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É comum ver análises falando que a crise financeira “matou” o consumo e, consequentemente, a nova classe. Porém, não é bem assim

Crise econômica com certeza afetou o comportamento da população, mas efeito sobre a “nova classe C” não pode ser analisado com clareza ainda
Crise econômica com certeza afetou o comportamento da população, mas efeito sobre a “nova classe C” não pode ser analisado com clareza ainda

Marcos Nunes Carreiro

Há 10 anos houve no Brasil uma ascensão. O nascer de uma “nova classe C”. O que isso quer dizer? Que os pobres passaram a ter poder de consumo, termo que regeu os dois mandatos do ex-presidente Lula e, de certa forma, também a primeira passagem de Dilma Rousseff pelo Palácio do Planalto, pois foi essa condição renovada de parte da população que deu sustentação à economia do País durante a última década.

Essa “nova classe C” surgiu com aquelas pessoas que ganharam maiores oportunidades de acesso às universidades, por exemplo, e que, por meio disso, conseguiram ocupar novos lugares na sociedade, tanto pelo consumo quanto pelas novas posições que se capacitaram a exercer. Assim, é possível analisar a questão do título por dois aspectos: pelo lado puramente financeiro — que envolve questões de classe econômica; e pelo viés social.

Se a “nova classe C” ganhou novo status social unicamente por ter conseguido aumentar sua renda, a crise financeira que abateu o País desde o fim de 2014 dá argumentos suficientes para que muitos considerem que ela está morta.

Afinal, já não existe poder de consumo o suficiente para manter o padrão de vida ao qual se acostumou a parcela da população que antes ocupava as classes D e E. As taxas de desemprego falam por si.

Esse fato garante também argumentos para outra tese: a de que essa classe sequer existiu na prática, visto que é incomum pensar que a ascensão de classe ocorrida tão recentemente foi derrubada pela crise econômica que, embora acentuada, não será permanente. Dessa forma, é mais fácil pensar que não houve evolução, e sim uma sensação de evolução.

A verdade é que é difícil analisar a questão com clareza, afinal a crise ainda está acontecendo e não se poderá ter uma certeza, neste momento, sobre a “nova classe C”. É fato que as crises política e econômica certamente terão reflexos na vida do povo brasileiro. O tamanho desse impacto é que ainda não se pode afirmar com precisão.

Contudo, avaliações podem ser levantadas.

Brand Arenari, diretor de estudos e relações econômicas e políticas internacionais do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) faz uma dessas avaliações. Segundo ele, a ascensão ou descensão de classes guarda uma autonomia relativa à dimensão econômico-financeira. Relativa porque o fator econômico em uma sociedade capitalista é uma das instituições mais importantes, mas não é total.

Isto é, as transformações de classes existentes no Brasil, atestadas por todos os meios de avaliação na última década, vão para além do acesso ao consumo e de melhor renda às classes brasileiras. “A ascensão é também acompanhada por um acesso a outras instituições da sociedade, como ocupação de espaços públicos, que vão desde shoppings e aeroportos às universidades. Fora os processos mais sutis, que estão ligados à dimensão simbólica, como classes populares com autoestima para expressar sua história de classe e construir caminhos diferentes para a vida e firmar essa história nos espaços públicos”, explica.

Assim, o descenso financeiro não seria uma garantia de que as classes farão um retorno para onde saíram. Isso é garantido, por exemplo, pelas pessoas que tiveram acesso às universidades, pois são “pessoas que foram colocadas em outras redes sociais, com outros tipos de contato e com acesso a outros espaços. São os capitais sociais. E tudo conta na luta de todos contra todos, que é a sociedade”.

O pensamento de Arenari vai ao encontro do de Jessé de Souza, sociólogo, professor licenciado da Universidade Federal Fluminense (UFF) e atual presidente do Ipea. O entendimento de Jessé, acertadamente, é o de que não se pode analisar a ascensão de classe apenas a partir do aumento salarial, sob pena de encobrir conflitos sociais.

