O processo de separação dos estados de Brasil e Portugal contou com a participação de diversos goianos. O Jornal Opção ouviu historiadores para compreender quem foram as personalidades que, em Goiás do século XIX, incentivaram os ventos da mudança, ajudaram a estabilizar a província em um cenário de conflagração separatista e administraram o território quando os governantes portugueses recuaram, há 200 anos. 

Tensões pré-Independência

Felipe Antônio Cardoso e Joaquim Teotônio Segurado

Thalles Murilo Vaz Costa é doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense, escreve e pesquisa sobre a história de Goiás no cenário brasileiro do século XIX. O pesquisador explica que a conjuntura na província era de conflito desde antes da proclamação da independência em 7 de setembro de 1822.

Em 14 de agosto de 1821, o movimento separatista nascido no norte de Goiás (atual Tocantins) chamado Nativismo do Norte tentou depor o português nomeado como governador-geral da capitania, Manuel Inácio de Sampaio e Pina Freire. O administrador da província, entretanto, resistiu no cargo e debelou a insurgência. Seis dias depois, os líderes do movimento foram denunciados e punidos. Tratavam-se do militar Felipe Antônio Cardoso e do ouvidor Joaquim Teotônio Segurado. 

Joaquim Teotônio Segurado | Foto: Reprodução/Academia Tocantinense de Letras

Felipe Antônio Cardoso foi preso e deportado para Arraias (no sul do atual Tocantins). A repressão ao movimento Nativismo do Norte, entretanto, despertou um sentimento autonomista que se espalhou pelo atual Tocantins e resultou em acirramento da resistência à administração portuguesa. 

Joaquim Teotônio Segurado, considerado na época como a maior liderança política do centro-norte brasileiro, era um português nascido na cidade de Moura e, após o golpe frustrado, foi enviado de volta para Portugal na condição de deputado pela Província de Goiás junto às Cortes Portuguesas. Ele continuou se correspondendo com Felipe Antônio Cardoso e colaborando intelectualmente com o movimento autonomista. 

Quando a independência finalmente veio, em setembro de 1822, o território do sul do Tocantins conquistou autonomia como província de São João da Palma (atual de São João das Duas Barras, onde fica o município de Paranã). Em 1823, Felipe Antônio Cardoso assumiu o cargo de governador do local. 

Enquanto alguns personagens como Joaquim Teotônio Segurado acreditavam que a província autônoma deveria ser fiel à coroa de Lisboa, outros como Felipe Antônio Cardoso defendiam que São João da Palma devia lealdade ao trono do Rio de Janeiro. Neste sentido, segundo Thalles Murilo Vaz Costa,  a independência em Goiás foi marcada por dois tipos de conflitos concomitantes: um conflito pela separação de Portugal; e outra série de conflitos de aproveitamento das oportunidades oferecidas pelo caos no cenário de reordenação do território.

Caos e oportunidades na Independência

Luiz Gonzaga de Camargo Fleury

Após a Independência propriamente dita, se iniciam os esforços para reunificar o território sob a administração brasileira. Com a saída dos governadores portugueses em 1822, se estabeleceram juntas de governo provisórias. Esta foi a primeira vez que os goianos se apoderaram da chefia provincial e determinaram seu próprio destino.

Luiz Gonzaga de Camargo Fleury | Foto: Reprodução

Mais esforços intempestivos para manter o funcionamento do Estado e menos uma ordenação imposta pela capital, a junta goiana foi formada por homens do poder econômico, militar e líderes políticos regionais. Todos haviam ocupado cargos como ordenanças, sacerdotes, da aristocratas. Em Goiás, os integrantes eram: coronel Álvaro Xavier, Inácio Soares Bulhões, José Rodrigues Jardim, Joaquim Alves de Oliveira, Raimundo Nonato Jacinto e padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury.

Um de seus principais objetivos era impedir que movimentos separatistas fragmentassem o território. Sob a liderança do padre de Pirenópolis (então Meia Ponte) Luís Gonzaga de Camargo Fleury, uma expedição militar partiu do sul de Goiás para o norte com 22 dragões (unidade de elite do exército imperial) e civis armados. Por dois anos, a tropa submeteu todos os arraiais do norte pela pressão das armas e da política, fazendo com que o território fosse reunificado sob a autoridade do Rio de Janeiro até 1824.

Thalles Murilo Vaz Costa ressalta que hoje, é um ponto de interesse da historiografia a participação de homens mestiços e índios apinajés nesta luta. Com a necessidade de aumentar o número de soldados, o padre Fleury contratou locais como mercenários e contou com a contribuição de povos indígenas.

Raimundo da Cunha Matos

Durante o período em que o poder militar de Goiás estava impondo a submissão ao norte, o império enviou um intelectual e militar para analisar a situação administrativa da província e representar os interesses do Rio de Janeiro na capital, Vila Boa (atual cidade de Goiás). O homem escolhido foi o governador das armas do império, Raimundo da Cunha Matos. 

Segundo Eliézer Cardoso de Oliveira, doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e professor na pós-graduação da Universidade Estadual de Goiás (UEG), Raimundo da Cunha Matos teve uma biografia interessante. Nascido em Faro, Portugal, Matos lutou aos 17 anos contra o exército de Napoleão. Em 1799 governou a colônia portuguesa da ilha de São Tomé, na África. Quando a independência se anunciava, o português Matos assumiu a causa brasileira. Fundou o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro; escreveu diversos ensaios filosóficos, políticos e históricos. 

