Falta de licenças definitivas, projetos irregulares e insegurança financeira evidenciam a realidade de empreendimentos que prometem sonhos. Muitos, porém, sem condições de concretização

Vista aérea da Marginal Botafogo: prédios dominam o cenário urbano. Crescimento desordenado da cidade é um desafio presente
Vista aérea da Marginal Botafogo: prédios dominam o cenário urbano. Crescimento desordenado da cidade é um desafio presente | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção

Alexandre Parrode

A crise econômica tem mostrado para a sociedade brasileira que algumas reformas são inevitáveis e precisam ser aplicadas com urgência. Seja na mudança das regras da Previdência, com uma gestão sustentável e garantidora real dos contribuintes, ou no Pacto Federativo, democratizando os recursos e dando mais autonomia a Estados e municípios. Períodos de prosperidade, como o que vivenciamos até meados de 2014, criam um questionável sentimento de bem-estar social, no qual medidas duras (mas necessárias) saem da pauta dos governantes — e da própria sociedade. O País cresce, investimentos cres­cem, a população ascende e por que pensar em desenvolvimento sustentável?

Um grande exemplo da falta de controle e crescimento sem o menor planejamento/regulamentação é o mercado imobiliário. Durante anos de pujança econômica, empresários aproveitaram das facilidades de financiamento por meio de programas governamentais e despejaram milhares de unidades habitacionais e comerciais em várias cidades brasileiras sem nenhum estudo prévio. Leis municipais e planos diretores produzidos quase que “encomendados” pelo setor permitiram a subida indiscriminada de espigões. Em Goiânia, setores como o Marista, Bueno e Jardim Goiás traduzem bem tal situação.

O mercado imobiliário brasileiro viveu um boom de dinamismo na década passada e no começo dos anos 2010 — são duas fases diferentes, mas ambas marcadas por curvas positivas; entre 2003 e 2008, acompanhando o ciclo econômico do País em alta, viu não só a oferta crescer vertiginosamente como também o próprio valor dos imóveis. Con­tudo, a crise econômica desencadeada a partir de 2008 nos Estados Unidos acabou afetando o mercado brasileiro — mesmo que tenha sido apenas “uma marolinha”, citando o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva (PT), que assim classificou as consequências da quebradeira norte-americana.

A crise nos EUA teve início com o pedido de falência do tradicional banco de investimentos Lehman Brothers, que acabou afetando outras instituições financeiras que ofereciam, em sua maioria, crédito imobiliário. O principal catalisador foi o chamado “subprime”, termo para designar hipotecas de alto risco, que são concedidas a clientes de baixa e média renda para a compra de um imóvel norte-americano. É como se fosse um novo empréstimo para cobrir um empréstimo já concedido.

Já no período pós-crise foi quando o mercado imobiliário teve a maior valorização, possivelmente, da história. De acordo com levantamento feito em 54 países pelo Banco de Compensações Interna­cio­nais (Bank for International Settlements, BIS), entre 2008 e 2013, a valorização imobiliária no Brasil foi de 120%, sendo que, em 2010, a taxa chegou a 23,5%; enquanto em 2011, esse percentual foi ainda maior: 27,8%. Para se ter ideia, em Goiânia, foram vendidos 10.516 imóveis somente em 2010. No ano seguinte, o número chegou a 14.158 unidades comercializadas — recorde desde o início da contabilização, em 1996, pela Associação das Empresas do Mercado Imobiliário de Goiás (Ademi-GO). Outro indicador que chama atenção é a quantidade de imóveis a serem comercializados na capital goiana no período. Se em janeiro de 2003 existiam apenas 3.101 unidades disponíveis, em janeiro de 2011 eram 12.945.

