Darci Coelho: “Marco da criação do Tocantins foi manifesto do governador Santillo”
09 outubro 2022 às 00h02
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O ex-presidente do Comitê Pró-Tocantins, juiz federal aposentado Darci Martins Coelho, relembra com emoção a promulgação da Constituição Federal, em 5 de outubro de 1988, que contemplou a criação do Estado do Tocantins. O líder emancipacionista relembra, porém, duas datas anteriores à promulgação, que segundo ele, também devem ser consideradas históricas pela importância simbólica no contexto da luta.
Uma é o dia 7 de agosto de 1987, data de entrega da emenda popular ao presidente da Assembleia Nacional Constituinte, deputado Ulysses Guimarães, contendo mais de 80 mil assinaturas e propondo a criação do Estado. “Naquele dia a gente já tinha quase certeza da criação do Tocantins”, revela o magistrado, enfatizando que o grande marco se deu no dia 1º de maio de 1987, com uma reunião da subcomissão dos Estados, na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), tendo a presença de representantes de todos os Poderes.
Darci relembra o manifesto do então governador de Goiás, Henrique Santillo, para embasar sua opinião. “Dói, senhores, dói em meu coração, ver partir-se ao meio o meu Estado. Mas as circunstâncias dessa transformação e o espírito de brasilidade me tranquilizam e me dizem que assim é melhor para o Norte e para o Brasil”, discursou o governador, dando o aval dos goianos à criação do novo Estado. Darci conta que, após o manifesto do governador Santillo, o movimento deslanchou.
“Foi um momento muito importante. A partir dali, as coisas clarearam. Havia evidentemente um trabalho no Legislativo. As pessoas precisam entender que a criação do Estado foi um ato legislativo. Foi um ato da Constituinte. Resultado de um processo legislativo. Foi o coroamento de um processo lento, que começou há muito tempo, foi se construindo, nunca acabou, a chama nunca apagou. O trabalho do comitê foi um trabalho da sociedade civil”, ressalta.
As pessoas precisam entender que a criação do Estado foi um ato legislativo
Como o sr. avalia, 34 anos depois, a importância daquele movimento popular liderando pelo Comitê Pró-Tocantins, o qual presidiu e que colheu assinaturas para a emenda popular propondo a criação do Estado do Tocantins?
É com muita emoção que relembro aquele fato hoje considerado histórico. Naquele dia, a gente já tinha quase uma certeza da possibilidade de criação do Estado. Praticamente a gente já podia dizer que o Tocantins estava criado. O marco da criação do Estado foi o dia 1º maio de 1987, numa reunião da subcomissão dos Estados, realizada na Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), quando o governador Henrique Santillo manifestou a voz dos goianos favoráveis à criação do Estado. Ele, como chefe do Executivo, declarou: “Dói, senhores, dói em meu coração, ver partir-se ao meio o meu Estado. Mas as circunstâncias dessa transformação e o espírito de brasilidade me tranquilizam e me dizem que assim é melhor para o Norte e para o Brasil”. Aquele ato na Assembleia, com a presença do Poder Judiciário, representado inclusive por um conterrâneo lá de Tocantinópolis, [desembargador] Júlio Resplande, foi um momento muito importante. Dali, tudo começou a clarear. Tinha evidentemente um trabalho no Legislativo. As pessoas precisam entender: a criação do Estado foi um ato legislativo. Foi um ato da Constituinte, resultado de um processo legislativo. Agora, isso foi coroamento de um processo lento, que começou há muito tempo, foi se construindo, nunca acabou, a chama nunca se apagou.
Goiás era um Estado ingovernável. Muito extenso, 2 mil quilômetros de Mineiros a São Sebastião do Tocantins, um território muito extenso. O Tocantins, territorialmente, é maior do que o Estado de São Paulo. Naquele dia praticamente nós tivemos a confirmação do apoio da Constituinte. Havia a presença de todas as forças políticas do Norte de Goiás. Houve uma união de todas as forças. Evidentemente, as forças intelectuais, que estavam sediadas em Goiânia. Aqui ficavam os políticos da região.
A bancada do Tocantins era como a bancada de cidade como Anápolis
Quais eram essas forças em atividade no Norte de Goiás que estavam ali representadas naquele esforço de juntar assinaturas numa comprovação do interesse popular pela causa?
