdua para cumpri-las. l