Obviamente não é possível desvincular o fator econômico-financeiro da questão de classe, pois de fato existe uma diferença também de renda entre elas. Mas, ao se concentrar a análise somente neste aspecto, não se tem um entendimento real, visto que as classes são também formadas por fatores culturais e de ocupação de espaços públicos.

Por esse ponto de vista, a “nova classe C” existe, em uma escala menor que a pensada, — pois nem todas as pessoas que conseguiram maior renda ocuparam os espaços culturais e sociais compatíveis com essa renda — e também não morreu, mas persiste, mesmo com renda menor. E faz isso exatamente porque teve acesso a novos meios de ver o mundo e se relaciona melhor com ele, como pequenos empresários, pessoas que não apenas conquistaram renda maior, mas também possibilidades de mantê-la.

“Quando o emprego formal some, as pessoas costumam ir ao encontro de trabalhos médios ou informais. O fenômeno do food truck é uma manifestação disso, pois são pessoas que vão para a rua vender os seus produtos e lutar para manter o seu padrão de vida”, relata Brand Arenari. Quer dizer, a crise afetou a “nova classe C”? Pode-se dizer que sim, mas não a inviabilizou de todo.

“Maior crise do País é a de perspectiva” 

Crise econômica com certeza afetou o comportamento da população, mas efeito sobre a “nova classe C” não pode ser analisado com clareza ainda
Crise econômica com certeza afetou o comportamento da população, mas efeito sobre a “nova classe C” não pode ser analisado com clareza ainda

O Jornal Opção entrevistou Renato Meirelles, presidente do Data Popular, uma empresa que acompanha, desde 2001, o desenvolvimento das classes C, D e E. Apontado como um dos primeiros a antecipar o movimento de ascensão da chamada “nova classe C”, ele diz que, do ponto de vista econômico, embora represente a parcela da população mais carente de proteção, ela também tem uma maior capacidade para “se virar”.

Aqui é possível ver outro tipo de análise, pois leva em consideração o caráter financeiro das classes mais baixas da população. Para Renato, a criatividade do brasileiro trabalha a seu favor fazendo com que, mesmo na crise, grande parte dessas pessoas consiga manter, de uma forma ou outra, o padrão de vida ao qual se acostumou nos últimos anos. Tanto é que, à primeira pergunta feita a ele, percebe-se que a pior crise em sua visão não é a financeira, mas a de perspectiva.

O Brasil passa por uma crise econômica. Como a população tem reagido a isso?
Estamos hoje diante de um brasileiro mal-humorado com a atual situação econômica do País. Em nossas pesquisas, metade da população acredita que essa é a maior crise que o País já viveu. Mas a maior crise que o País vive é a crise de perspectiva. O brasileiro não vê uma luz no fim do túnel, não vê saída para a crise.

O que diferencia a reação à crise entre as classes mais altas e mais baixas?
A principal diferença é que as classes C, D e E enxergaram na crise uma oportunidade. Enquanto as classes mais altas estão chorando, as classes C, D e E estão vendendo lenço. Os brasileiros, em geral, se recusam a dar um passo para trás. Eles estão se virando. Estão aumentando a renda e reduzindo os gastos.

Então, o que ocorre, de fato, em relação ao poder de consumo da população: uma sensação de perda ou uma perda real?
Essa sensação de possível perda das conquistas recentes tem preocupado a população, que teme, por exemplo, o desemprego. Oito em cada dez brasileiros têm algum amigo que perdeu o emprego nos últimos seis meses.