Os deputados federais Siqueira Campos e José Freire. O comandante do processo era o Siqueira Campos, mas José Freire também era atuante e esteve naquele ato. Também os deputados estaduais Totó Cavalcante, Brito Miranda, João Ribeiro e João Cruz; os prefeitos da região, representados pelas associações de municípios – tínhamos três associações. E também grandes lideranças, como João Rocha, Célio Costa e Adão Bezerra, que foram figuras muito importantes na questão do pensar, articular e criar conteúdo para debater, dar aquele base de substrato para esse processo. A bancada do Tocantins era como a bancada de uma cidade como Anápolis, quase como Inhumas, eu fui juiz lá e conheço a sua realidade. Inhumas tinha dois deputados federais e dois estaduais. Anápolis tinha dois federais e quatro estaduais. Era uma bancada igual à nossa, dois federais e quatro estaduais. No momento da Constituinte eram cinco, porque o [Edmundo] Galdino estava exercendo o mandato na vaga de um deputado do Sul. Todos estavam presentes neste evento. A criação do Comitê [Pró-Tocantins] foi exatamente para unir todas essas forças. O presidente fui eu justamente porque era juiz [federal], não tinha comprometimento com nenhum lado. Nenhum lado aceitava se tivesse relação direta com algum segmento político. Houve essa união de forças políticas. Evidentemente um grupo mais atuante era o grupo do Siqueira, que retomou a iniciativa. Todos esses movimentos tiveram um líder, e Siqueira encarnou essa liderança, esse simbolismo. Terminou virando uma figura simbólica do movimento.
No dia em que estávamos fundando o comitê, João Rocha falou: estamos saindo da fase lírica e vamos para a fase efetiva
Quando o sr. ouviu falar da ideia do Estado do Tocantins pela primeira vez, e como foi a sua reação?
Quando eu estava entrando no ginásio [em 1954] já ouvia falar da ideia. Eu fazia um jornalzinho à mão nesta época. O Antônio Gomes Pereira, pai dos meninos – Renan, Clenan e José Renard – viu aquilo e me ofereceu a gráfica dele para imprimir o jornal. Nesse jornal, eu republicava material de outros jornais, o Ecos do Tocantins e a Norma,que recebia lá em Tocantinópolis. Quando circulou a primeira edição, eu enviei exemplares para esses jornais e passei a receber exemplares da Norma, Norte de Goyaz, Ecos do Tocantins e O Estado do Tocantins, que publicavam material sobre a criação do Estado. Eu era o tipógrafo, o redator, o distribuidor e Messias Alves Bezerra, que era o chefe da gráfica, eu o coloquei como diretor do jornal. A composição eu aprendi a fazer. Essas expressões “caixa alta” e “caixa baixa” vêm da tipografia e é a mesma coisa hoje. A tipologia é a mesma coisa. Os tamanhos das fontes 10, 9, 8, o menor que a gente usava era fonte 8. Lá tinha um 8 cheio que a gente usava, mas a gente usava mais o 10. Eu recebi uma carta do diretor do jornal A Norma [Osvaldo Ayres] orientando como é que se fazia para estruturar o comitê [municipal de apoio ao movimento pela criação do Tocantins] em cada cidade de apoio ao movimento.
Naquela carta, ela falava inclusive que eu não podia ser integrante porque não era eleitor, na época tinha 16 anos. Então, foi nessa época que comecei a tomar conhecimento da ideia. Em Goiânia sempre tinham aqueles movimentos. Essa ideia nunca se apagou da memória. No dia que estava fundando o comitê, o João Rocha falou: “Estamos saindo da fase lírica, vamos para a fase efetiva.” A Constituinte permitiu que se fizesse uma emenda popular. O Comitê nasceu para fazer essa emenda popular, colher as assinaturas e debater. Foi o que a gente fez. Percorremos o Estado debatendo e colhendo assinaturas. João Rocha conseguiu um avião, a [Organização] Jaime Câmara nos ajudou. Realizamos reunião em Araguaína, na época o prefeito era Corneliano Barros, que não era muito favorável à ideia. A abertura foi em Tocantinópolis. Tinha um movimento forte para criar um Estado formado pelo Norte do Tocantins, o sul do Pará e o sul do Maranhão. Obviamente a capital seria em Imperatriz, o presidente era o [José] Sarney. A tese defendida por nós do Tocantins eram as divisas naturais, Araguaia e Tocantins.
O Comitê foi uma reunião da sociedade civil que envolveu todos os grupos, inclusive a Cenog e a Conorte
Integrantes dos movimentos Cenog/Conorte reclamam da falta de reconhecimento histórico ou reclamam, na verdade, da falta de valorização política, pois desejavam fazer parte do governo?