Em um período de tamanho crescimento e aparente segurança de investimento, aconteceu a rápida subida dos preços. Com isso, inevitavelmente, as pessoas passaram a considerar a compra de imóveis um bom investimento, tanto para revenda quanto para aluguel. Pesquisas apresentadas em um fórum especializado na discussão da bolha imobiliária brasileira (www.bolhaimobiliariabrasil.com) mostram que boa parte dos novos empreendimentos não são reservados para moradia, mas para investimento: atualmente, entre 40% e 60% destes imóveis são para especulação. A verdade é que as construtoras preferem vender a investidores, pois o pagamento é, em geral, à vista — ao contrário dos que compram imóveis residenciais (ou mesmo para o próprio negócio), que dependem de financiamento bancário.

Na corrida predatória para se construir e vender mais, a legislação falha das cidades acaba culminando em verdadeiros descalabros jurídicos e sociais, como foi muito bem constatado pela Comissão Especial de Inquérito das Pastas Vazias, a CEI das Pastinhas, de Goiânia. Os vereadores apuraram, durante seis meses, denúncias de processos aceitos e protocolados pela Prefeitura de Goiânia sem a devida apresentação dos documentos exigidos, ou seja, apenas com pastas vazias, para garantir o direito de construir seguindo regras mais brandas, à época da mudança do Plano Dire­tor, em 2007. Há casos escandalosos de processos iniciados somente com documentos pessoais do empresário, endereço e taxa inicial.

A CEI identificou vários tipos de irregularidades, entre elas a prática indevida na emissão de Certidão de Início de Obra, da qual os vários servidores municipais terão que responder. As certidões foram emitidas para áreas que não seguiram critérios técnicos estabelecidos por lei, a maioria delas lotes baldios, tomados por mato e entulhos, sem qualquer indício de construção. Segundo a apuração da Câmara, foram concedidos laudos falsos de início de obra a empreendimentos de diversas regi­ões de Goiânia, desrespeitando o prazo de dois anos a partir da emissão do alvará para iniciar a construção, conforme prevê o Código Municipal de Obras.

A raiz do problema

Maria Ester diz que construtoras lançam empreendimentos como “balão de ensaio”: se houver interesse, dão sequência no processo | Foto: Renan Accioly / Jornal Opção
Maria Ester diz que construtoras lançam empreendimentos como “balão de ensaio”: se houver interesse, dão sequência no processo | Foto: Renan Accioly / Jornal Opção

Para a vice-presidente do Con­selho de Arquitetura e Urbanismo de Goiás (CAU-GO), Maria Ester, o grande problema é justamente porque a legislação é construída para atender uma demanda de momento. “O mercado é ‘livre’, ou seja, os preços flutuam conforme a demanda e não há quase nada proibido. Quer dizer, aos empresários o que interessa é girar o capital e a grande dificuldade dos planos diretores é justamente essa, precisa-se atender aos interesses do mercado imobiliário”, argumenta.

Sem uma legislação eficaz, as construtoras abusam de um instrumento apontado como uma verdadeira “aberração financeira”: a venda na planta. Sem sequer precisar ter começado a obra — ou, pior, obter as licenças e alvarás definitivos —, o modelo permite que pessoas com menor poder aquisitivo e com maior comportamento de risco possam ter acesso aos imóveis. É justamente a estratégia mercadológica de várias delas: vendem sonhos, projetos de vida, como investimentos garantidos. Como é pouco regulamentado no Brasil, o instrumento se baseia quase que exclusivamente no contrato entre cliente e construtora, com o pagamento de um depósito (que, não raro, é de 20% do valor total do imóvel).

“Não está na lei que não se pode vender na planta. Não se sabe se é bom, é sempre um risco. Mas só é visto como um risco agora, que estamos em um período de instabilidade econômica. A prática de vender imóvel na planta só surgiu porque havia pujança e momento muito favorável. Na disputa de quem vende mais, faz mais e ganha mais, ignora-se a legislação, até porque a fiscalização é bem mais relaxada”, destaca Maria Ester.

Sem uma legislação que coíba tal prática das construtoras — ou pelo menos exija que a venda dos imóveis esteja diretamente condicionada à liberação de todas as licenças e alvarás definitivos —, casos como o do gigante Nexus Shopping & Busi­ness, localizado no Setor Marista da capital, serão cada vez mais comuns. No dia 11 de abril, o Ministério Público do Estado de Goiás (MPGO), por meio do promotor de Justiça Juliano de Barros Araújo, propôs ação civil pública ambiental para proibir, de imediato, o início da construção do empreendimento até o julgamento final de uma outra ação, que tramita na 2ª Vara da Fazenda Pública Municipal.

