O prédio do Exército está desabando, mas a corrosão da estrutura começou em 2018
05 junho 2021 às 19h58
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A impunidade ao general Eduardo Pazuello por subir ao palanque de Bolsonaro é o sinal mais claro de que as Forças Armadas estão sob alto risco de perder comando sobre as tropas
Dia de Corpus Christi, a quinta-feira, 3 de junho, não havia amanhecido quando o estrondo seguido de pânico estremeceu a Rua das Uvas e toda a vizinhança, na comunidade de Rio das Pedras, zona oeste do Rio de Janeiro. Era o desabamento de um prédio de cinco pavimentos, construído andar por andar por um pequeno comerciante para abrigar seus familiares. Genivan Gomes Macedo, o idealizador da obra, precisou de 25 anos para erguê-la. Nunca alugou nenhum quarto para pessoas estranhas à família.
No térreo, havia uma lan house na qual trabalhava o filho de Genivan. Formado em Tecnologia da Informação (TI), Nathan Gomes de Souza morava no 1º andar com sua mulher, Maria Quiaria, e com a filha Maitê, de dois anos. Nem ele nem a pequena saíram vivos da tragédia. A mulher gritou por socorro até ser socorrida. Foi resgatada pelos bombeiros e levada em estado grave para o hospital. Quinze dias antes do pesadelo em família, Genivan havia ouvido da filha moradora do 3º andar que o vidro de uma janela tinha estourado sozinho. Era um alerta de que a estrutura estava colapsando.
Em depoimento, o comerciante contou à polícia que veio do Ceará com 18 anos e fez a vida trabalhando em bicos, como ambulante, até abrir um mercadinho. Confessou que nunca havia contado com ajuda especializada na construção. Admitiu, ainda, que não tem escritura do imóvel, apenas documento de posse. Uma irregularidade atrás da outra, que, em longo prazo, custou-lhe a dor de perder parte da própria família de maneira tão triste.
A mesma quinta-feira, dia de Corpus Christi, não havia ainda chegado ao crepúsculo quando de Brasília veio uma sentença sobre outro episódio alarmante ocorrido semanas antes, também no Rio, só que na zona zul, mais precisamente no Aterro do Flamengo. Foi lá que um general de três estrelas do Exército subiu em um trio elétrico e usou o microfone que lhe deram para palavras em favor de Jair Bolsonaro (sem partido). Era o encerramento do que foi chamado de “motociata” – um comboio de milhares de motos que havia saído da zona oeste da capital carioca, liderado pelo presidente com a finalidade de lhe prestar apoio político.
O general em questão é Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde em uma gestão no mínimo bastante contestada e que, naquele momento, naquele breve discurso, cometia um ato de indisciplina muito sério como militar da ativa e de alta patente: tomar parte em um evento político. É um consenso no mundo civilizado: quem usa farda, por guardar o poder de fogo e de força do Estado, não pode se envolver em política nem emitir opiniões relativas ao tema.
Com a repercussão negativa que o caso teria, era preciso e iminente que Pazuello tomasse do Exército uma punição, que poderia variar entre uma simples advertência até mesmo uma prisão por 30 dias. Generais da reserva, como o vice-presidente Mourão, entendiam como inescapável a medida, por conta do risco de quebra da hierarquia e da disciplina em cascata. Mas muitos consideravam que uma advertência seria muito pouco pela gravidade da ocorrência.
A bomba estava nas mãos de Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, comandante do Exército. E, para entender como não seria fácil desarmá-la, basta uma análise mais detalhada do contexto e da história recente do País. O general foi nomeado para o cargo há pouco mais de três meses, em 31 de março, numa tensa e inédita troca, porque envolveu também a entrega dos comandos da Marinha e da Aeronáutica.
O começo de tudo
Os três comandantes fizeram um ato conjunto de apoio ao ministro da Defesa, general Fernando Azevedo, que havia sido demitido por não ceder à pressão presidencial para demitir Edson Pujol, então comandante do Exército. Bolsonaro queria que os comandantes das Forças Armadas, especialmente o general Pujol, defendessem o governo nas redes sociais e encampassem a ideia de que as restrições impostas por governadores e prefeitos na pandemia deveriam ser respondidas com o endosso deles ao que chamou de “estado de defesa”. Em outras palavras, ele queria um “aviso” semelhante ao dado ao Supremo Tribunal Federal (STF) pelo general Eduardo Villas Bôas em 2018.
Naquele ano, em 3 de abril, um dia antes do julgamento do pedido de habeas-corpus para o ex-presidente Lula, Villas Bôas, então comandante do Exército, publicou no Twitter a seguinte declaração:
“Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à Democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais. Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais.”
Então pré-candidato do PT à Presidência, Lula havia sido condenado em segunda instância em janeiro daquele ano, pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que confirmou a sentença de primeiro grau do juiz Sérgio Moro – o qual, este ano, foi considerado incompetente para a causa e também suspeito, depois de vazamento de áudios dos operadores da Lava Jato, mas aí já é outra história. O que fazia, então, o general responsável-mor por todos os homens das forças terrestres do Brasil, era tomar partido de um lado político. Ou, pelo menos, contra outro. As instituições da República já davam sinais de desgaste, e a própria Lava Jato era prova concreta disso, mas o tuíte do general teria efeitos devastadores no processo eleitoral e na própria democracia. A decisão do STF foi negar o HC à defesa de Lula. Por 6 votos a 5.
