Há cinco anos o pequeno atacante tenta a vida no esporte em Goiânia. E, de uma vez, deu tudo muito certo. Quanto tempo durarão seus 15 minutos de fama?

Michael comemora um de seus 3 gols contra o Vila Nova fazendo o “C” (inicial do nome da namorada): fé, persistência e sacrifícios até pedir música no “Fantástico”

Elder Dias

Uma vida cheia de nãos ao sonho. A porta da esperança dando lugar sempre à porta da rua. Seria a hora de cair da cama, pôr os pés no chão e pensar, com realismo, que nem tudo que se quer se pode ter, e que é preciso discernimento e sobriedade para saber que por aquele caminho ali não dá mais. Mas o sonhador sempre sonha mais uma vez. E esse é o diferencial de quem luta pelo que acredita e é premiado ao final – o que é cruel e verdadeiro, pelo pressuposto, com quem tenta a vida toda, vai até o fim também, mas vive e morre sem conseguir.

O caso de Michael já teve final feliz. No domingo, 12, dia de seu aniversário de 21 anos, ele se deu o melhor dos presentes possíveis: a consagração pessoal e a recompensa pela própria persistência, ao brilhar no horário nobre do “Fantástico”, pedindo música pelos três gols que havia feito na goleada por 5 a 1 do Goianésia sobre o Vila Nova. Pode ter tido ali, como sentenciou Andy Warhol, os 15 minutos de fama de sua vida de jogador. Mas o atacante quer muito mais. Para ele, os parabéns do apresentador Tadeu Schmidt no programa global ainda são a parte inicial de uma epopeia, não o “grand finale” de um curta-metragem.

Tadeu Schmidt deu ao jogador do Goianésia os 15 desejados minutos de glória de que falou Andy Warhol

Para iniciar a história deste texto, porém, é preciso ir a Poxoréu (MT), uma terra que tem o sonho em sua origem. Seu primeiro núcleo foi formado com o encontro de pedras preciosas por uma expedição de garimpeiros. Em 1924, eles acharam sete pequenos diamantes – conhecidos como “xibius” – em um riacho. E, a partir da descoberta da jazida, houve uma corrida para a região. Há cinco anos, outro sonhador, de 16 anos, reduziu a pequena população da cidade de 17 mil habitantes a 240 quilômetros da capital, Cuiabá, ao seguir atrás de seu objetivo de vida: ser jogador profissional de futebol.

Em sua terra natal, Michael Richard Delgado de Oliveira era, até então, atleta da Escolinha Diamante Verde, que disputa competições de categoria de base no futebol e no futsal. Ele queria mais. Deixou tudo, inclusive a escola – estava no 1º ano do ensino médio – e rumou para Goiânia, onde já morava um primo.

Foi para a capital goiana que o garoto paraense Erik veio, ainda mais novo, com o sonho do futebol. Dez anos depois, em 2014, se tornava a revelação do Campeonato Brasileiro pelo Goiás e no ano seguinte era contratado pelo Palmeiras. Sua passagem por aqui foi conturbada, o acusaram de deixar a glória subir-lhe à cabeça, ganhou fama de jogador individualista – inclusive fora de campo –, mas Erik segue a vida no clube paulista com um confortável salário, embora quase sempre na reserva.

Como um retirante do século 21 em busca de colocação, Michael se apresentou em vários clubes: só da capital foram Atlético, Vila Nova e Goiânia. Resposta negativa, de forma unânime. “Só no Goiânia foram quatro vezes que me recusaram”, lembra. Sina semelhante teve um lateral-direito, Marcos Evangelista, que foi recusado em testes no Corinthians, Palmeiras, Santos, Portuguesa e Nacional. Até que, aos 18 anos, foi indicado ao São Paulo por olheiros. Era 1988 e 14 anos depois, ele, consagrado pelo apelido, Cafu, levantava a Taça Fifa do penta mundial como capitão da seleção brasileira.

Mas surgiu para o mato-grossense uma quinta chance no Galo, quando jogava pelo Monte Cristo na 3ª Divisão goiana. Ela veio por Fabrício Carvalho, um dos dois Fabrícios da vida de Michael – o outro é Fabrício Dorneles, seu amigo e empresário –, que estava no comando técnico do Goiânia e o levou para a disputa da Divisão de Acesso de 2016. Lá, o atacante começou a se destacar. Mas ainda não achava que tinha feito grande coisa da vida. Um dia, em uma ligação para o pai, que fazia aniversário, o comunicou que fizera uma tatuagem. Era o nome dele gravado no braço: “Messias”. “Nunca te dei orgulho de nada. Vou fazer um gol e beijar a tatuagem.” E foi assim mesmo: no dia do aniversário, jogando contra a Aseev, de Paraúna, fez o gol da vitória de seu time.

