O que matou mãe e filho de uma mesma família? Foi mesmo o doce? Quem é o culpado? A famosa doceria, um funcionário ou será que foi uma alergia? A população em geral, e especialmente a goiana, acompanhou o caso como se fosse uma novela.

Sejam histórias felizes ou trágicas, inusitadas ou criminosas, parece haver, por vezes, um sentimento coletivo de acompanhar a vida alheia como se fosse uma espécie de obra ficcional. Criam-se protagonistas, antagonistas, coadjuvantes e figurantes. Heróis, vilões e anti-heróis, os “heróis sem nenhum caráter”, como escreveu Mário de Andrade em Macunaíma.

Da noite para o dia, um crime, acidente ou qualquer situação inusitada pode tornar um anônimo uma espécie de subcelebridade. A imprensa, as redes sociais e a curiosidade humana contribuem para isso. Atores são abordados nas ruas e confundidos com seus personagens, porque, muitas vezes, a mistura entre ficção e realidade não fica só na literatura. A sociedade não pode se esquecer, porém, que essas pessoas, criminosas ou não, possuem histórias, nomes, sobrenomes, endereços e famílias. 

A exposição e o “cancelamento” não atinge somente uma pessoa. O processo acaba por abalar toda a estrutura humana ao redor do alvo em questão – sejam pais, filhos, irmãos, amigos e quem mais for próximo. Nos dias atuais, o “tribunal da internet” investiga, julga e condena, tudo isso em minutos.

A situação lembra uma passagem de Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll. Célebre por inverter a lógica e afirmar o absurdo, a personagem da Rainha ordena:

— Primeiro a sentença, depois o julgamento!

No Brasil, a situação também se estende a outros “tribunais”. Para entender um pouco desse fenômeno, que tem transtornado e até destruído a vida de pessoas e famílias, o Jornal Opção relembra uma série de anônimos goianos que foram alvo dessa espetacularização.

Alguns personagens ficaram marcantes para a população goiana como criminosos. Não passam batido nomes de vilões como Leonardo Pareja; José Vicente Matias, o Corumbá; Thiago Henrique; Lázaro Barbosa; João de Deus; e, talvez agora, Amanda Partata. Os rostos também estão presentes na memória de muitos.

Há, em menor quantidade, os que trazem lembranças positivas, como foi o caso de Miron Vieira de Souza, o primeiro goiano milionário na Loteria Esportiva – atualmente conhecida como Loteca. Ele, um senhor de origem humilde, morava na cidade de Ivolândia e teve a vida transformada ao acertar sozinho os 13 pontos e levar uma fortuna para casa. 

Outros casos tomaram proporção nacional ou até mesmo mundial por causa da tragédia envolvida, como foi o da menina Leide das Neves, vítima do maior acidente radiológico do mundo, em 1987, em Goiânia (relembre o caso no fim da matéria).

Lei de Talião e justiça com as próprias mãos 

Na falta de justiça, seja social, jurídica ou no sentido mais puro do termo filosófico, uma coisa é certa: a população se sente desamparada e busca fazer justiça com as próprias mãos, no “olho por olho” e no “dente por dente”. Na Lei de Talião do Código de Hamurabi, o mal causado a alguém deveria ser proporcional ao castigo imposto. Na lei do Código Penal brasileiro, quem investiga é a polícia e quem julga é o juiz.

Na quarta-feira, 27, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) assinou o Decreto 11.856/2023, que institui a Política Nacional de Cibersegurança no País. A norma tem como alguns de seus objetivos promover a segurança virtual no Brasil e fortalecer a atuação diligente no ciberespaço, além de contribuir para o combate aos crimes cibernéticos e às demais ações maliciosas nesse ambiente.

Na última semana, duas pessoas tiraram suas vidas, vítimas do “tribunal da internet”. A primeira delas foi Jéssica Vitória, que teve a vida exposta pela página de fofocas Choquei. A mãe da jovem veio a público e pediu para que a exposição parasse, porque a filha sofria com depressão e não estava aguentando mais. Os administradores da página, além de ignorarem os pedidos, debocharam da dor da família. Ela tirou sua vida logo depois.

