Nem só por morte governaram os militares
09 abril 2014 às 16h29
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Saldo dos governos civis durante o regime militar em Goiás não ficou no vermelho como pensam muitos. Houve sangue, de fato, mas o Estado também vivenciou certo desenvolvimento
Marcos Nunes Carreiro
Em 31 de março completaram-se 50 anos do mal-aventurado golpe que colocou os militares na direção do país por 21 anos. Desgraçado, infeliz, desditoso, malfadado. São todos esses adjetivos utilizados para se tratar dessa parte da história do Brasil, que parece tanto ter-se ido, sendo que faz parte da trajetória recente do também jovem País. Prova disso é que uma boa parte das pessoas envolvidas com o período militar ainda está viva. Algumas personagens bastante idosas, mas vivas.
E todas essas qualidades –– no sentido em que a gramática normativa coloca os adjetivos –– não são de todo injustas quando tratamos da lendária ditadura militar brasileira. É certo que centenas de pessoas morreram e outras centenas foram torturadas física ou psicologicamente. É, pelo menos, disso de que se lembram quando os “Anos de Chumbo” são trazidos à memória; e não há que se negar. Contudo, é possível também achar qualidades –– no significado comum da palavra –– nas duas décadas e alguns meses em que patentes guiaram a nação mulata. Afinal, há luz fora desse maniqueísmo da história brasileira.
Os militares “emprestaram” nomes muito preparados, alguns bastante repressivos, é verdade, mas preparados. Esses nomes alavancaram a infraestrutura do País. Cita-se, por exemplo, Humberto de Alencar Castello Branco, Golbery do Couto e Silva e Ernesto Geisel, ligados à Escola Superior de Guerra (ESG) –– chamado “grupo da Sorbonne”, em referência à qualificada universidade francesa. Três estrategistas que absorveram o binômio “segurança e desenvolvimento” da ESG. Castello Branco, o primeiro; Geisel, o penúltimo do regime. (Golbery, espécie de eminência parda dos dois governos.) Um fechado pela pecha da “ditadura” iniciante, o outro por iniciar a abertura que fecharia o período que começara em 64. Mas ambos desenvolvimentistas (Geisel talvez mais do que Castello).
Entretanto, não trataremos dos presidentes. Falemos dos governadores. Goiás vivia um bom momento desde o início da década de 1960. A gestão de Mauro Borges é ainda apontada como a mais completa da história do Estado, embora ele não a tenha finalizado, visto que sofreu com a intervenção militar em 26 de novembro de 1964 –– uma ironia, uma vez que apoiou o golpe, como mostrado na matéria “A verdade sobre o golpe militar em Goiás” (http://bit.ly/1egoHx0), publicada na última edição do Jornal Opção. Era um governo planejado, que iniciou a mudança no então cenário goiano pouco evoluído.
Sai Mauro Borges entra o interventor coronel Carlos de Meira Mattos, que dá lugar ao marechal da reserva Emílio Ribas Júnior. Durante um ano, o marechal deu continuidade como pôde aos intentos mauristas, mesmo alguns deles sendo classificados como “comunistas” ou “subversivos”. Após esse período, entre em campo o primeiro governo civil-militar de Goiás: Otávio Lage.
De Goianésia para o Palácio das Esmeraldas
Nascido em Buriti Alegre, no sul de Goiás, Otávio Lage de Siqueira era filho de Jalles Machado, ex-prefeito de Buriti Alegre, secretário de Viação e deputado por três mandatos. Tendo recebido boa educação, Lage se formou engenheiro civil pela Escola Politécnica de São Paulo e logo começou a atuar na área ao entrar para o Departamento Nacional de Estradas de Rodagem, embora não por período longo. Agropecuarista, ele esteve envolvido em conflitos por terra na região de Goianésia nos anos que antecederam o golpe militar.