Segundo o texto apresentado pelo promotor, a ação visa impor às construtoras Consciente e JFG a realização de novo Estudo de Impacto de Vizinhança e respectivo Relatório de Impacto de Vizinhança (EIV e RIV), bem como a realização de prévio Estudo de Impacto de Trânsito e respectivo Relatório de Impacto de Trânsito (EIT e RIT), para o projeto de construção do Nexus. Busca também a imposição à Prefeitura a obrigação de promover uma “reanálise de todos os processos referentes às autorizações urbanísticas” do empreendimento.

Além disso, a ação pede que a Justiça exija a devida publicidade por meio de audiências públicas, bem com a definição das medidas mitigatórias e compensatórias dos impactos de vizinhança e de trânsito, de curto, médio e longo prazos, a serem custeadas pela Consciente Constru­tora e JFG Incorporações. Com isso, todas as autorizações prévias concedidas pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano (Semdus), atual Secretaria Muni­cipal de Planejamento e Habitação (Seplanh), pela Agência Municipal do Meio Ambiente (Amma) e Secretaria Municipal de Trânsito, Transportes e Mobilidade (SMT), deverão ser consideradas nulas.

“O problema está justamente nesse Plano Diretor permissivo, que permite que vários Nexus continuem sendo aprovados e construídos. É extremamente danoso que a legislação seja vista apenas do ponto de vista do momento econômico. A cidade fica refém das pressões do mercado. O argumento mais triste que nós, analistas técnicos, temos que ouvir é que, se não for assim, ‘o País quebra’”, lamentou a vice-presidente do CAU-GO.

Um caminho tortuoso

Darlene Costa, do Procon-GO, vê grande risco em imóveis na planta | Foto: Renan Accioly / Jornal Opção
Darlene Costa, do Procon-GO, vê grande risco em imóveis na planta | Foto: divulgação

A diretora-superintendente do Procon Goiás, delegada Darlene Costa Azevedo Araújo, explica que a orientação é no sentido de que o consumidor verifique bem as construtoras antes de efetuarem qualquer negócio, mas reconhece que não é essa a postura comum. “Vai ao estande de vendas, vê se o empreendimento tem visual, se o preço cabe no bolso, e é convencido pelos corretores. Inclusive, uma situação que quase nunca é informada aos interessados é sobre o financiamento, que depende de aprovação do banco”, relata.

Ela destaca ainda que as vantagens de se comprar na planta são justamente o valor menor e a possibilidade de se pagar em um prazo maior: “Só que é importante destacar que é um risco. O futuro da empresa ninguém sabe, está sujeito à oscilação do mercado, da própria saúde financeira… Há possibilidade do imóvel não ser entregue, da construção atrasar. Ou mesmo das licenças não saírem.”

Advogado Diego Martins entende que legislação beneficia consumidor | Foto: Divulgação
Advogado Diego Martins entende que legislação beneficia consumidor | Foto: Divulgação

É importante destacar, neste ponto, que mesmo que o consumidor procure a prefeitura para saber sobre os alvarás e licenças do empreendimento, pode ser que a situação do esteja regular — mesmo sem ter as definitivas. Isso porque, como explica o presidente da Comissão de Direito Imo­biliário e Urbanístico, Diego Martins Silva do Amaral, as construtoras precisam do Regis­tro de Incorporação (RI), que só é concedido caso uma série de documentos sejam devidamente registrada. Tal documentação, uma vez aprovada, gera licenças e alvarás prévios — para que o projeto, em si, possa ser analisado. Nesta fase, o empreendedor já pode começar a vender e publicizar o imóvel.

