O plenário da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego) aprovou no dia 2 de junho um projeto que altera regras para a política florestal e de reservas em Goiás. Enquanto organizações da sociedade civil se mobilizaram para pressionar o governador Ronaldo Caiado (UB) a vetar (o prazo é de até 15 dias úteis), a Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad) se pôs a defendê-la. O Jornal Opção ouviu ambos os lados, além de cientistas e juristas da área ambiental para compreender o debate. 

O Projeto de Lei (PL) 350/2023 tem nove artigos que alteram quatro leis ambientais, modificando principalmente o entendimento sobre a classificação de vegetação nativa do Cerrado a ser protegida, as normas gerais para o Licenciamento Ambiental, a regularização de multas e passivos ambientais, e o cadastro de áreas rurais. O texto tem autoria conjunta do presidente da Alego, Bruno Peixoto (MDB), e do líder do governo, Wilde Cambão (PSD). 

O Executivo estadual não propôs a lei e não articulou politicamente para sua aprovação, mas servidores da pasta afirmam ter auxiliado em sua elaboração. Andréa Vulcanis, secretária de Estado no comando da Semad, investiu para refutar associações da sociedade civil e ambientalistas. A pasta publicou em canais oficiais vídeos e textos em defesa do PL. 

Sua tramitação na Assembleia foi considerada “relâmpago” por setores da sociedade civil, que não puderam participar de audiências públicas sobre o tema, e encontraram o PL aprovado em menos de um mês. De forma conjunta, 21 entidades de proteção ambiental e centenas de pessoas físicas (cientistas, membros do Ministério Público, empresários e outros) assinaram uma carta aberta intitulada “10 ameaças do Projeto de Lei nº 350/23 que promovem grave retrocesso nas regras de proteção ambiental no Estado de Goiás”. 

Gerson de Souza Arrais Neto, presidente da Associação para a Recuperação e Conservação do Ambiente (Arca), afirma: “Estranhamos a postura oficial de usar canais do governo para desqualificar esforços da sociedade civil de debater o tema honestamente. Fizemos um extenso estudo do PL com equipe jurídica, que produziu um documento técnico. É claro que a carta apresentada é uma simplificação acessível, para envolver a sociedade no debate”. 

Anistia para crimes ambientais

O principal ponto de discordância é o artigo 4º do PL, que trata da suspensão automática de embargos, interdições ou multas por meio da assinatura de um Termo de Compromisso Ambiental (TCA). Em termos simplificados, se uma pessoa comete a infração ambiental de desmatar sem licença, ela pode assinar um TCA dentro de determinado prazo para se adequar às exigências. O PL 350 permite que pessoas com essa pendência há mais de 11 anos possam regularizar suas situações. 

Os signatários da carta aberta afirmam que o artigo anistia qualquer crime ambiental do gênero cometido anteriormente a 27 de dezembro de 2019, colocando esta data como referência na possibilidade de requerimento de licença ambiental corretiva. A Semad enviou ao Jornal Opção nota que caracteriza a alegação como “fake”.

Na nota da Semad se lê: “O PL 350/23 absolutamente não anistia crimes. Muito ao contrário, ele somente determina que as infrações ambientais decorrentes de desmatamento ilícito sejam submetidas a Declaração Ambiental do Imóvel (DAI), instrumento administrativo por meio do qual quem tem passivos ambientais decorrentes de desmatamento em áreas de preservação permanente, reservas legais e outras áreas protegidas tenham a obrigação IMEDIATA de recuperar essas áreas. Por meio da DAI o usuário firma um Termo de Compromisso Ambiental (TCA) em que se obriga formalmente a regularização, independentemente de responder pelas multas perante o governo do Estado e pelos crimes ambientais perante a justiça.”

Advogados especializados em Direito Ambiental e Urbanístico analisaram o artigo quarto do projeto. Nota técnica sobre PL assinada pelo escritório Martins, Tietzmann & Mascarenhas Advogados expõe: “As mudanças propostas pelo artigo 4º acabam por instituir um novo marco temporal para a regularização de áreas desmatadas no Estado de Goiás”. Segundo os advogados, na prática, a medida é uma norma estadual que contraria uma lei federal. “Outro ponto a ser considerado é que a regularização dessas áreas desmatadas ilegalmente poderá ser realizada a qualquer momento. O que significa que o responsável pelo desmatamento poderá regularizar as áreas desmatadas mediante compensação ambiental (em vegetação, intra ou extra propriedade, ou em dinheiro, para depósito em fundo específico).”

Área desmatada dentro do Território Kalunga | Foto: Semad/Divulgação

Cadastro do desmatamento

Outro ponto crucial diz respeito à possibilidade de o Estado criar seu próprio Cadastro Ambiental Rural (Car). O instrumento foi desenvolvido pelo Ministério do Meio Ambiente para comunicar informações e dados sobre o desmatamento. Quando foi implantado pelo Código Florestal de 2012, o Cadastro abriu a possibilidade de que o desmatamento ilícito cometido antes de 2008 fosse regularizado por uma validação conduzida pela Semad (de forma semelhante a que pode ocorrer agora, para desmatamentos pré-2019).