Esses problemas, contudo, por serem quase comuns à época, não prejudicaram sua ascensão à Prefeitura de Goianésia. Fazendeiro, não estranhamente Lage era politicamente ligado à União Democrática Nacional (UDN), legenda que deu o suporte civil para o golpe, que derrubou tanto o presidente João Goulart (PTB) quanto o governador Mauro Borges (PSD). E com a aproximação das eleições de 1965, o nome de Otávio Lage não foi também uma novidade entre os udenistas goianos, que nas convenções preferiram-no em sobreposição a Emival Caiado.
Esse fato estremeceria a relação entre os Lage e os Caiado por um longo tempo –– há quem diga que as desavenças duram até os dias atuais. Conflito político que se agravaria, sobretudo, após a cassação do então prefeito de Goiânia, Iris Rezende, em 1969. O governo federal escolheu para ocupar a vaga ninguém menos que um Caiado. Não Emival, mas Leonino. O governador argumentou, visto que preferia Luiz Menezes para assumir a prefeitura, mas não adiantou. Leonino Caiado viria a substituí-lo também no governo dois anos depois.
Curiosidades à parte, Otávio Lage tomou posse ao lado de seu vice, Osíres Teixeira, em sessão solene na Assembleia Legislativa de Goiás, no dia 31 de janeiro de 1966. Em seu discurso, o novo governador eleito anunciava seus propósitos de dar atenção especial ao interior e promover uma administração preocupada, sobretudo, com transportes, agropecuária e energia, o que realmente fez.
Entre as principais realizações de seu governo estão: a conclusão da segunda etapa da hidrelétrica de Cachoeira Dourada –– sim, aquela usina vendida durante o governo de Maguito Vilela, em 1997 –– e a extensão da rede de transmissão de energia elétrica a algumas dezenas de municípios. O governador também trouxe sua breve experiência como engenheiro do Departamento Nacional de Estradas de Rodagem e deu início ao asfaltamento da rodovia que liga a cidade de Goiás a São Miguel, entre outras vias. Destaca-se: a pavimentação da GO-030, além dos trechos de interligação da BR-153 com as cidades de Goiatuba, Piracanjuba, Buriti Alegre e Pontalina.
Fora isso, também deu início a expansão das unidades de saúde e escolas pelo interior. Começou a construção do Centro Materno Infantil em Goiânia e instituiu, em 1967, a Saneamento de Goiás S/A (Saneago), então sucessora do Departamento Estadual de Saneamento (DES).
Eleições de 1965 sofreram influência do novo regime
Recém-instalado, o golpe militar não alterou o cronograma das eleições estaduais de 1965. Porém, não se pode dizer que não houve influência, mesmo que indireta, pelo menos em Goiás. Eram duas chapas: a de Otávio Lage era formada por UDN, PSP e PTB. Era o grupo de apoio ao golpe –– o PTB, mesmo sendo o partido do deposto João Goulart, se uniu à UDN em Goiás. A outra tinha como candidato José Peixoto da Silveira, do PSD.
O resultado foi apertado: 180.962 votos para Lage e 176.806 para Peixoto da Silveira. Nunca se provou que os militares interferiram para que o último não vencesse. Não estranhar-se-ia se houvessem interferido, afinal não teria sentido permitir que o governador eleito fosse do mesmo partido do “recém-deposto” Mauro Borges. Falecido em 2006, Lage já havia dado declarações que davam margens a um pensamento nesse sentido.
Em entrevista dada ao escritor e jornalista Hélio Rocha e publicada em seu livro “Os inquilinos da Casa Verde”, o ex-governador disse: “Esta [sua eleição] aconteceu exatamente porque houve uma revolução, houve uma mudança no processo de escolha, da forma de votar, com menos comando dos colégios eleitorais. E para mim foi uma surpresa, apesar de ser filho de político tradicional”, declara.
Porém, como aponta o ex-governador Irapuan Costa Junior, é mais certo que a presença militar tenha ofuscado o desejo de vitória por parte da oposição. “Peixoto da Silveira não quis investir em campanha. Acredito que ele tenha ficado receoso de fazer uma oposição forte ao regime militar e, caso vencesse, ficar à deriva no Palácio das Esmeraldas, sem o auxílio do governo federal. Dessa forma, fez uma campanha morna, o que não agradou muito à população”, relata Irapuan.
