Uso da cannabis medicinal avança no Brasil

05 maio 2023 às 14h59

COMPARTILHAR
O uso terapêutico de substâncias extraídas da maconha mais do que dobrou no ano passado no Brasil, mas a produção continua bastante limitada no país. Poucas são as indústrias farmacêuticas que produzem os medicamentos por aqui e boa parte do que é consumido legalmente ou é importado ou é produzido por quem consegue decisão favorável na Justiça. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) deve julgar nos próximos dias ação em que vai definir tese sobre a possibilidade de autorização sanitária para a importação e cultivo de cannabis.
Em seu consultório em Goiânia, o médico fisiatra Maurício Rassi tem visto um aumento na busca dos pacientes pelas terapias com Cannabis e observa, na prática, os benefícios das substâncias.
“Quando eu prescrevo um derivado de cannabis, um fitocanabinoide, a um paciente com dor crônica, eu vou estar sim tratando a dor dele, porém eu vou melhorar a qualidade de sono dele, eu vou diminuir um grau de ansiedade e estresse, então outros fatores associados à dor crônica também são tratados pelo mesmo medicamento”, explica o médico.
Ele acrescenta que o medicamento tem menos efeitos colaterais. “Quando a gente fala de medicação para dor – como a Pregabalina e a Duloxetina, por exemplo – pode-se comprar na farmácia. Eles podem apresentar efeitos colaterais como problemas em parte renal, em parte gástrica, principalmente no paciente mais idoso. O uso da cannabis consegue substituir esse tipo de medicação com muito mais segurança”, avalia.