Além dela, o youtuber PC Siqueira também não resistiu ao “cancelamento virtual” e tirou sua vida na última semana. Como funciona? Alguém percebe uma ação que considera errada nas redes sociais; registra esta falha e posta para os seguidores com críticas ao futuro “cancelado”; autoridades, seguidores e influenciadores digitais começam a corroborar a crítica e a amplificar esse alcance e, em questão de pouco tempo, milhares de pessoas são alcançadas com as mensagens. Pronto. O estrago está feito.

PC Siqueira foi uma das primeiras referências entre os influenciadores digitais no Brasil | Foto: Reprodução

Muitas vezes as ameaças saem do ambiente virtual e chegam até a casa da pessoa, alcançando também seus familiares. Com o avanço da tecnologia, é preciso discutir os limites das ações digitais. Novos crimes vão surgir, novas discussões e novos desafios. A legislação deve acompanhar as mudanças. As mortes de Jéssica e PC devem reacender o debate acerca da responsabilização das redes sociais.

O projeto está parado na Câmara dos Deputados, com resistência dos oposicionistas e um forte lobby das grandes plataformas digitais, em especial as que controlam as redes sociais, como X (antigo Twitter, hoje propriedade do bilionário Elon Musk) e o Facebook/Instagram/WhatsApp (da Meta). Esses falam em cerceamento da liberdade de informação.

Por outro lado, os governistas, assim como muitos especialistas e integrantes do Judiciário, dizem que passou da hora de o Brasil seguir países europeus e pôr um freio nas redes sociais, devido justamente a casos como o de Jéssica e a disseminação de mentiras em todos os setores da sociedade.

O texto original do PL das Fake News foi aprovado em 2020 no Senado. Em abril de 2023, a Câmara aprovou o regime de urgência. Apesar disso, o projeto está parado desde maio. Agora, com o caso Jéssica, juntando-se à invasão da conta da primeira-dama Janja da Silva no X/Twitter, os governistas falam em prioridade.

Como separar o real do virtual

No livro O Que é o Virtual?, o pensador Pierre Lévy desmistifica a aparente simplicidade da oposição entre real e virtual, caracterizando-a como “fácil e enganosa”. Ele sustenta que o virtual, na verdade, se contrapõe ao atual, já que tem uma propensão para se atualizar, embora não alcance uma concretização efetiva. O autor continua seu raciocínio, apoiando-se no que diz outro pensador, Gilles Deleuze, para argumentar que o virtual também se diferencia do possível, pois este último já está estabelecido, apenas latente e pronto para se transformar em realidade.

“Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam “não presentes”, se desterritorializam. Uma espécie de desengate os separa do espaço físico ou geográfico ordinários e da temporalidade do relógio e do calendário. É verdade que não são totalmente independentes do espaço-tempo de referência, uma vez que devem sempre se inserir em suportes físicos e se atualizar aqui ou alhures, agora ou mais tarde”

Para ele, a ampliação da comunicação e da velocidade compartilham a “tensão em sair de uma presença”. O custo social deste processo seria, segundo ele, a geração de “detritos humanos”. O autor disse isso em 1996. Quase 30 anos depois, a população tem sentido a deterioração humana com o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação.

Realidade virtual seria, então, um “ambiente digital gerado por um computador que pode ser experimentado de forma interativa como se esse ambiente fosse real”, segundo o escritor Jason Jerald. Considerando o “real” como sendo físico e tridimensional, como a nossa realidade. É, antes de tudo, uma mídia, um meio de comunicação.

Uma das grandes vantagens trazidas pela virtualização é a capacidade de sintetizar a inteligência coletiva: coletar conhecimentos, relatos, informações compartilhadas entre todos, em tempo real e distinção geográfica — possibilitando inclusive a redução da distância transacional entre as pessoas

Na economia, o mercado financeiro, entre outros, abraçou a virtualização — a moeda passou a ser virtual, e suas relações também. Em relação ao trabalho, dois caminhos se abrem aos investimentos para aumentar a sua eficácia: a reificação da força de trabalho pela automatização e a virtualização das competências por dispositivos que aumentem essa inteligência coletiva.