O inquilino proveniente da antiga capital
Leonino Di Ramos Caiado nasceu na antiga capital, Cidade de Goiás, dez dias antes da inauguração da nova capital, Goiânia. Engenheiro formado pela Universidade de Minas Gerais, em Ouro Preto, foi o fundador e primeiro presidente da Companhia de Habitação de Goiás (Cohab). Escolhido –– a contragosto do então governador Otávio Lage –– para ser o prefeito de Goiânia, após a cassação de Iris Rezende, em 1969, Caiado acabou por ganhar mais atenção do então governo do presidente Emílio Garrastazu Médici e foi o escolhido para ser o novo inquilino do Palácio das Esmeraldas.
Leonino Caiado e seu vice, Ursulino Leão, tomaram posse como governantes de Goiás no dia 15 de março de 1971, em sessão solene na Assembleia Legislativa. A sessão do dia foi presidida pelo deputado Jesus Meirelles, irmão do ex-deputado Olinto Meirelles, e marcou a ruptura afinal com o ex-governador Otávio Lage. Durante a solenidade de posse, o orador que falou em nome da Assembleia Legislativa, Osmar Cabral, inclusive criticou abertamente o ex-governador.
Como se não bastasse, Caiado precisou também lidar com outros contratempos políticos durante sua gestão, principalmente por não garantir às lideranças de seu partido, Arena, cargos de destaque. Para assumir a Secretaria de Assuntos Políticos, por exemplo, o governador buscou alguém da velha guarda da já extinta UDN: José Fleury. Com essa escolha enfrentou a “rebeldia” dos deputados arenistas Tércio Caldas, Genésio de Barros e Luiz Menezes. O último era o favorito do ex-governador para substituí-lo.
Fora isso, suprimiu a escolha, por meio de voto direto, do prefeito da Cidade de Goiás, o que causou grande insatisfação dos políticos de sua cidade natal. O motivo utilizado para supressão da escolha foi a prerrogativa de que o município era uma estância balneária, garantida pelo governo federal. E por último precisou lidar também com o rompimento de seu primo, o então senador Emival Caiado, aquele derrotado por Otávio Lage nas convenções da UDN quando da escolha do candidato para disputar as eleições de 1965.
Contudo, as desavenças políticas não afetaram o cronograma de obras do governo, considerado por muitos como bem-sucedido. Afinal, é creditada a esse governador a construção de duas importantes obras em Goiânia: o Estádio Serra Dourada e o Autódromo Internacional, obras que desenvolveram a região onde atualmente se concentram logradouros importantes da capital, como o Paço Municipal e o Centro Cultural Oscar Niemeyer.
Fazendeiro, Caiado não poderia deixar também de investir em sua própria área de atuação: a agropecuária. Ao que consta, foram duas as obras de relevância no setor: a reforma do Parque de Exposições Agropecuárias de Goiânia, que ainda funciona no mesmo local até os dias atuais –– para o descontentamento de parte da população; e a implantação do Goiásrural. O programa colocava máquinas e equipamentos à disposição das propriedades privadas a um custo subsidiado. O resultado imediato foi a ampliação da capacidade de área agrícola e de pastagem do Estado, o que provocou o aumento da c produção agropecuária goiana.
Este programa, aliado a outras causas, foi causa de estimulação da imigração sulista para Goiás, que de posse de tecnologia agrícola mais avançada começou a desenvolver no cerrado lavouras de soja com melhor produtividade, uma vez que, até então, pouco se produzia nos solos de cerrado. Em consequência disso, o algodão iniciou seu ciclo de grandes lavouras no sudoeste goiano, o que também propiciou o surgimento das primeiras agroindústrias de soja e algodão no Estado, antes concentradas apenas no arroz e no milho.