A crise da demissão dos comandantes, às vésperas do 31 de março, data simbólica para os militares, era a maior tensão institucional-militar desde a saída do general Sylvio Frota, em 1977. Da chamada linha-dura do regime militar, ele era ministro do Exército quando se insubordinou contra o presidente, general Ernesto Geisel, que buscava abrir caminhos para um governo civil, enquanto Frota queria ser candidato à sucessão no Planalto. Geisel anteviu o risco de um golpe e o demitiu antes que pudesse tentar algo.
Querendo à sua maneira submeter o Exército, Bolsonaro deixou perplexo até o próprio Villas Bôas – aos 69 anos, limitado fisicamente por uma doença degenerativa, mas com a capacidade intelectual preservada. A interlocutores, o general e ex-comandante do Exército se queixou da forma “abrupta” com que se deu a retirada de Azevedo do Ministério da Defesa, o qual havia sido indicado ao presidente por ele. E também o incomodou a subserviência de dois generais – os ministros Braga Netto (Defesa) e Luiz Eduardo Ramos (Casa Civil).
Braga Netto assumiu a Defesa e demitiu os comandantes que, de qualquer forma, já se demitiriam. Sem ter nenhum nome mais “engajado” para nomear à frente dos militares, Bolsonaro colocou Paulo Sérgio para substituir Pujol, apesar de o novo comandante, como chefe do Departamento-Geral do Pessoal do Exército, ter tido um comportamento oposto ao do presidente na pandemia. Uma reportagem do “Correio Braziliense” mostrou como as medidas contra a Covid-19 – como uso de máscaras, álcool em gel, distanciamento e testes – eram seguidas rigorosamente pela corporação. Tudo coordenado por Paulo Sérgio.
O episódio com Pazuello ocorreu já após uma sequência de ininterruptas declarações e discursos do presidente Bolsonaro em que usava (e ainda usa) as expressões “meu Exército” e “minhas Forças Armadas”, para sinalizar à sua base que tem os militares a seu lado. Na semana seguinte à infração do ex-ministro da Saúde, Paulo Sérgio viajou com Bolsonaro para o Amazonas, em uma das incursões pré-eleitorais para inauguração de obras (desta vez, uma ponte de madeira) e ouviu do presidente o desejo de não ver Pazuello punido. O chefe das Forças Armadas estava “sugerindo” ao comandante da maior delas que, caso houvesse alguma repreensão ao ex-ministro, ele não aceitaria muito bem e, quem sabe, usaria a prerrogativa de anular o ato do Exército.
O perde-perde do general
Naquele momento, o capitão reformado Jair Bolsonaro (“convidado a se retirar” da ativa após reclamar do soldo em artigo numa revista e planejar pôr bombas em quartéis e na adutora do Guandu, no Rio) colocou o general Paulo Sérgio em uma situação de perde-perde: se seguisse o regulamento do Exército e punisse Pazuello, corria o risco de ver sua determinação ser retirada por seu chefe, o presidente da República – o que o levaria a tornar fraca sua liderança sobre a tropa; se por outro lado, aceitasse o “pedido” recebido, o que impediria outros oficiais e menos graduados da corporação a também subirem em palanques políticos? Também estava por aqui minada sua autoridade.
A tensão foi levada ao Alto-Comando por Paulo Sérgio. É a instância consultora em que os generais-de-exército (quatro estrelas) discutem situações de crise. A imprensa apurou que a maior parte deles achava que era imprescindível a punição, sob risco de quebra da cadeia de hierarquia e disciplina, basilar para uma tropa. Mas Paulo Sérgio decidiu pelo contrário.
Por que isso ocorreu? O comandante teria motivos além dos óbvios, descritos dois parágrafos acima? A conversa com Bolsonaro teve outros vieses? O fato é que, se o Exército teve a imagem corroída pela decisão de seu comando, o governo federal ganhou salvo-conduto para a adesão de mais bolsonaristas a seu projeto político.
A quase totalidade dos analistas concordam que a situação de Paulo Sérgio se tornou complicadíssima, a ponto de ser menos traumática uma nova mudança de comando em menos de três meses do que sua permanência.
Jair Bolsonaro conseguiu uma estratégia vencedora para causar o que mais sabe: desconstruir as instituições. Fez isso com órgãos e pastas como o Ibama, o ICMBio, o Coaf e o Itamaraty. Este ano, desde março, já venceu duas batalhas contra os comandantes das Forças Armadas. Minando o poder e a autoridade, constrói a insubordinação do baixo oficialato e das patentes inferiores.
A separação entre farda e política, condição para a qual foram sendo projetadas as Forças Armadas desde a abertura de Geisel, e a estabilidade de três décadas de redemocratização, entraram em corrosão desde o tuíte do general Villas Bôas. A tomada da Esplanada dos Ministérios por mais de 3 mil militares da ativa no governo Bolsonaro foram um claro sintoma de que alguma coisa estava ficando fora da ordem.
A impunidade de Pazuello é o vidro que estourou sozinho na janela, na história do prédio mal erguido. O estalo causado pela decisão do general Paulo Sérgio indica que a estrutura das Forças Armadas está em vias de colapsar. Assim como o edifício construído em uma terra sem lei – a zona oeste carioca, dominada pelas milícias –, o Exército, especialmente, vem tropeçando em suas atribuições legais, a ponto de se desmoronar enquanto instituição. Bolsonaro está sendo bem-sucedido na formação do que já está sendo chamado de Partido Militar – e que envolve, além das FFAA, também as polícias e bombeiros militares.
O que vem por aí não se sabe. Mas, depois do estalo e do vidro quebrado da janela, a situação fica tensa.