O Brasil pode se tornar uma potência hídrica mundial. E isso pode começar por Goiás
31 outubro 2015 às 13h12
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É este o Estado que separa as maiores bacias hidrográficas do Brasil. E pode ser o divisor de águas do País na questão vital da água. Basta um líder tomar a frente do projeto
Elder Dias
Marconi Perillo precisa se encontrar com Sebastião Salgado. E urgente. Mas o que o governador de Goiás teria a falar com o mais renomado fotógrafo brasileiro, considerado uma das principais referências do fotojornalismo mundial? Certamente haveria muito que conversar, mas o tema principal não seria relativo à atividade de Salgado, um profissional multipremiado, que saiu de Minas Gerais para estudar na França e depois ganhar o mundo por conta de seu trabalho, plenos de crítica social, como “Novas Américas”, “Trabalhadores” e “Êxodos”, todos com o foco temático na figura do homem. Todos esses se tornaram peças multipremiadas, de respeitabilidade mundial, consagração confirmada com a conquista de melhor documentário no Festival de Cannes de 2014 com “O Sal da Terra”, seu filme biográfico, dirigido pelo renomado alemão Wim Wenders e por seu filho Juliano Salgado.
Mas o papo com o governador tucano poderia começar já diretamente a partir de “Gênesis”, o trabalho mais recente de Sebastião Salgado, no qual ele se reencontrou consigo mesmo e com a natureza, conforme seu próprio relato. Depois de entrar em uma atmosfera de depressão e pessimismo com o mundo após as tragédias que relatou em “Êxodos” – entre elas o genocídio de milhões de pessoas em Ruanda –, ele viajou pelos cinco continentes em busca de paisagens que ainda não tinha sido tocadas pelo homem. E, por incrível que pareça, quase metade da superfície terrestre ainda resta intacta, segundo conta o próprio fotógrafo.
Hoje com 71 anos, o fotojornalista poderia apenas estar colhendo os louros de uma vida muito bem sucedida . Mas, simultaneamente a “Gênesis”, começava um pequeno milagre. Salgado topou a sugestão-desafio de sua mulher, Lélia Wanick: reflorestar a fazenda em que nasceu, em 1944, e que se encontrava totalmente degradada. O trabalho de reconstrução se iniciou em 2002. Hoje, 13 anos depois, a Fazenda Bulcão virou uma reserva da Mata Atlântica: as nascentes da área renasceram e o Rio Doce – que passa pela antiga propriedade da família Salgado e deu nome à famosa companhia de extração mineral – está, aos poucos, recuperando a força.
Salgado, a partir de uma iniciativa particular e agindo de modo simples (ganhou algumas mudas e se responsabilizou em produzir as demais) mostrou que a mesma força do homem pode construir o futuro, em vez de destruí-lo. Mas, para isso, é preciso rever valores e conceitos. Primeiramente, não fugir do problema; em segundo lugar, mudar o modo de produção. O próprio Salgado, ao refletir sua missão de retratar os dramas atuais, escreveu em sua autobiografia “Da minha terra à Terra” – curiosamente publicado originalmente em francês (“De ma terre à Terre”, com a jornalista Isabelle Francq):
“Ninguém tem o direito de se proteger das tragédias de seu tempo, porque somos todos responsáveis, de certo modo, pelo que acontece na sociedade em que escolhemos viver. Todos deveriam admitir que a sociedade de consumo da qual participamos explora e pauperiza enormemente os habitantes do planeta. Todos deveriam se manter informados (…) a respeito das tragédias provocadas pela desigualdades entre o Norte e o Sul, das calamidades em série geradas por ela. Este é o nosso mundo, precisamos assumi-lo.”
Se todos somos responsáveis, é também verdade que quem tem mais poder reúne também mais condições para encarar o desafio de transformar a realidade em algo melhor. Sebastião Salgado, dentro de seus limites, fez (e faz) com louvor a parte que lhe caberia. Um gestor público poderia (e deveria) fazer muito mais. Aqui entra, então, a figura de alguém como Marconi Perillo.