Nós podemos fazer uma análise temporal. A Cenog [Casa do Estudante Norte-Goiano] veio antes, se estruturou em Porto Nacional, na década de 60, fez um trabalho extraordinário. Estava no comitê representada por Adão Bomfim Bezerra. Já a Conorte, que foi mais recente, estava representada por Célio Costa, que também tinham outras finalidades, não só a criação do Estado. O Comitê foi uma reunião da sociedade civil que envolveu todos os grupos, inclusive a Cenog e a Conorte. Todo movimento tem uma diretoria executiva. Eu era o presidente por força do cargo. João Rocha, diretor de um grande conglomerado de comunicação; o Célio [Moura] que tinha relações com o governo e o Adão [Bomfim Bezerra] era procurador. Então, esse pessoal participou ativamente até o último momento. Agora, na hora de vir não foram todos que vieram, e aí tem um problema sério. Todo mundo que participou tinha uma posição relevante na sociedade, senão não tinha influência. Eu era juiz e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG), o Célio estava no governo, o Adão, também; então muitos não vieram. Adão veio, e depois retornou para Goiás para exercer cargos públicos em Goiás; Célio ficou; João veio, cumpriu um mandato de senador, depois voltou; o senador [Luiz] Maia era irmão de José Maia Leite. Chegou um momento que dividiu. Criou o Estado todo mundo junto, mas e na hora de governar? Faz-se uma eleição, aí separa. Na eleição tem de ter dois grupos disputando e naturalmente pode ter ficado mais gente do outro lado. Eu fui convidado para participar da primeira chapa, evidentemente que não foi por acaso. Alguma razão encontraram em mim para eu ser convidado. Eu escolhi um partido que era light, o PFL, que era mais à esquerda do PDS. As pessoas riem quando falo isso. Claro, se você olhar as figuras da época, que tinham projeção de poder, era isso. Então, teve de dividir as forças políticas. Agora, não ficaram. O Totó [Cavalcante] infelizmente, não ficou. Totó é uma figura querida, um grande líder, teve uma posição muito importante, mas ele ficou em Goiás cumprindo dois anos de mandato. Isso foi problemático. Alziro [Gomes], que tinha mandato também, largou e veio pra cá. O resumo é: o pessoal não veio. Eu larguei meu cargo público lá e vim pra cá, sem ter nem lugar para morar. São opções. Todos reconhecem o trabalho da Cenog e a Conorte, mas a parte operacional foi o comitê que fez. Foi o comitê que entregou a emenda. Foi o comitê que fez a defesa da emenda na Comissão de Sistematização. Fui eu escolhido para fazer, a entidade tinha de ser representada por uma pessoa, uma pessoa falava, para poder uniformizar o pensamento. Evidente que não era meu o pensamento, era coletivo, eu apenas expressei. Debatemos muito na imprensa, que abriu espaço para o debate, o que representou uma ajuda extraordinária, todos os veículos. Eu ia no [telejornal] Goiânia Urgente sempre; ia no [telejornal] Bom Dia [da TV Anhanguera/Rede Globo] sempre; fui no Bom Dia Brasil, em Brasília. Então, teve essa ajuda importante da imprensa, que permitiu movimentar a opinião pública.
Infelizmente muito da memória da criação e implantação [do Estado] já desapareceu
O que o sr. acha que vai ficar de memória, da luta, criação, implantação do Estado do Tocantins e construção de Palmas?
Infelizmente muito da memória da criação e implantação já desapareceu. Nós não tínhamos lugar aqui para guardar. Depois mudou o governo, agora estamos falando em termos de partido. Moisés Avelino era companheiro da criação, na hora que separou ele tinha um partido e o Siqueira tinha outro. Um partido amplamente majoritário. De 60 prefeitos da implantação do Estado, 53 eram do MDB em função da “avalanche” Iris Rezende. Houve essa divisão e não sei por quê, não havia nem lugar para guardar. Também não tinham pessoas para cuidar desta área de tratamento da memória do período de implantação do Estado. Não tínhamos universidade, e são os departamentos de história que geralmente guardam esses documentos. Em Goiás, nós temos o Instituto Histórico e Geográfico (IHGG), o Museu Zoroastro Artiaga. Tem falado que temos que aproveitar as fontes que estão por aí para ir colhendo depoimentos. Acho que cabe à universidade assumir a condição de cuidar da nossa memória histórica. Acho que nós precisamos de um esforço ainda para recolher essas fontes e submetê-las a um tratamento adequado da pesquisa histórica e disponibilizá-las aos pesquisadores. A memória maior creio que está em Porto Nacional. O mais importante é esse movimento em torno da preservação de nossa memória, todas as iniciativas ainda que pequenas, de alguns municípios são importantes. Temos de ir em busca dessas fontes, para preservá-las no sentido da formação da memória coletiva, criar a tocantinidade. Nossa personalidade ainda é muito da cultura goiana, mas teve uma influência grande do Maranhão.
Os líderes que lutaram pela criação do Estado estão saindo de cena e uma nova geração está assumindo o comando do Estado. Como o sr. avalia esse processo de transição?
Daí é que vem a preocupação com a memória. Esse pessoal não conhece os líderes emancipacionistas responsáveis pela saga tocantinense. Eu às vezes fico surpreso de ser abordado nas ruas por pessoas que me conhecem. Os jovens me conhecem, acho isso interessante, deve ser em função da minha atuação na vida pública. Eu deposito esperança na universidade para formar consciência crítica. O processo político precisa dar visibilidade, tem mecanismo para fazer. Ainda somos pobres, não dispomos de patrocínio para pesquisa e publicação de obras que resgatem nossa memória. O Estado pode oferecer meios de estimular este processo.