Aulas durante isolamento social nas redes pública e privada de Educação contam histórias muito distintas 

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil

Desde o dia 16 de março, mais de 1,1 milhão de estudantes e 58 mil professores do ensino fundamental e médio atuam dentro de suas casas. Em nove meses de isolamento social em Goiás devido à pandemia de Covid-19, as redes pública e privada de ensino se adaptaram como puderam para atender as necessidades de alunos com realidades sociais heterogêneas. As dificuldades impostas pela pandemia escancaram as diferenças sociais: enquanto a rede privada tem apostado nas ferramentas digitais, os alunos da rede pública têm recebido em casa ou buscado nas próprias instituições o material impresso de atividades semanais.

De acordo com a pesquisa TIC Educação, do Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR (instância responsável por colocar em prática as políticas definidas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil), 45% dos brasileiros matriculados em escolas públicas não têm conexão de internet em casa. Esse número cai para apenas 9% na rede privada de ensino. Na rede municipal de Goiânia, a desigualdade é ainda mais gritante: alunos passaram mais de um mês sem qualquer tipo de atividade pedagógica. 

Uma professora da rede municipal de ensino goianiense, que preferiu não ser identificada, relatou ao Jornal Opção como foi sua experiência de lecionar durante a pandemia. O decreto que impôs o fechamento das escolas data de 15 de março. A professora conta que até o dia 22 de abril, a prefeitura não havia se manifestado ou se comunicado de qualquer forma com os colégios. “Por conta própria, os professores criaram grupos de WhatsApp para enviar atividades aos alunos, mas havia uma grande dificuldade porque muitos não têm acesso à internet ou têm um pacote de dados muito limitado.”

De 22 de abril até setembro, a Secretaria Municipal de Educação e Esporte (SME) de Goiânia criou uma plataforma chamada Conexão Escola. A professora conta que, até o dia 20 de setembro, o site era alimentado pela própria prefeitura apenas com conteúdos complementares, e não contava com conteúdos essenciais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). O município solicitou que as aulas via WhatsApp fossem suspensas. 

Outra intercorrência aconteceu no meio tempo. Por conta da defasagem de profissionais necessários e atuantes na educação municipal, muitos professores podem dobrar sua carga horária em outras escolas, onde não são funcionários efetivos. Com o decreto n°896, publicado pela Prefeitura, mais de três mil professores tiveram suas “dobras” cortadas – isso é, trabalharam 60 horas semanais mas receberam apenas 30.

A professora conta que as aulas foram regularizadas em setembro, quando a prefeitura apresentou o Ambiente Virtual de Aprendizagem Híbrido (AVAH). Esta plataforma online é alimentada pela própria escola e a evolução do aluno, bem como sua frequência, pode ser acompanhada pelos professores das respectivas turmas. A comunicação da SME Goiânia informou que os professores da Rede passaram por curso de formação composto por disciplinas de aprofundamento em objetos de aprendizagem, construção de videoaulas e treinamento para operar a plataforma AVAH. 

“A plataforma AVAH atende nossa demanda. Mas ainda existem obstáculos: muitos alunos voltaram às suas cidades no interior; outros não têm acesso à internet e não buscam o material pedagógico na escola com a frequência correta. Eu diria que metade dos alunos estão cumprindo suas atividades a contento; o restante, não conseguimos atingir”, relata a professora da rede municipal. 

Há ainda o problema da adequação por parte dos professores às novas tecnologias. “Na escola onde trabalho”, relata a professora, “três professores saíram de licença psiquiátrica. A pressão é muito grande e agora trabalhamos ainda mais, pois, além de nossas tarefas habituais, temos de gravar as aulas, editar vídeos, encontrar os materiais didáticos na internet.”

Sobre o retorno às aulas presenciais, a SME afirma: “Os protocolos vêm sendo construídos desde o início da pandemia e adaptados conforme a evolução do quadro epidemiológico. A Educação aguarda orientações específicas para ambientes escolares por parte das autoridades sanitárias.”

Titular da Seduc, Fátima Gavioli | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção

Glauco Roberto Gonçalves é professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador na área de espaços escolares, educação democrática e ensino de Geografia. Segundo o educador, o fechamento das escolas públicas tem impactos para além da educação dos jovens. “A escola pública, com todos os seus problemas, é um ambiente seguro de acolhimento que cumpre uma função social”, diz o professor geógrafo. “Na rede pública de ensino, são atendidos mais de 80% dos estudantes do Brasil. Em um país onde 10,5 milhões estão em situação de fragilidade alimentar, a pandemia nos ajuda a ver a importância dessa instituição, onde se educa, se come e se forma cidadania”.

Com o projeto de pesquisa “Escola na Pandemia”, Glauco Roberto Gonçalves recebeu relatos de profissionais da educação e constatou a ausência de recursos. O cientista também critica a ausência de planejamento nas três esferas de governo: “Quantos professores estão nos grupos de risco? Desconhecemos essa e outras informações básicas.” O pesquisador ressalta que a sociedade passará os próximos anos avaliando os danos causados pela desatenção na educação durante a pandemia. 