Adriano Imperador, reinando no Flamengo: morte do pai foi também perda da referência e início da decadência

O pai é a figura-guia do jogador. O professor de informática, de 55 anos, criou sozinho seus quatro filhos (três rapazes e uma garota) desde que se separou da mãe do primogênito Michael, que tinha então de 11 para 12 anos. Seu Messias trabalhava cedo e à noite para sustentar as crianças, contando com a ajuda de uma vizinha, Elzeni, a quem o filho mais velho é muito grato. Quando ficou mais crescido, Michael assumiu a responsabilidade de cuidar dos irmãos, até que seu pai se casou novamente. “Ele é minha referência”, resume Michael, atacante como um outro jogador que tinha no pai seu esteio: Adriano Imperador, que perdeu o rumo ainda novo para o futebol, após já estar consagrado e milionário, com a morte do pai, Almir, em 2004.

Ainda sobre família, Michael diz ter bom convívio com a mãe, apesar da distância – ela também casou-se novamente e mora em Santo Antônio do Leste, a 190 quilômetros de Poxoréu – , e procura ajudá-la “no que ela precisa”.

A boa campanha no pequeno clube da capital o levou até Goianésia, por intermédio do ex-zagueiro Roni, que o indicou. Seria sua primeira vez em um campeonato de 1ª Divisão. Para chegar até aí, o caminho árduo só foi exitoso pela a mão de Deus, crê o artilheiro. Assim como boa parte dos jogadores da atualidade, o garoto junta suas próprias forças às divinas para se conduzir. “Devo tudo o que vem acontecendo na minha vida a Jesus. Só por Ele cheguei até aqui”. Michael conta que se converteu há seis meses e frequenta a Igreja Assembleia de Deus, Ministério Fama, no Setor Forteville, na região do anel viário da capital.

O boom dos primeiros jogadores autodenominados “cristãos” ocorreu nos anos 80, com os Atletas de Cristo. Uma dupla de jovens do São Paulo se destacava entre esses fervorosos. O meia Silas e o atacante Müller. Silas seguiu sempre na igreja e hoje é treinador. Não ganhou fortunas como o colega, mas tem a vida muito bem estabelecida. Müller se “desviou”: namorou modelos, comprou carros e artigos de luxo; ficou rico, mas perdeu tudo. Aos 50 anos, está recomeçando a vida.

Nem se pode dizer que seja só por falta de instrução que os jogadores caem na sarjeta. George Best e Sócrates que o digam. Best, o maior jogador do futebol da Irlanda do Norte e um dos craques inesquecíveis do Manchester United, era talentoso também com as frases, principalmente sobre sua vida pessoal. “Gastei muito dinheiro com bebidas, mulheres e carros. O resto eu desperdicei”, disse certa vez. Mais do que uma frase, era um testemunho. Boêmio, ele morreu aos 59 anos, de problemas em decorrência de um transplante de fígado. A vida de Sócrates, cuja condição para ir jogar no Corinthians foi antes se formar em medicina, também foi entre a bola e o álcool, causa de sua morte, aos 57 anos, também por problemas no fígado, em 2011.

Michael quer concluir estudos também e trabalhar com futebol, com algo como educação física. Curiosamente, quando se esperaria os nomes Messi, Neymar e Cristiano Ronaldo saindo de sua boca, diz que não se espelha em nenhum jogador. “Não tenho jogador que admire. Gosto do jeito que Romário jogava, a paciência que ele tinha na área.”

Romário, o “Baixinho”: com 1,67 metro, ele provou que tamanho não é documento no futebol

Michael se define como um jogador que não pensa antes de fazer – guardadas as proporções, um tanto instintivo como o próprio Romário, o que não necessariamente significa coisa boa. “O treinador me dá muito conselho, me ajuda muito, pede para eu marcar e levantar mais a cabeça”, diz, referindo-se a Jorge Saran, técnico do Goianésia, que busca corrigir os vícios que o habilidoso atacante traz, por uma formação de base incompleta. Dos 16 aos 20 anos, entre suas tentativas de emplacar, o atacante era destaque em campeonatos de várzea, como a Copa Flávio’s.