Essas ideias podem ser vistas em Raoul Vaneigem e Guy Debord, em A Sociedade do Espetáculo, ou com Jean Baudrillard em A Sociedade do Consumo.

Antes das redes sociais, repercussão do césio 137 revelava danos

O prédio que havia abrigado o Instituto Radiológico de Goiânia estava abandonado, sem portas, janelas e tomado pelo mato alto. Dois rapazes o invadiram, buscando itens para vender como sucata. Ao carregarem um equipamento médico desativado de aproximadamente 100 quilos, sem saber, levaram consigo uma cápsula contendo césio 137, um isótopo altamente radioativo, que estava ali de forma irresponsável. Esse episódio desencadeou uma tragédia marcante nos anos 80 em Goiás. 

Devair Ferreira, dono do estabelecimento que recebeu a cápsula, abriu o aparelho na intenção de aproveitar partes de chumbo em seu revestimento. Gabriela Ferreira, esposa de Devair, foi a primeira vítima, falecendo na manhã de 23 de outubro, seguida pela pequena Leide das Neves. Quem morava em Goiânia na época deve se lembrar da cena triste do enterro de Leide: com o corpinho dentro de um enorme caixão de chumbo, foi sepultada enquanto pessoas presentes atiravam pedras contra ele.

No enterro de duas das vítimas fatais do acidente a população fez protesto temendo que corpos contaminassem o cemitério. | Foto: Divulgação

Goiânia emergiu dali como o epicentro das atenções, despertando o interesse global devido a um acidente cuja escala de contaminação só não superou o desastre ocorrido na usina nuclear de Chernobyl, em 26 de abril de 1986, na antiga União Soviética. O fluxo repentino de informações trouxe olhares carregados de discriminação, medo e falta de compreensão para a capital e seus moradores. As vítimas, por sua vez, enfrentaram preconceito muito maior. E continua assim.

Em entrevista exclusiva ao Jornal Opção, o tio da menina, irmão de Devair, Odesson Alves Ferreira, de 69 anos, conta um pouco sobre essa superexposição da família. Na época do acidente, ele tinha 32 anos.

A família dele foi gravemente afetada pelo acidente, abrangendo desde Leide, sua sobrinha, até seus pais. Todos os membros da família, totalizando mais de 40 pessoas, foram impactados pelo acidente envolvendo o césio 137. “Eu continuo sendo vítima. As primeiras vítimas fatais na residência incluíram Maria Gabriela, esposa de meu irmão, e Leide, filha de outro irmão [Ivo Ferreira]. Em seguida, Edmilson e Israel, que eram funcionários do Devair, também morreram. Infelizmente, nossa família e amigos foram profundamente atingidos, resultando em perdas de vidas significativas”, explicou Odesson.
Oficialmente, o governo de Goiás reconhece quatro mortes causadas pela radiação: Maria Gabriela Ferreira, que morreu aos 37 anos; Leide das Neves, que tinha 6 anos; Israel Baptista dos Santos, 22; e Edmilson Alves de Souza, 18, ambos funcionários do ferro-velho. Os quatro foram enterrados no Cemitério Parque, em caixões de fibra de vidro revestidos com chumbo para prevenir que a radiação não contaminasse o solo e os lençóis freáticos.

Além delas, 12 pessoas dos grupos I e II que foram contaminadas morreram nas últimas três décadas mas, segundo o governo, as mortes não têm relação direta com o césio. Levantamentos de sindicatos, associações e do Ministério Público de Goiás indicam pelo menos 66 óbitos e cerca de 1,4 mil vítimas contaminadas.

Odesson atualmente vive na zona rural próximo a Cocalzinho de Goiás. | Foto: Arquivo

Ele conta que, na época do ocorrido, a divulgação feita pela televisão não era fiel aos fatos. “Eu estive na Alemanha há pouco tempo e lá a repercussão ainda é muito grande. Às vezes a televisão floreia muito, né? Floreou muito o acidente na época e até hoje as notícias que saem são notícias ou de coisas muito graves em relação às vítimas, ou então muito amenas”.