Fala-se muito que o desenvolvimento do País nos últimos anos foi baseado no consumo, possibilitado por aquilo que se pode chamar de “inclusão econômica”, um aumento de renda que tornou possível a criação da chamada “nova classe C”. Porém, vemos que essa classe está sofrendo com a perda desse poder de consumo, resultado da crise econômica atual. Como essa parte da população está se comportando agora?
A classe C tem se sentido muito decepcionada com a atual situação econômica. Eles deixaram de ter oportunidades, como Fies e viagens de avião, de uma forma muito rápida. Preocupada com a crise econômica, a classe C adotou medidas próprias e faz o seu próprio ajuste fiscal doméstico: dobra o turno no trabalho, faz hora extra para aumentar a renda, muda hábitos de consumo, economiza nas contas do lar, troca a marca de produtos no supermercado e reduz gastos com lazer.

Vários sociólogos diziam, já no fim da década passada, que era um erro considerar que os mais pobres subiram de classe apenas porque conseguiram aumentar sua renda. Por esse ponto de vista, poderíamos considerar que essa “nova classe C” foi um fenômeno passageiro que se esvazia agora, diante da crise? Isto é, ela nunca existiu?
No Data Popular, a gente não trabalha com classe social. Trabalhamos com classe econômica, que é basicamente renda, e dividimos as classes em alta (renda per capita acima de R$ 1.240,37), média (renda per capita de R$ 354,10 a R$ 1.240,36) e baixa (renda per capita entre R$ 98,47 e R$ 354,09). A classe C cresceu nos últimos anos e continuará em expansão. Do ponto de vista financeiro, essa parcela da população está mais desprotegida, mas do ponto de vista da capacidade de se virar, a classe C é muito mais avançada.

O que indicam os dados de consumo da população?

Consumo de arroz, alimento básico do brasileiro, pode voltar a crescer com a diminuição de renda da população
Consumo de arroz, alimento básico do brasileiro, pode voltar a crescer com a diminuição de renda da população

Os hábitos alimentares também dizem muito a respeito do comportamento das pessoas diante da situação financeira do País. Um estudo de pesquisadores estadunidenses, por exemplo, acompanhou ribeirinhos da Amazônia durante alguns anos e constatou que, com o Bolsa Família, as famílias que antes vivam do plantio de mandioca e da caça e pesca, passaram a comer mais carne seca, mortadela e biscoito.

Embora não sejam hábitos alimentares mais saudáveis, a possibilidade de consumir novos produtos mostra como o acréscimo de renda — e o Bolsa Família ajudou nisso — modificou algumas realidades.

E foi assim com a “nova classe C”, que passou a consumir não apenas produtos, mas diferentes tipos de comida. É possível comprovar isso com o crescimento do setor de serviços voltados para a área — em Goiânia surgiram os complexos gastronômicos, como o do Shopping Flamboyant, que reúne restaurantes mais “abastados”.

Ou seja, as pessoas, com maior capacidade de renda, passaram a “comer melhor”. E isso foi refletido no consumo de produtos básicos, como o arroz, que sofreu uma baixa nos últimos anos, mas que pode voltar a subir agora que o período é de crise.

“A economia estava baseada na classe trabalhadora, que frequentava restaurantes e praticamente não comia em casa. Com a crise, a população voltou para casa, buscando naturalmente o consumo de arroz e feijão, os alimentos básicos. Fora isso, o arroz é o alimento mais barato do Brasil”.

A fala é de Adonel Jorge de Oliveira, diretor-secretário do Sindicato da Indústria do Arroz do Estado de Goiás (Siago), que aponta porém para um revés: a crise deste ano, embora tenha prejudicado o poder de consumo da população, ainda não fez com que as pessoas voltassem aos hábitos do passado.

“O mercado está frio. A Arroz Cristal, por exemplo, vende 400 mil fardos de 30 quilos por mês. Em novembro vendeu menos, porque os supermercados não querem mais comprar em grande escala. Isso porque o consumidor que antes comprava três fardos de arroz, agora compra dois; o que comprava dois, baixou para um; e o que comprava só um, agora consome um arroz de segunda linha. Agora, a expectativa é de que esse consumo irá aumentar, justamente porque as pessoas estão voltando a comer em casa”, relata.