“Saco nada de física/ Literatura ou gramática/ Só gosto de educação sexual/ E odeio química!”. Os versão são do refrão de Química, canção composta por um jovem Renato Russo, em 1981, quando a Legião Urbana ainda não existia, e que acabaria sendo um dos motivos para o fim da banda Aborto Elétrico – de estilo punk rock e cujos integrantes se dividiriam depois entre a própria Legião (Renato Russo) e o Capital Inicial (os irmãos Flávio e Fê Lemos).

Como o próprio compositor contou anos mais tarde, os demais integrantes consideraram a letra “idiota” quando ela lhes foi apresentada. Renato escrevia ali sobre sua fase adolescente, relatando a revolta por não gostar de certas disciplinas – como física, matemática e, claro, química –, mas mesmo assim ser obrigado a estudá-las para “passar no vestibular”, como emenda um verso seguinte da música.

Nos dias atuais, o problema do adolescente Renato Russo poderia ser resolvido na prática e até com sucesso, porque o ídolo do rock brasileiro, de família abastada, estaria em boas escolas particulares. O segredo da mágica se chama “Novo Ensino Médio” e se tornou mais uma polêmica enfrentada pelo governo federal em seus primeiros meses – embora com um perfil mais discreto do que investigação de atos golpistas ou índice de taxa de juros, porém intenso no meio dos profissionais da educação.

A reforma do ensino médio surgiu a partir de uma medida provisória de 2016 (a MP 746/2016) convertida em lei federal ordinária no ano seguinte, durante o governo de Michel Temer (MDB). Sob a justificativa principal de que, em tempos de tantas inovações tecnológicas, o currículo tradicional estaria obsoleto, a proposta estabeleceu novos parâmetros. Entre eles, torna cada aluno livre – e, portanto, responsável – para escolha de seu currículo escolar. Ou seja, à exceção de matemática e português (que seguem como disciplinas obrigatórias), a nova norma deixa sob a responsabilidade de um adolescente entre 13 e 16 anos os rumos de sua trajetória escolar.

Essas escolhas se dão pelos “itinerários formativos” implantados pela escola, o que na verdade consiste na flexibilização do que era currículo convencional em novas disciplinas. Entre os exemplos alegados pelos críticos, por exemplo, escolas já ofertaram “Brigadeiro Gourmet”, “Projeto de Vida” e “Torne-se Um Milionário”, pelas quais o aluno que não gosta de História – ou Química – poderia optar para completar suas horas necessárias.

Entidades classistas de professores e estudantes e até quem geralmente se posiciona por posições mais ligadas à educação voltada para o mercado, como a organização Todos Pela Educação, se mostraram insatisfeitas com a proposta, que começou a ser implantada no ano passado, no 1º ano.

Neste ano, estava em curso a adoção pelo 2º ano – a reforma chegaria ao 3º ano e ao Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) em 2024. “Estava”, porque o ministro da Educação, Camilo Santana, anunciou no início do mês a suspensão da implementação por 60 dias. O objetivo não é, em princípio, revogar o Novo Ensino Médio, mas discutir possíveis mudanças.

Não é o suficiente para uma grande parte da comunidade acadêmica. Um dos críticos mais contundentes do novo ensino médio é o professor Fernando Cássio, da Universidade Federal do ABC (UFABC) e integrante da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), para quem os efeitos da reforma já são observáveis como “tragédia”, principalmente para o já combalido ensino público. “Causa estreitamento curricular e vedação do acesso ao conhecimento científico, humanístico e da cultura”, como vaticinou em depoimento ao podcast Medo e Delírio em Brasília, que tratou do tema em uma edição especial.

Professor Fernando Cássio, da UFABC: “Reforma trouxe estreitamento curricular” | Foto: Reprodução

Entre os vários problemas, Fernando Cássio aponta um de origem. “Essa reforma não prevê a construção de uma sala de aula sequer; nem melhores condições de trabalho; nem a melhoria da carreira de professores e professoras; nem a contratação de novos profissionais; nem políticas de permanência estudantil para quem estuda à noite e trabalha o dia todo; nem a expansão de rede física de escolas técnicas. Ou seja, não prevê nenhuma mudança estrutural para a garantia das maravilhosas promessas liberais”, critica o professor, que é doutor em Ciências (Química) pela Universidade de São Paulo (USP).

A proposta tem sido apresentada como uma forma de modernizar o ensino e preparar melhor os estudantes para o mercado de trabalho e para o ensino superior. Na verdade, a ideia de mudar o ensino médio brasileiro vem de 2012, a partir da criação de uma comissão na Câmara depois de uma articulação puxada por um deputado federal do PT, Reginaldo Lopes (MG). A comissão apresentou um projeto de lei (6.840/13) que continha o embrião da separação de uma formação curricular básica de uma formação mais generalista.

Veio em 2016 a deposição de Dilma – que, aliás, torcia o nariz para a reforma de iniciativa de gente do próprio partido – e uma nova proposta foi encaminhada a toque de caixa por seu sucessor Temer: em menos de três meses saía a medida provisória que a avalizava.

Como foi feita, e de acordo com a visão de grande parte dos pesquisadores da área da educação, a flexibilização que foi efetivada reforça uma visão utilitarista: os alunos são preparados para o mercado de trabalho e sua formação humanista e crítica fica em segundo plano – ou “nem fica”, em alguns casos.

Há mudanças que até podem facilitar o caminho de quem deseja uma formação técnica e profissionalizante com a possibilidade de os estudantes cursarem o ensino médio de forma integrado com disciplinas nesse perfil – como já ocorre há décadas nas escolas técnicas. Quando, porém, isso se torna oferecido por todo o ensino e não apenas por aquele já destinado à formação tecnológica, o temor, bastante justificável, é de que essa mudança limita as opções e reforça a ideia de que a formação técnica é superior à formação geral e humanística.

De positivo, alguns ressaltam o aumento da carga horária para a integralização do curso médio. A questão é que hoje já há uma grande demanda de professores

Assim, a proposta de ampliar essa carga horária de forma gradual – até atingir sete horas diárias – gera dúvidas: com que pessoal as escolas públicas contarão, elas que se encontram, em grande parte, em déficit de profissionais? Mais ainda: mais tempo de sala de aula não significa mais qualidade no ensino.

Por tudo isso, dar uma pausa no que está sendo colocado de forma tão peremptória parece ter sido uma boa medida do governo. Porque, como está posto, escolas públicas ficarão ainda mais distantes da realidade da rede privada, justamente porque o ideal só pode existir em cima de bases concretas que ainda não foram erguidas.