Antes de ir ao texto propriamente dito, desta vez é necessário fazer um pertinente “disclaimer”, como se costuma chamar nestes tempos a advertência para as prováveis refutações que o artigo sofrerá: no caso, é preciso reforçar que as críticas ao atual governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) que aqui serão feitas em absolutamente nada mudam o fato de que, em relação ao tema abaixo, tudo certamente estaria em modo mais agravado se houvesse ocorrido uma reeleição do desgoverno anterior.

Indo agora direto ao ponto, em uma gestão com facilidade para emitir declarações importantes e sensíveis à comunidade internacional e a ela fazer alertas seríssimos sobre a questão ambiental, a pessoa que porventura ocupasse a titularidade do Ministério do Meio Ambiente deveria estar com muito mais protagonismo. Ainda mais sendo, como é, alguém com a estatura moral e política de Marina Silva.

A ex-senadora, que um dia também foi seringueira, tem a origem de sua vida pública ligada àquele que foi consagrado como o maior guardião da Floresta Amazônica entre os homens brancos: Chico Mendes, o sindicalista-ambientalista assassinado em 1988 no Acre. Marina traçou sua carreira política como legítima herdeira dele e, ainda que com todos os desgastes que as quedas de braço do poder causam, tem sobrevivido nesse mundo tão complexo sem abrir mão de seus princípios.

Por causa deles, aliás, perdeu a cadeira de ministra do Meio Ambiente em 2008, quando entrou em disputa com a então chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff. Naquele momento, o governo Lula considerou que precisava mais da obra da usina hidrelétrica de Belo Monte tal como se impunha pelo projeto do que da preservação adequada da riqueza que a cercava. A velha dicotomia entre economia e ecologia tinha o vencedor de sempre.

Marina deixou o governo e o PT, virou adversária política e até desafeta do antigo partido. Em 2010, surpreendeu ao ser a 3ª colocada numa eleição presidencial disputada pelo nanico PV. Quatro anos depois, com a morte de Eduardo Campos (PSB) em um acidente aéreo, assumiu a vaga principal na chapa que construíram à Presidência. O cenário de comoção a levou a estar à frente das pesquisas de intenção de voto, mas, sem estrutura adequada de campanha, virou alvo fácil dos canhões petistas e tucanos e foi abatida em voo pela propaganda político cruel de ambos contra ela. Depois, de 2016 a 2018, novamente se destacou nos levantamentos, mas acabou o ciclo eleitoral apequenada nas urnas, quase dando traço em porcentagem de votos e com seu oposto, Jair Bolsonaro, eleito presidente.

Em 2022, Marina fez a pazes com Lula e o PT por um bem maior: a restauração da democracia em uma frente ampla, lutando contra a reeleição de um autocrata que só precisava de mais um mandato para jogar o Estado de Direito no lixo. Não como recompensa, mas reconhecimento, recebeu do presidente eleito o retorno à antiga pasta, agora chamada Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima.

Se a questão ambiental e climática já preocupava em 2003, a situação 20 anos depois é desesperadora. Não foi à toa, portanto, que o nome da pasta tenha mudado. Diante do cenário catastrófico previsto com o aquecimento global, o mínimo que poderia se esperar é que a área fosse contemplada evidentemente com mais recursos e, principalmente, atenção integral dentro da hierarquia do Planalto.

Não precisa dizer que não é nada disso que vem acontecendo. O protagonismo, como sempre, está em pautas como reforma tributária, meta fiscal, avanço do PIB e desonerações. É o que querem discutir os políticos, os economistas, os players do mercado e a própria imprensa.

Enquanto isso, somente neste semestre atravessamos a segunda forte onda de calor, com temperaturas chegando a 45ºC no interior de Mato Grosso e a sensação térmica passando a casa de 50ºC em plena Cidade Maravilhosa. “Rio 50 graus”, teria de reescrever Fernanda Abreu para sua ode à capital fluminense.

No Sul, uma enchente atrás da outra, levando nas águas o pouco mas essencial patrimônio de vidas inteiras; em São Paulo, ventanias e tempestades que, juntadas à pouca eficácia da privada Enel no fornecimento e manutenção da energia elétrica, deixam centenas de milhares de pessoas sem luz por até uma semana; no Amazonas, um Rio Negro e um Solimões que gritam por água para seus peixes, seus bichos e seus ribeirinhos.

Tudo cai na conta do bicho-papão El Niño, fenômeno natural e recorrente de aquecimento das águas do Oceano Pacífico, que serve como uma forma de esquiva do centro do tema. Ora, o El Niño sempre esteve aí, sempre causou seus transtornos, mas sozinho jamais impôs a quebra de recordes históricos em várias categorias de desastres ambientais.

O Brasil vive seu contexto de crise econômica pós-pandemia, daí a proeminência de Fernando Haddad e Simone Tebet, ministros da Fazenda e do Planejamento. Tem seu BO político-institucional, com os atos golpistas, o neofascismo e suas consequências, então entende-se a visibilidade de Flávio Dino e Silvio Almeida, ministros da Justiça e dos Direitos Humanos, alvos preferidos da extrema direita.

E diante da hecatombe ecológica em curso, cadê Marina? Está sumida, como muitas vezes foi – injustamente, diga-se – acusada de fazer durante três anos e meio para só reaparecer em tempo de eleição para presidente. Mas, mais ainda desta vez, a culpa não é dela: é da falta de prioridade do governo Lula para discutir, lidar com e combater as mudanças climáticas, um assunto que infelizmente só vai se tornar mais importante de agora em diante.

Uma nova realidade, um “novo normal”, com o qual todo líder político vai se chocar, de uma forma ou de outra. Se se antecipar, pode minimizar os danos, tanto para a população e o país que ora governe quanto para as próprias pretensões futuras de poder. Isso vale para presidentes, governadores e prefeitos, especialmente os das grandes cidades. Tendo consigo uma Marina Silva, quase uma lenda no cenário mundial nas discussões ambientais, por sua incrível trajetória de vida, Lula tem optado por escanteá-la, ainda que culposamente. Dar declarações sobre a paz entre Israel e Palestina é importante, até algo que se impõe para o símbolo que o petista se tornou em todo o mundo. Mas, neste momento, é essencial ao presidente cuidar, literalmente, do próprio quintal.