Fátima Gavioli, secretária de Educação do estado de Goiás, reconhece que 2020 foi um ano de desafios para a educação. “Ninguém estava preparado, foi um ano atípico para todos”, diz a secretária. “Mas o que ficou de experiência foi a força de vontade de todos nós, no sentido de não deixar as crianças desassistidas durante o isolamento”.

“Não é, de forma alguma, um ano perdido para a educação: foi o período em que mais se reformou escolas em 20 anos; foi o ano em que mais discutimos a Educação; os índices de evasão e reprovação continuam dentro do esperado. Com a pandemia, a desigualdade social foi escancarada, mas sabemos onde estão os alunos mais isolados e nos esforçamos para alcançá-los”, relata Fátima Gavioli.

Thiago Pinheiro, coordenador pedagógico do ensino médio no Colégio Agostiniano, relata que, na escola onde trabalha, os estudantes nunca ficaram sem aulas | Foto: Reprodução / Acervo Pessoal

Thiago Pinheiro, coordenador pedagógico do ensino médio no Colégio Agostiniano, relata que, na escola onde trabalha, os estudantes nunca ficaram sem aulas. O Colégio Agostiniano adotou uma plataforma online para realizar aulas diariamente de forma interativa, sem prejuízo ao calendário escolar. “Os alunos assistem às aulas de suas casas no horário específico. Fazemos a mensuração da presença, da participação, da compartilhamento de arquivos, entre outros”.

No final de novembro, quando foi decretada a autorização de ocupação de 30% nas escolas, o colégio optou por adotar protocolos de segurança e permitir o retorno rotativo dos alunos. “Alguns estudantes comparecem presencialmente às aulas em determinados dias. As aulas dos professores são transmitidas para a plataforma e quem está em casa acompanha a mesma exposição no momento em que acontece; como se fosse um programa de auditório ao vivo”, explica Thiago Pinheiro.

Entretanto, simplesmente filmar e transmitir as aulas não funciona, segundo o coordenador pedagógico. O colégio procurou outras ferramentas didáticas. “Antes da pandemia, tínhamos um ou dois professores que faziam uso da mesa digitalizadora; hoje, todos os professores a utilizam. Quando os professores voltarem para a realidade presencial, tenho certeza de que irão aproveitar esses recursos tecnológicos enriquecedores muito mais do que antes da pandemia”, diz Thiago Pinheiro.

O coordenador pedagógico afirma que, apesar de o aluno do ensino híbrido ter assimilado em média menos conteúdo programático do que o estudante no ensino tradicional, houve avanços em habilidades como autonomia, responsabilidades e capacidade de atenção. Thiago Pinheiro afirma sobre a principal perda na vida dos estudantes durante o período da quarentena:

“A escola é uma instituição social, onde o aluno convive com o diferente, e fortalece suas habilidades emocionais e sociais. O momento da adolescência é quando o jovem começa a testar seus valores. Imagine ficar um ano em casa convivendo apenas com seus pais. A impossibilidade de se relacionar com outras pessoas da sua idade trará um prejuízo emocional cujo tamanho nós ainda desconhecemos”.

Janice Pereira Lopes, da UFG | Foto: Arquivo pessoal

Janice Pereira Lopes é professora no Instituto de Matemática e Estatística da UFG e doutora especialista na área de Educação Matemática. A pesquisadora afirma que o ensino público em Goiás, seja na educação básica ou na superior, assim como em todo o país, se organizou de maneira emergencial para atender à situação de excepcionalidade e de pandemia em que nos encontramos. Assim sendo, face à toda instabilidade em relação ao que esperar da pandemia e do seu tempo de duração, os diferentes espaços públicos de ensino foram se adequando. 

“Os obstáculos que cercam a opção pelo ensino não presencial, em razão do necessário distanciamento social, como alternativa à presencialidade das habituais salas de aula são vários. O acesso à internet é somente um deles. No entanto, num país como o nosso em que o direito à educação (pública, gratuita, laica e de qualidade), previsto em Lei, não tem sido assegurado a todos nem na sua versão presencial, seria ingênuo imaginar que, em uma situação como a atual, teríamos todos os estudantes satisfatoriamente incluídos. Essa inclusão não se faz de forma emergencial, porque a exclusão educacional é estrutural, histórica e socialmente sedimentada em uma realidade de severa exclusão social”, diz Janice Pereira Lopes.

Segundo a educadora, é errôneo comparar a educação não presencial, em caráter de excepcionalidade, que temos vivido nas escolas e universidades com o ensino a distância: “O que temos são estratégias didáticas e metodológicas alternativas que se pretendem atenuantes dos efeitos nocivos desse ano letivo excepcional. Ensino a distância pressupõe planejamento, estruturação adequada, organização didática, metodológica, instrumental e comunicacional específicas. Educação a distância, por sua vez, é algo ainda mais complexo, pois, além das especificidades citadas, é regida por legislação e marcos legais próprios.”

“É claro que, guardadas as devidas proporções, o que temos assistido se aproxima do ensino a distância, seja pelo recorrente uso de tecnologias na mediação dos processos de ensino e aprendizagem, seja pelo fato de que professores e estudantes se encontram afastados espaço e temporalmente. Neste cenário, considerando a complexidade que permeia o ensino a distância, não dá para esperar que professores historicamente atrelados à educação presencial, magicamente, se transformem em experts em ensino a distância ou ases da educação mediada por tecnologias”.