Em 1823, foi destacado como governador das armas do império para ajudar a reprimir revoluções constitucionalistas em Goiás, mas sua tropa foi derrotada pela distância, pela terra, por doenças e pela resistência indígena. Chegando à província sem a força do exército, se dedicou a estudar os impostos da capitania, a organização administrativa e militar e a registrar a história oral da região. Seus estudos foram publicados nos livros “Corografia histórica da província de Goiás” (1824-1838).

Assentamento do poder após a independência

Joaquim Alves de Oliveira 

Caetano Maria Lopes da Gama, o primeiro presidente de província de Goiás formalmente apontado pelo poder imperial, chegou em setembro de 1824, retirando o poder das juntas governativas provisórias das províncias. Lopes da Gama foi sucedido pelo português Miguel Lino de Morais. Após o período de turbulência, o poder começa a se cristalizar novamente em torno dos administradores portugueses. 

Joaquim Alves de Oliveira, um pirenopolino (de Meia Ponte) foi o homem mais rico da província nas décadas de 1820 e 1830, tendo possuído diversas casas comerciais, empregado tropeiros para transportar bens do litoral para o interior, fundado a imprensa goiana e sendo o proprietário do Engenho São Joaquim (hoje, patrimônio nacional e museu histórico Fazenda Babilônia). 

Comendador Joaquim Alves de Oliveira | Foto: Reprodução / Pintura de Forzani 1977

Sua tipografia foi criada para editar o jornal Matutina Meiapontense. Segundo o historiador Eliézer Cardoso de Oliveira, Joaquim Alves de Oliveira era fortemente influenciado por ideias iluministas e editoriais do periódico tinham como lema “reis só são legítimos se obedecem a constituição”. Uma curiosidade é que o padre Luiz Gonzaga de Camargo Fleury era redator e colunista no jornal.

O iluminismo foi o movimento político-intelectual que surgiu na Europa no século XVIII e se caracterizou pelo enaltecimento da razão, do valor do indivíduo e da liberdade em detrimento do poder autoritário da monarquia absolutista. Desta forma, em Goiás, Joaquim Alves de Oliveira usou seu poder econômico e político para avançar seus ideais constitucionalistas em oposição à coroa portuguesa. 

Entretanto, com o acirramento dos movimentos separatistas no norte de Goiás, Joaquim Alves de Oliveira se tornou um moderado e chegou a oferecer apoio para proteger os portugueses da violência que conflagrava o norte. De acordo com Eliézer Cardoso de Oliveira, esta era uma estratégia para se contrapor aos vilaboenses, e se apresentar como alternativa para assumir o poder por outra via.

João Gomes Machado Corumbá

Segundo o historiador membro da Academia Brasileira de Letras José Murilo de Carvalho em seu livro “A construção da ordem e Teatro das sombras”, a Independência só pôde se consolidar por conta dos brasileiros que se formaram na universidade de Coimbra, em Portugal. Da mesma forma que a Universidade de São Paulo (Usp) formou a elite intelectual da segunda metade do século XX, Coimbra formou a elite intelectual da primeira parte do século XIX. 

Lá, pensadores se conheceram e conceberam juntos o projeto do novo país, que tinha tudo para se esfacelar em países menores, mas que foi mantido por propostas da elite nativa intelectual, afirma Eliézer Cardoso de Oliveira. A experiência acadêmica em Coimbra propiciou a formulação dos ideais nacionais e também deu aos brasileiros a capacitação para manter a estrutura administrativa e unidade territorial herdadas de Portugal.

Eliézer Cardoso de Oliveira destaca um exemplo goiano: João Gomes Machado “Corumbá”, matemático e filósofo que estudou em Coimbra de 1822 a 1827. Lá, sofreu discriminação por ser mestiço e brasileiro em um tempo de conflito entre os dois estados. Ao deixar coimbra, adota o nome indígena “Corumbá” como sinal do orgulho nativista. 

Veio trabalhar em Goiás como professor de matemática e secretário de rendas – um cargo extinto que atuava como um conselheiro fiscal da província para auxiliar a tomada de decisões do governo. “Esta era uma oportunidade para participar do começo do primeiro império neste momento de vazio de poder, quando os goianos assumiram novamente as rédeas de sua própria administração”, diz Eliézer Cardoso de Oliveira. 

Em 1831, com a abdicação de Dom Pedro I, houve insurreição da elite contra os portugueses que ficaram no país como governantes. Miguel Lino de Morais era o governante da província – o último português a deixar o comando de uma capitania no Brasil. Corumbá participou do movimento nativista que o depôs, mas foi punido pelo governo regencial e foi afastado da administração pública. 

Quando morreu, aos 45 anos de idade, Corumbá havia acumulado uma fortuna considerável e deixou um testamento curioso: “Declaro que não tenho pae nem mãe nem filhos, sim dois irmãos dos quaes a fêmea reconheço por tal e o macho desconfio ser menino trocado. Portanto, tendo eu feito o benefício possível e gratuito a que lei alguma me obriga, estando quites para com o estado, instituo a Nação brazileira por minha universal herdeira. O cabedal será entregue ao ministro da instrucção pública e o capital em renda será applicado para a propagação da geometria na província de Goyaz. O meu funeral será com medíocre aparato.”

João Gomes Machado Corumbá deixou sua herança para o ensino da matemática em Goiás. Eliézer Cardoso de Oliveira, explica que, por complicações burocráticas, o dinheiro só pôde ser liberado muitos anos depois, e foi usado na construção do colégio Lyceu de Goyaz, instituição importante da educação em Vila Boa.