Uma crise na hora certa
O Brasil passa por tempos difíceis em termos econômicos e políticos. Há carência de lideranças genuínas e de planejamento inovador. O povo parece sem rumo e o horizonte não tem mostrado nada de frutífero que possa surgir, por exemplo, se a contestada presidente Dilma Rousseff (PT) cair por meio de um impeachment. Seus eventuais substitutos na linha de sucessão não empolgam: o vice Michel Temer, o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, e o do Senado, Renan Calheiros. Todos do PMDB, um partido também desgastado por escândalos, alguns dos quais têm como protagonistas os dois últimos nomes citados. Na oposição, puxada pelo PSDB, críticas vazias de quem parece mais preocupado em assumir o poder do que em mostrar um projeto para o País. O maior líder oposicionista é hoje o senador mineiro Aécio Neves, derrotado nas urnas na disputa presidencial em seu próprio Estado, onde levantam-se vários senões sobre sua gestão.
A revolta popular acontece, nesses tempos tecnológicos, de forma diferente. A praça do povo é a rede social. Muitos espalham sua indignação pelo Facebook e por aplicativos de telefones celulares. Alguns chegam a comemorar retrocessos – como a redução da maioridade penal e o armamento do cidadão – como pequenas vinganças, ainda que temerárias, contra o Estado gigante e ineficiente, sem perceber que investem contra o próprio futuro. Não há dúvida: há uma crise em curso, e uma crise ampla.
O que leva a uma constatação: nas últimas décadas, não existiu momento mais propício do que o atual para o surgimento de um novo líder – é nas crises que eles surgem. Em suas ações e reações, o povo pede, sem saber dizer isso claramente, por alguém que conduza a Nação de forma segura e visionária, como verdadeiro estadista. É preciso garantir as conquistas e, ao mesmo tempo, mudar o curso da nau.
Ao mesmo tempo, o mundo precisa mudar de rumo também. Ou isso acontece ou a humanidade está fadada à extinção. Em dezembro, ocorre mais uma Conferência do Clima, a COP 21, em Paris. Não há um cenário promissor, porque quem puxa a economia mundial, notadamente Estados Unidos e China, parece só aceitar cumprir acordos que não os desfavoreçam no que ainda chamam de “crescimento”. Mas crescimento para onde?
Enquanto nada muda, as notícias apocalípticas vão se tornando rotineiras nos jornais. Falam em multiplicação de eventos extremos (ondas de calor, secas, tempestades, furacões etc.), em elevação do nível dos oceanos e no aumento da temperatura no planeta como fatos iminentes, porém de modo assustadoramente normal. Para dar estrutura burocrática ao tema, multiplicam-se os órgãos governamentais e comissões parlamentares – existe a Comissão Mista Permanente sobre Mudanças Climáticas, em cuja sessão da semana passada, aliás, o tema principal acabou sendo o bate-boca entre o senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) e o ministro de Minas e Energia, Eduardo Braga.
Obviamente, só existe essa estrutura por estar presente um problema cada vez mais real: o ser humano precisa se virar para sobreviver nos próximos tempos. A seguir a escalada atual de consumo e depredação dos recursos naturais, o colapso parece logo ali. Muitos se perguntam mesmo se ainda há prazo para reversão. Um questionamento retórico que apenas faz perder mais tempo no agir.
O problema e a vantagem
Entre todos os itens-problema que envolvem a mudança climática, Goiás ocupa uma posição estratégica em pelo menos dois: água e bioma. Isso pode ser uma vantagem ou um problema. Goiás é o Estado que separa as maiores bacias hidrográficas do Brasil — Amazônica, do São Francisco e do Paraná. Elas se abastecem, em grande parte, das águas que brotam nas terras do Cerrado. E aí entra uma grave questão: a peculiaridade do bioma.
Eis o problema: a devastação do Cerrado é tida sempre como “menos grave” do que a da Amazônia ou mesmo da Mata Atlântica. O fato de ter uma aparência menos imponente do que as florestas tropicais é só um dos fatores — talvez o menos relevante — que levam a esse tipo de consideração. Para salvar a Amazônia do desmatamento, a expansão das fronteiras agrícolas precisa achar um espaço alternativo. E a não inclusão do Cerrado entre os biomas considerados “patrimônio nacional”, a despeito da PEC 115 — uma proposta de emenda constitucional, ainda de 1995, de autoria do então deputado federal Pedro Wilson (PT), que busca preservar também a Caatinga e os Pampas — dá a exata direção de para onde o agronegócio deve procurar incrementar suas pastagens e monoculturas.