Segundo o médico, os pacientes estão ficando mais suscetíveis em aceitar o tratamento com o Canabidiol, mas que no início não foi bem assim. “Quando se falava em remédio a base da maconha, antes da pandemia principalmente, o povo não queria nem ouvir falar, tinha muito preconceito. Na época toda a medicação vinha de fora e a importação era muito morosa. Esse estigma diminuiu bastante, melhorando o entendimento. Os efeitos estão cada vez mais comprovados e a tendência é aumentar a aceitação, as pesquisas e a prescrição por parte dos médicos”, afirma o profissional.
Procura cresce
O aumento do consumo ainda é incompatível com a oferta no Brasil, pois a lei antidrogas proíbe o cultivo e a exploração comercial da Cannabis, mesmo para uso terapêutico. Nas farmácias, já existem medicamentos com substâncias da maconha isoladas, e também é possível fazer importação direta, mas, nos dois casos, os custos são elevados.
Uma pesquisa do Portal Cannabis & Saúde mostrou que houve um crescimento de 342,3% nas vendas de produtos à base de cannabis nas farmácias do Brasil desde 2018. A partir da entrada do primeiro produto no mercado até 2023, a receita teve expansão significativa: de 2021 para 2022, o aumento foi de 156,1%, movimentando R$ 77 milhões. As prescrições cresceram 487,8% no último ano. O número de médicos que receitam produtos à base do canabidiol para compra em farmácia passou de 6,3 mil, em 2021, para 15,4 mil no ano passado, alta de 146%.
Leia mais: Entre a legalidade e a não regulamentação: como pacientes têm acesso à cannabis medicinal
Fazer cultivo pessoal exige autorização da Justiça e as iniciativas de oferta do medicamento no Sistema Único de Saúde (SUS) estão apenas começando. Outra alternativa, mais acessível, são as associações. Em Goiânia, a Associação Curando Ivo realiza trabalho com um projeto de pacientes, familiares e colaboradores que tem o propósito de possibilitar e fortalecer os direitos de pacientes da cannabis medicinal. O presidente da associação, Filipe Suzin, conta como foi o início dos trabalhos.
“Tudo começou com a história do meu pai, o Seu Ivo, que tem Alzheimer e teve uma reviravolta muito positiva após iniciar seu tratamento através da cannabis. Essa luta já dura três anos. No começo, o que era individual, aos poucos foi se tornando uma luta coletiva. Hoje já somos 33 associados que precisam da medicação para diversas doenças”, afirma Filipe.
Desafios
Segundo ele, a grande dificuldade da produção dos medicamentos à base de cannabis no Brasil ainda é a criminalização do plantio da maconha. A desinformação e o preconceito são grandes obstáculos que dificultam o acesso desses pacientes a uma vida com mais qualidade.
“A maior barreira ainda é a criminalização da planta. Vários são os medicamentos que podem ser extraídos dela, e para isso precisamos plantar para podermos pesquisar e desenvolver cada vez mais a produção medicinal, e principalmente democratizar o acesso no Sistema Único de Saúde”, revela.
“Para a gente realmente falar sobre um acesso democratizado a esse tratamento, a gente precisa começar a falar do cultivo interno da produção interna desse óleo. O Brasil vem de um processo proibicionista e a gente não consegue ter uma produção aqui por conta da nossa legislação. Hoje em dia, cultivar, manusear, ter em estoque, o próprio porte, tudo isso é considerado ilícito. São condutas proibidas pelo nosso ordenamento”, afirmou.
Depoimentos
Quem teve a vida transformada pelo tratamento a base de cannabis foi a Dona Maria Alice, aposentada de 74 anos. Ela sofre com uma artrose severa em seus dois joelhos, o que causa fortes dores e dificuldade para andar. Há cerca de um ano ela começou a fazer tratamento para as dores com o canabidiol e se surpreendeu com os resultados.
“No começo eu achei que fosse um efeito placebo, não achei que iria resolver, mas resolvi tentar. Depois de um tempo aconteceu a melhora, fui ganhando confiança em função da diminuição da dor. Meu caso já era considerado muito crítico, restando basicamente as cirurgias para tentar resolver. Hoje vivo com bem menos dores, consigo andar, ainda que usando o andador, mas melhorou demais”, disse.
Leia mais: Cannabis medicinal: justiça suspende 2,7 mil ações no Brasil
Segundo ela, em nenhum momento o preconceito e os estigmas sociais foram empecilhos para o seu tratamento. “Não tive medo, eu li, pesquisei bastante e não tive receio de fazer o tratamento. Quem ainda tem preconceito não sabe do que a medicação é capaz”, revelou a aposentada.
Há alguns anos, a diretora de operações Talita Coelho foi diagnosticada com uma depressão profunda que a impedia de sair de casa. Foi o tratamento com cannabis que a fez superar as crises de ansiedade. Ela conseguiu na Justiça uma autorização para cultivar a planta e extrair dela o óleo essencial.
“Cultivar dá bastante trabalho, então o habeas corpus não é uma solução definitiva para tudo que você precisa como paciente. Você tem que ter o trabalho de estudar cada ciclo das plantas, cultivar direitinho, sem poder ter praga nenhuma. Isso é muito difícil em se tratando da cannabis. É uma planta bem delicada. Tem que tomar cuidado para não ter nada, porque aquilo vai virar o seu medicamento. Eu adoraria poder comprar o meu medicamento a um preço acessível e que fosse produzido da maneira como eu confio”, aponta.
Debate no Legislativo
O deputado estadual Lincoln Tejota (UB) apresentou na quarta-feira, 3, requerimento para a criação da Frente Parlamentar em Defesa da Cannabis Medicinal, após, segundo ele, a grande repercussão da audiência pública realizada na Assembleia Legislativa, no último mês, com o tema “Cannabis Medicinal: Ciência, Sociedade e Terapia”. Promovido em parceria com a Associação Goiana de Apoio e Pesquisa à Cannabis Medicinal (Agape) e seu fundador e diretor-geral, o advogado Yuri Tejota, o evento teve como objetivo reunir autoridades das áreas da saúde, educação/pesquisa e jurídica para debater o uso medicinal de medicamentos à base da planta cannabis.

