Documento emitido pelo órgão e direcionado à universidade é algo que não cabe nos tempos atuais, principalmente para um lugar onde debate e posicionamento são características intrínsecas

Manifestação em sessão do Consuni, na UFG: prática natural  do meio acadêmico | Divulgação
Manifestação em sessão do Consuni, na UFG: prática natural do meio acadêmico | Divulgação

Elder Dias

Em fevereiro de 1969, o então presidente Arthur da Costa e Silva cometeu o que seria a maior violação às liberdades de pensamento nas instituições de ensino do País no período da ditadura militar. Era o Decreto-Lei nº 477, editado mais precisamente no dia 26 daquele mês, e que definia infrações disciplinares cometidas por professores, servidores técnico-administrativos ou estudantes da rede de ensino público ou particulares.

Havia rito sumário de demissão nas universidades brasileiras, para quem praticasse qualquer infração disciplinar que fosse considerada “subversiva”. E o que seriam essas infrações? Começavam com a simples presença em paralisações de atividades escolares, a confecção de materiais e a organização de eventos não autorizados pelo governo.

Aquele decreto foi batizado bem simbolicamente de “o AI-5 das universidades”, em referência ao Ato Institucional nº 5, que estabeleceu, de fato, a pior fase do regime autoritário no País, com superpoderes ao presidente e suspensão de várias garantias constitucionais, em 13 de dezembro de 1968.

Esse preâmbulo serve para falar de algo que, na última semana, ocorreu dentro da mais sólida democracia que talvez o País jamais tenha tido em sua história. Já são 31 anos desde o fim da ditadura, tendo à frente José Sarney — o vice que assumiria o cargo de presidente com a morte do eleito Tancredo Neves, que não chegou a tomar posse. É que na segunda-feira, 4, a Procuradoria da República em Goiás fez chegar à Universidade Federal de Goiás (UFG) a Recomendação nº 75. Após fazer uma série de considerações sobre o que poderia ser resumido em traçar um papel “republicano” da instituição em relação ao momento político do País, o Ministério Público Federal (MPF) recomendou à UFG que “não realize nem permita, em suas dependências físicas, nenhum ato de natureza político-partidária, tendo por objeto o processo de impeachment da Presidente da República, seja favorável ou contrariamente”, bem como “não utilize nem permita que seus bens móveis, materiais ou imateriais (aqui incluídos sites oficiais e redes sociais institucionais) sejam utilizados com o objetivo de promover qualquer ato sobre essa temática” e “não utilize nem permita que recursos financeiros sob gestão dessa instituição custeiem ou patrocinem a participação de qualquer pessoa física ou jurídica, ou, ainda, agrupamentos de qualquer espécie, em atos pertinentes a essa temática”.

É bem verdade que o País está longe de viver um momento de terror como o dos anos de chumbo. A crise é de outro tipo. Mas também é lícito dizer que a carta do MPF guarda similitudes com o “AI-5 das universidades. Ora, o espaço acadêmico é um local “político” por natureza — e seria bom que os procuradores, autores da recomendação, procurassem um uso mais amplo da polissemia dessa palavra.

Até o começo do mês passado, o Ministério Público Federal jamais havia se preocupado com manifestações políticas — comuns, corriqueiras, rotineiras — que brotam da UFG, em suas mais diversas correntes de pensamento (a palavra “universidade” já reforça isso). Desde o fim de 2014, tem havido pelo Brasil afora atos contra a gestão de Dilma Rousseff (PT), mas nenhuma comunicação havia chegado à UFG. Em março, nos dias 18 e 31, houve dois atos que reuniram adeptos da garantia da continuidade do atual governo, tendo a democracia como mote. A comunidade acadêmica das instituições federais se mobilizou com certo vigor por essa causa. Então, surgiu a “recomendação” do MPF.

É bem verdade que, se o impeachment é a questão, os que se expõem e buscam a tomada de alguma posição dentro do tema no âmbito da UFG são francamente contra a saída da presidente Dilma Rousseff por essa via. Alguns dizem, por isso, que o meio acadêmico é de esquerda: talvez seja menos do que pensem, mas é fato que a esquerda se apresenta muito mais do que a direita nas universidades federais em geral.

Poderia se dizer, então, que o ato do Ministério Público Federal buscava afetar especificamente esse público (anti-impeachment)? É algo de se suspeitar, embora o documento “recomende”, quase que “pró-forma”, que também não haja manifestações favoráveis ao processo.

Seguindo a recomendação ao pé da letra, a UFG não poderia mais debater o processo de impeachment. Uma coisa totalmente desprovida de bom senso, já que a dialética é inerente ao meio acadêmico.

Na sexta-feira, 8, com a repercussão do caso, o Conselho Universitário (Consuni) da UFG expediu uma resposta oficial (veja o box nesta página) da instituição ao ato da Procuradoria da República. O Sindicato dos Docentes das Universidades Federais de Goiás (Adufg Sindicato) também emitiu nota, questionando a “pouca isenção” dos que assinaram a recomendação do MPF, ao denominar de “brasileiros” os defensores do impeachment, e de “grupos adversos” os que são contrários ao processo. Como se vê, os meandros do discurso quase sempre desconcertam seu emissor, .

Nas redes sociais, alunos, professores e técnico-administrativos também se revoltaram contra o documento. A universidade, portanto, reagiu. Não poderia ser diferente. Dizem alguns que estamos vivendo tempos sombrios. É saudável para a mente acreditar que esses alguns estejam errados. Mas é bom para o corpo saber que nunca esteve tão ameaçada essa democracia construída sob a guarda da chamada “Constituição Cidadã”.

Nota do Consuni em resposta à Recomendação Nº 75, de 4 de abril de 2016, Ministério Público Federal (MPF/GO)

“O Conselho Universitário (Consuni) da Universidade Federal de Goiás (UFG) reunido na data de 08/04/2016 considera que a dinâmica acadêmica demanda, em suas práticas de ensino, pesquisa, inovação e extensão, o diálogo aberto com a sociedade em sua totalidade.

Entendemos que o cenário de instabilidade política requer que a Universidade se antecipe, dialogue, investigue e realize debates públicos em busca de respostas para os problemas sociais, evitando a construção de saber enviesado e distante da sociedade.

Assim, o Consuni repudia a recomendação do MPF/GO de que a Universidade se abstenha de promover ou participar de atividades cujo tema se relacione ao debate político em torno do impeachment. Entendemos ainda que tal recomendação fere a autonomia e a liberdade para aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber como bens necessários para que se desenvolva o conhecimento científico conforme garante a Cons­tituição Federal, a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) e o Estatuto da UFG.

Do mesmo modo repudiaremos sempre qualquer atentado à liberdade de expressão e à autonomia universitária.” l