O rótulo que se dá a esse tipo de jogador é “peladeiro”: dificuldade para entender o jogo coletivo, para desempenhar uma função tática, para livrar-se dos defeitos adquiridos pela prática livre. Só os peladeiros verdadeiramente craques – ou, pelo menos, artilheiros – sobrevivem. A história está repleta deles no Brasil: de Bé, que fez história no Vila Nova ao se profissionalizar com 26 anos, a Garrincha, que dispensa apresentações, passando por Leandro Damião, que chegou à seleção brasileira e só rodou por grandes times desde sua descoberta pelo Internacional.

O destino de Michael está traçado: depois do Campeonato Goiano, ele vai para o Goiás Esporte Clube, maior clube do Centro-Oeste. O acordo, porém, é desmentido tacitamente pelo jogador. “Profetiza mesmo, que eu recebo”, sorri, com uma tirada de humor cristão, para negar de novo com uma quase confissão pelo avesso: “Agora, neste momento, isso não é verdade”. De qualquer forma, ele diz: “Se fosse para fazer um contrato de cinco anos, que clube você escolheria? O Goiás tem nome, tem uma estrutura que poucos têm.” Fazer três gols é possível, ele provou, mas não dá para negar seu futuro time por três vezes.

Futebol é cada vez mais um esporte de gigantes e isso foi o grande empecilho na rota do pequeno Michael. Seu 1,64 metro foi sempre ponto negativo na visão de “especialistas” das categorias de base. Parecem se esquecer de que Romário, Maradona e Messi têm menos de 1,70 metro e que Zico e Pelé tinham pouco mais do que isso. Certamente esses “baixinhos” estão todos na maioria das listas justas sobre os 20 maiores jogadores da história do futebol. E o Goiás, seu futuro clube, tem uma história de pequenos grandes jogadores: foi assim com os meias Sandoval, Evandro e Josué, mas também com atacantes, como Dill e Araújo – este um pouco mais alto, mas de porte físico franzino semelhante ao de Michael.

Saindo do modesto Goianésia para um vínculo de longa duração com um clube da capital – e ainda o maior deles, ainda que o Atlético esteja na Série A –, Michael já poderá dizer em Poxoréu que venceu na vida. “O que mais me deixou feliz com os gols foi que deu alegria a todo mundo de minha cidade. Saí do Mato Grosso e vim pra cá sem conhecer nada, eu fui o único que teve coragem de sair. Agora tem muita gente se sentindo capaz.”

Por indisciplina e excesso de peso, Walter foi do céu ao inferno no Goiás: Atlético é tentativa de recomeço

A gratidão está no coração dele também. A homenagem à dupla Erich & Bruno, cuja música “Cai e Pira” escolheu para trilha sonora de seus gols no “Fantástico”, veio desse sentimento. Mais que isso: Michael mostra, em conversa no WhatsApp, que contou a Erich ter sonhado com que faria três gols no Vila e que pediria a canção deles a Tadeu Schmidt. Enquanto a fama e o clube grande não chegam, Michael segue em Goianésia, “praticando muita finalização”, para onde foi a custo zero. O próprio presidente do time confirma e agradece: “Ele veio confiando no projeto e mereceu a chance que vai receber”, resume Gustavo Carvalho, que também dá como certa a vinda dele para Goiânia após o Estadual.

Enquanto Michael chega, com todas as esperanças de ascensão a ídolo, outro se vai: Walter, com certeza o maior nome que passou pelo Goiás nos últimos dez anos, saiu com a pior das imagens do clube: gordo, indisciplinado e briguento. Achou abrigo em Campinas, a uma légua da Serrinha. É no Atlético que o atacante de habilidade indiscutível e de instintos incontroláveis quer se recuperar. No fim, o mundo do futebol é como a vida: é preciso buscar um objetivo e, mesmo se consegui-lo, não parar de ter um cerne, onde se apoiar. Walter ganha em um mês o que Michael provavelmente sonharia para um ano. Mas, se pudesse escolher, provavelmente gostaria de, na semana passada, ter vivido na pele de seu colega desconhecido. Agora, porém, a semana já é outra. E os 15 minutos, de fama ou de infelicidade, já ficaram para trás.