“Após a audiência pública que realizamos nesta casa, percebi uma grande comoção por parte da sociedade. Tenho recebido no meu gabinete inúmeras pessoas que dizem que precisamos avançar nessa luta. São mães que têm filhos com espectro autista, pessoas que têm pais que sofrem com Alzheimer, enfim, várias pessoas que buscam algum tipo de alívio para si ou para algum familiar”, diz Lincoln Tejota. Ele afirma que o tema se tornou uma verdadeira “demanda social” crescente, devido ao tratamento, muitas vezes, ser o único eficaz para amenizar sofrimentos causados por diversas doenças.
Participaram da audiência citada pelo deputado representantes das reitorias da Universidade Federal de Goiás (UFG), da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO) e da UniEvangélica, além de secretários de estado e municipais de saúde e educação; Defensorias Públicas; Ordem dos Advogados do Brasil (OAB); Tribunal de Justiça; tribunais de contas; prefeitos, vereadores e associações classistas e da sociedade civil.
Lincoln é autor do projeto de lei que institui em Goiás a política estadual de fornecimento gratuito de medicamentos à base de substâncias da planta cannabis nas unidades de saúde pública estaduais e privadas conveniadas ao Sistema Único de Saúde (SUS). São os fitoterápicos e fitofármacos prescritos à base da planta inteira ou isolada, que contenham em sua composição fitocanabinóides como canabidiol (CBD), canabigerol (CBG), tetrahidrocanabinol (THC) e outros. O projeto foi aprovado em definitivo pela Assembleia e aguarda sanção do governador Ronaldo Caiado (UB).
Estados como Rio de Janeiro, Distrito Federal e, recentemente, São Paulo, já possuem leis aprovadas para oferecer a pacientes com doenças como epilepsia, TDAH, fibromialgia e de algumas degenerativas esse tipo de medicamento para tratamento alternativo.
Na Câmara de Goiânia, o vereador Lucas Kitão (PSD) defende a importância do debate sobre uso terapêutico da planta. Para o vereador, a democratização do acesso e a legalização – por meio de marco regulatório – poderiam gerar emprego, movimentar a economia e melhorar a vida de muitos.
Leia mais: Iquego vai produzir e comercializar produtos à base de Cannabis medicinal em Goiás
“Precisamos aprovar um marco regulatório. Já temos o projeto 399/2015, que tramita no Congresso Nacional, e é o primeiro passo para ter uma lei que regulamente e facilite legislação e discussão profunda sobre cannabis medicinal, por meio do acesso à planta e para melhorar qualidade de vida de pacientes que sofrem com centenas de doenças”, afirmou.
Kitão foi autor de projeto de lei voltado à criação do Programa Municipal de uso da cannabis para fins medicinais e distribuição gratuita de medicamentos à base da planta pelo Sistema Único de Saúde (SUS), PL 10.611/2021.
“A gente aguarda, cobra e exige que a nossa lei seja cumprida, que é aquela que dispõe que o município entregue gratuitamente esses medicamentos. Aqueles que a Anvisa já liberou, inclusive através de uma receita médica ou de uma decisão judicial, que é o caso da maioria que precisa do medicamento, mas não tem condição de comprar”, pontua o vereador.

Segundo Kitão, além de facilitar o acesso à medicação, o poder público também precisa informar como administrar os remédios de forma correta.
“Não é só dar o remédio, a gente tem que dar também uma estrutura para os pacientes e os familiares poderem otimizar esse tratamento, saber a dosagem, saber o manejo e etc. E isso envolve inclusive questões alimentares que a pessoa tem que ter cuidado, uma série de coisas. Então agora a gente aguarda a prefeitura cumprir essa lei”, declara.
Lucas Kitão afirma ainda que, na questão do plantio, Goiânia tem avançado em decisões judiciais favoráveis ao cultivo, mas ainda falta informação. “Goiânia das capitais está entre as referências no Brasil. Já são dezenas em Goiânia que a pessoa resolve plantar o seu próprio medicamento e a Justiça libera. O problema é que para a pessoa chegar nesse nível, ela tem que ter uma expertise na extração do óleo. Ela tem que saber o plantio, ela tem que saber qual a semente correta”, disse o vereador.