E assim tem sido: a cada ano, só em Goiás, são desmatados cerca de 1,5 mil quilômetros quadrados de área nativa de Cerrado, de acordo com pesquisa do economista Millades de Carvalho Castro. É como se desaparecesse a vegetação de quase dois municípios com a área de Goiânia (789 km²) entre um réveillon e outro no único Estado do País com praticamente 100% de Cerrado em seu território.
Entre as atividades do mundo agrícola, raras coisas são tão rápidas quanto desmatar um alqueire de Cerrado nativo: uma corrente e dois tratores dão conta do serviço em um tempo relativamente curto, e contam com a ajuda do relevo plano. Depois, é fazer o preparo do terreno com calcário para a correção da acidez e tudo está praticamente pronto para receber a soja ou o braquiária.
Um manejo fácil, que é inversamente proporcional à idade do Cerrado: 65 milhões de anos de formação geológica jogados fora para sempre em uma semana. É que com a retirada da capa de solo superficial e a alteração do pH, aquele terreno torna-se inviável para a recomposição do bioma. A aparência rústica engana: o Cerrado é composto de organismos (vegetais e animais) extremamente sensíveis.
Graças às raízes profundas e extensas de suas árvores e plantas (que têm volume até duas vezes debaixo maior debaixo da terra do que sobre ela) as águas ficam salvaguardadas no solo do Cerrado. Por isso, alguns estudiosos chamam-no a “caixa d’água do País”. Com seu desmatamento para plantio ou pastagem, a razão entre gasto e economia hídrica é invertida. Torna-se um desastre: uma monocultura — por exemplo, de soja — exige irrigação o tempo todo (gasto maior) e essa água não fica retida mais no subsolo. É como se, em termos ambientais, estivéssemos trocando um quilo de ouro por uma barra de chocolate. A garantia do futuro engolida pela avidez do imediatismo.
Uma estupidez cujas consequências já não são para as próximas gerações. Ao contrário da água, abundam exemplos de degradação. A cada ano aumenta o número de cidades goianas com problemas de abastecimento. O Rio das Almas, na região do Vale do São Patrício, sofre com a seca, agravada em grande parte pelo desvio de seu curso para servir a uma usina de cana de açúcar. O Meia Ponte, que abastece a região metropolitana de Goiânia, nunca teve um nível tão baixo. Por aí explicam-se, também em grande parte, a agonia do Rio São Francisco e a crise hídrica de São Paulo. Os rios e os reservatórios são só sintomas da anemia que devasta o Cerrado.
Se esse é o problema, eis a vantagem: mais do que servir de um consolo torto, a devastação e o desabastecimento em outros Estados deve servir para uma tomada de decisão de vanguarda por parte de Goiás. A água está cada vez mais se tornando peça fundamental na geopolítica mundial. Em algum tempo, talvez pouco, o petróleo perderá seu posto para ela – ninguém come petróleo nem dinheiro, já avisava o Chefe Seattle, em carta ao presidente dos Estados Unidos.
Goiás, o Estado governado por Marconi Perillo — que já puxou a fila da vanguarda em outros temas, como com o programa Renda Cidadã, que originou o Bolsa Família —, pode ser o divisor de águas na discussão e no enfrentamento da questão hídrica no País. Basta que o governador exerça sua liderança e enfrente o problema.
É difícil? Sim, há vários desafios e interesses em jogo. Mas para quem tem volúpia e ambição positiva isso não pode ser obstáculo: precisa ser motivação. Foi o que Sebastião Salgado demonstrou sempre em seu trabalho como fotógrafo e como ambientalista.
Em um País carente de novas ideias e sem nomes que queiram o poder para mais do que se servir dele, essa nova forma de se posicionar em temas vitais — mas sempre postergados — será algo que o Brasil vai observar atentamente e pode servir para capitalizar novos voos e projetos políticos. O meio ambiente é a causa do presente, para garantir o futuro. Inclusive um grandioso futuro político.