Entretanto, Goiás é um dos estados com menos validações pelo Car. Em área, o Pará é o estado com maior pendência, 35,1 milhões de hectares, seguido pelo Amazonas (9,9mi ha), Mato Grosso (6,7mi ha), Goiás (5,8mi ha) e Maranhão (5,0mi ha). Todos os demais estados apresentam pendencias abaixo de 2mi ha. Goiás é o segundo estado com maior número de processos pendentes: são 24.573.

Os dados foram compartilhados com o Jornal Opção por funcionários do Ibama (Supes-GO), que preferiram não se identificar. Eles receiam que a anistia destes processos pode ser uma forma de a Semad se livrar das pendências sem precisar regularizá-las. Afirmam ainda que a Lei Florestal e o decreto que regulamenta o Car (Decreto nº 7.830/2012) já permitem que Estados desenvolvam módulos complementares, e não que criem sistemas próprios de CAR. Os servidores dizem que é fundamental que o Car seja único e nacional, para que os dados sejam uniformes e transparentes.

A Semad comunicou por nota: “A proposta estabelecida no PL quanto ao Sistema do Cadastro Ambiental Rural permite que o Estado de Goiás desenvolva a sua própria plataforma CAR, condicionada e interligada à plataforma do Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), sob gestão do governo federal. Isso porque atualmente o SICAR é um sistema de informações totalmente defasado e que se encontra totalmente obsoleto. (…) Por meio desse dispositivo permite-se avançar na aprovação das reservas legais e áreas de preservação permanente, no Programa de Regularização Ambiental e no cumprimento integral do Código Florestal”.

Campos de Murundus 

O artigo 6º do PL 350 modifica o Código Florestal de Goiás, ao propor que as áreas de preservação permanente chamadas “campos de murundus” (ou covais) possam ser convertidas em outras classificações. O problema está no fato de que as regras para proteção dos campos de murundus são mais rígidas do que as normas de outras áreas de preservação permanentes (APPs). 

O receio de associações ambientalistas é de que os campos de murundus podem ser desmatados ao passar por processos de reordenamento territorial das reservas legais com a conversão de novas áreas. A Semad destaca: “O governo de Goiás por meio da Semad mapeou, por meio de georreferenciamento, todos os campos de murundus permitindo a sua integral proteção. O que o PL 350 permite é que os campos de murundus possam ser sobrepostos com as reservas legais duplicando, portanto, a proteção dessas áreas que ganham duplo regime de proteção – APP e RL.”

Campos de Murundus na Bahia | Foto Roy Funch/Divulgação

O biólogo Carlos Ribeiro, mestre em ecologia e evolução, afirma que os Campos de Murundus são de fundamental importância no Cerrado para a recarga dos lençóis freáticos. Segundo o pesquisador, sua proteção em lei é essencial. “Estão associados com características geográficas, como morros largos e baixos próximos à depressões alagadas. São áreas de reserva de biodiversidade, tanto da flora como da fauna.”

“São locais de nascentes”, diz Carlos Ribeiro. “A partir das primeiras chuvas, o solo do Cerrado fica saturado e gera escoamento em direção aos córregos e rios. A ação humana sobre esses locais é um atentado grave contra o meio ambiente, pois são áreas vulneráveis à intervenções. Por suas características, é comum que os murundus atraiam gado, mas sendo sensíveis a drenagem e pastoreio, logo ‘morrem’. Em minha opinião, a lei que protege esses nascedouros não pode ser negociada.”

Conflito entre esferas

Outro ponto de debate é a possibilidade de que empreendedores optem pelo licenciamento municipal ou estadual. Associações ambientalistas afirmam: “Os problemas ambientais são sentidos localmente, o que resulta em uma invasão clara do Estado sobre os municípios”. Já a Semad contrapõe: “A fragilidade com que muitos municípios estabelecem o licenciamento ambiental em Goiás tem gerado licenciamento municipais que não atendem, minimamente, as exigências legais, de modo que muitos licenciamentos municipais têm sido questionados, impedindo ou dificultando o acesso a financiamentos e recusa de crédito. A própria Semad já expediu dezenas de notificações a municípios questionando licenciamento expedidos em dois dias ou absolutamente contra a lei”.

Segundo juristas, uma saída diplomática seria um trabalho de “convencimento” pelo governo estadual junto aos municípios, para que os mesmos possam adotar um regime de licenciamento que se alinhe à normativa estadual, em cooperação com a Semad. “Não devemos ensejar que haja, por exemplo, um esvaziamento dessa ou daquela instância licenciadora, em virtude de custos ou de exigências ambientais. Até mesmo pelo fato de que, entende-se, as exigências no processo de licenciamento são de caráter técnico, e portanto inegociáveis”, afirma José Antônio Tietzmann e Silva, advogado, professor na Universidade Federal de Goiás (UFG) e vice-presidente do Centro Internacional de Direito Ambiental Comparado (CIDCE).