Mesmo assim, a autorização final para a construção só é liberada após a análise de toda a documentação apresentada e aprovada, somada aos projetos, estudos e especificações do empreendimento. A Licença Ambiental de Insta­lação — que autoriza a construção, em si —, não é, necessariamente emitida antes que se comece a venda (como aconteceu no caso do Nexus). “O poder público precisa, então, qualificar melhor os departamentos de aprovação de projeto para que nem o consumidor e nem as empresas seja penalizados”, argumenta o advogado.

Segundo ele, a legislação existente é “justa para ambos os lados”: “Se você olhar o contrato de venda de imóvel na planta, verá que as partes são ‘promitente vendedor’ e ‘promitente comprador’, quer dizer, existe uma promessa aí. Consumidor que compra na planta está comprando um risco, pois quando se firma um contrato de algo que é futuro, e não só de imóveis, não há certezas. Quando se encomenda um carro, por exemplo, é um contrato futuro. Por qualquer motivo, pode não chegar. As bases contratuais têm que ser as mesmas para os dois lados.”

A tese de Diego Martins é de que tanto o comprador quanto o incorporador têm direitos iguais. Da mesma forma que uma pessoa pode desistir de comprar um imóvel por qualquer motivo e ter parte do dinheiro investido devolvido (cerca de 80%, dizem os especialistas), uma empresa pode não concluir uma obra. “Não podemos ter uma visão consumerista. Mesmo porque o construtor não tem interesse em desistir de venda, pois perde com isso”, completa.

A arquiteta Maria Ester discorda de tal argumento. Segundo ela, o cidadão compra o imóvel como um investimento — não só financeiro, mas de vida. “É um bem construído na sociedade, nas cidades, desde o século 19. Ter um pedaço de terra na cidade é algo muito valoroso. O imóvel, além disso, garante um direito básico do cidadão, que é o de moradia. Quem compra na planta está construindo um projeto de vida, que é quem mais vai ter frustração caso a obra não prospere”, argumenta.

Não obstante, a vice-presidente do CAU-GO defende que a legislação deve proteger o direito individual de moradia. “Quer dizer, a legislação diz assim: ‘você sabia que era um risco’. Aí o cidadão, se a empresa quebra ou o empreendimento é embargado, deve ficar dez anos esperando para receber o que ele investiu? A legislação precisa amparar melhor. Sempre vai perder quem tem menos dinheiro”, e completa: “A lei ampara bem… Até o empresário contratar o superadvogado que vai mostrar que há uma crise financeira, põe legislação no lixo e deixa que o contrato fale mais alto. Qual é o limite do risco, então?”

Ensaio

O vereador Elias Vaz (PSB), que foi presidente da CEI das Pastinhas, destaca que não é raro ter casos de obras contestadas — que já estavam sendo comercializadas. Cita como exemplo um empreendimento no setor Goiânia 2, que estava sendo erguido em uma área de alagamento e teve sete (das nove) torres embargadas pela Justiça. “A licença prévia não cita que o empresário pode vender, mas também não proíbe. É preciso lembrar que não significa que ter alvará de construção culmina automaticamente em, por exemplo, alvará de funcionamento”, disse.

Outro ponto lembrado por ele é justamente a prática econômica do mercado goianiense: “Empresas trabalham como verdadeiras incorporadoras. Quer dizer, elas não constroem com seus próprios recursos, elas gerenciam o dinheiro dos compradores, o que é um problema. Pessoas precisam saber que a segurança jurídica é menor”. Maria Ester, neste sentido, completa que não dá para ter uma legislação urbanística que permita que imóveis sem a devida aprovação se transformem em “balões de ensaio” — como ocorre com frequência. “Empresários começam a divulgar em propagandas empreendimentos que nem sequer têm projeto. Se houver demanda, eles correm atrás”, lamenta.

A insegurança institucional e a falta de uma legislação menos permissiva, somadas ao momento de crise que vivemos hoje, tornam imprescindível a discussão de um modelo sustentável do setor imobiliário que coíba a especulação, privilegie a cidade e os cidadãos, garantindo os direitos básicos, sob pena de repetirmos os mesmos erros que nos prejudicam hoje. l