Segundo Odesson, fora do Brasil o acidente radioativo é visto com muito mais seriedade e cautela, com políticas públicas do governo voltadas para educação e prevenção. “Vamos ter de estudar isso por muitos e muitos anos aqui. É muito triste, infelizmente, a gente espera que pelo menos seja repassado da forma correta para que não venha a acontecer nunca mais”.

Na época ele trabalhava como motorista de ônibus e a esposa estava grávida de sete meses. O ano era 1987 e o mês era setembro. “Por acaso, já tinha quase dois meses que eu não ia à casa de meu irmão, o Devair. Naquele dia 22 eu resolvi fazer uma visita a ele porque tinha de pagar uma dívida que tinha com ele”, conta Odesson. Ele saiu do trabalho e chegou na casa do irmão. Notou um objeto estranho atrás da porta, que segundo ele parecia uma marmita. Era um objeto muito pesado, com cerca de 22 kg. Ele falou “mano, eu comprei esse material aqui, não sei de onde é, comprei de um rapaz, e como eu não conhecia, eu peguei o número da identidade dele. A única coisa de informação que eu tenho é essa. Mas à noite ele é muito bonito, tem uma luminosidade magnífica”.

Odesson lembra que o irmão guardou o objeto para fazer uma pedra de anel e presentear a esposa, Maria Gabriela. Devair, então, pegou o material e enfiou a chave de fenda para extrair fragmentos dele. Em pouco tempo tudo virou pó. Com a sujeira, limpou a mão e percebeu que visto de dia já não era nada interessante. Não brilhava, não tinha cheiro, não tinha nada que chamasse atenção. Falei pra ele jogar fora. Odesson ficou lá mais um pouco e tomou café com o casal. Maria Gabriela disse que o pássaro preto que ela tinha numa gaiola havia morrido depois que aquele material havia chegado na casa.

“Fui pra casa e trabalhei até no dia 30 sem sentir absolutamente nada. Minha saúde estava perfeita e eu não tinha nada.

No dia do ocorrido ele sentiu pouca coisa, como uma reação de náuseas e vômitos. Oito dias depois, quando levantou para trabalhar percebeu que todos os 10 dedos estavam dormidos e coçavam muito. “A palma da mão esquerda estava inchada com um ponto bem vermelho, doendo e coçando muito”. Em seguida, ele saiu para o trabalho e ao chegar falou com o diretor da empresa explicando que não poderia trabalhar naquele dia. “Eu estava sentindo, mas eu ainda não sabia nada do acidente. Minha esposa não me contou o que havia visto no Jornal Nacional e ela também não sabia da minha visita ao meu irmão”, relembra.

Cada organismo reage de uma forma diferente em contato com material químico ou radioativo. Odesson conta que reagiu muito bem à substância e foi a última pessoa a ser contaminada. A partir de 1º de outubro, quando começaram a fazer a descontaminação do material radioativo, ele ficou em quarentena. “O maior problema que a gente sentiu foi o desconhecimento por parte da ciência, a gente percebia que os médicos estavam perdidos, não sabiam o que estava acontecendo e como enfrentar o problema. Porque eles aprenderam uma coisa na faculdade, porém na prática era bem diferente daquilo que eles imaginavam”. Como exemplo, ele lembra as vezes um técnico media a radiação do corpo dele com um tipo de aparelho e a uma distância determinada, depois vinha outro e fazia completamente o contrário.

Odesson teve parte de dois dedos amputados e realizou uma operação de enxerto na mão. | Foto: Arquivo pessoal

Odesson conta que usava luvas para trabalhar como motorista da Uber para evitar discriminação. “Uma vez uma senhora me reconheceu e perguntou se eu não podia contaminá-la. Vi que a pergunta foi mais por desconhecimento do que por medo”. Após a tragédia, ele conta que tentou matricular os filhos em uma escola particular de Goiânia, mas que, quando a diretora descobriu que eram vítimas do césio, então as portas foram fechadas.