Em entrevista publicada pelo escritor e jornalista Hélio Rocha em seu livro, Leonino Caiado diz: “Com o Goiásrural, promovi a importação de 500 tratores que fizeram as estradas vicinais todas, que nós precisávamos para o Vale do Araguaia e fizeram represas, desmatamento, além de amplo atendimento para o pessoal do interior e daqueles que queriam investir em Goiás. Daí que rapidamente Goiás desenvolveu a sua parte de agricultura, porque nós não tínhamos máquinas. Naquela época, fizemos um levantamento e nós tínhamos uns 130 tratores de esteira apenas.” As ações agrícolas do então governador, entretanto, refletiam as políticas adotadas pelo próprio regime militar e que foram efetivadas na década de 1970 com o amadurecimento das políticas agrícolas, principalmente o crédito rural. Como explica o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Cláudio Maia, é a partir do golpe militar que se estrutura um projeto acerca da agricultura no País, pois os militares previam a produção da soja como um componente importante no processo de composição da balança de comércio brasileira.
“Tínhamos uma necessidade de gerar capital até para a formação das empresas multinacionais do Brasil. Precisava-se de dólares para equilibrar a balança brasileira e a soja foi um veículo para garantir isso. Foi a solução encontrada para resolver um problema que afetou o governo de Juscelino Kubitschek. Isto é, com o comércio exterior da soja, os militares equilibraram o país”, conta. E isso, claro, teve reflexos positivos em Goiás, pois deu destino a um latifúndio que antes era tido como improdutivo, por não conseguir produzir no cerrado. As ações agrícolas do então governador, entretanto, refletiam as políticas adotadas pelo próprio regime militar e que foram efetivadas na década de 1970 com o amadurecimento das políticas agrícolas, principalmente o crédito rural. Como explica o professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) Cláudio Maia, é a partir do golpe militar que se estrutura um projeto acerca da agricultura no País, pois os militares previam a produção da soja como um componente importante no processo de composição da balança de comércio brasileira.
“Tínhamos uma necessidade de gerar capital até para a formação das empresas multinacionais do Brasil. Precisava-se de dólares para equilibrar a balança brasileira e a soja foi um veículo para garantir isso. Foi a solução encontrada para resolver um problema que afetou o governo de Juscelino Kubitschek. Isto é, com o comércio exterior da soja, os militares equilibraram o país”, conta. E isso, claro, teve reflexos positivos em Goiás, pois deu destino a um latifúndio que antes era tido como improdutivo, por não conseguir produzir no cerrado.
O início da industrialização
Se no início da década de 1970, Goiás, sendo um estado agrário, era pouco desenvolvido nesse setor, quiçá na área industrial. Eram poucas as indústrias, até porque faltava energia. A região do Vale do Araguaia, por exemplo, tinha energia apenas durante a noite, pois o sistema era ainda movido a motor. Além disso, o “milagre brasileiro”, que impulsionou o crescimento industrial em uma proporção de 18% ao ano, começava a pressionar o desenvolvimento de Estados como Goiás.
Dessa forma, o governador Leonino Caiado deu início a uma prática que é ainda adotada pelos governos atuais: incentivos fiscais. A Lei 7.700, de 19 de setembro de 1978, diz em seu primeiro artigo: “Às indústrias que se instalarem no território do Estado de Goiás, a partir da publicação desta lei até 31 de dezembro de 1978, poderão ser concedidos incentivos financeiros e fiscais, observadas as normas aqui e em regulamento fixadas.”
A lei 7.700 viria a se provocar, mais tarde, a criação do Fomentar. Logo, é possível afirmar que essa ação alavancou a industrialização do Estado e ajudou, inclusive, o governador que o substituiu, Irapuan Costa Junior, na criação do Distrito Agroindustrial de Anápolis (Daia).
O engenheiro que iniciou a prática da industrialização goiana
Engenheiro formado pela Escola Nacional de Engenharia, com cursos extracurriculares em engenharia atômica e nuclear, Irapuan Costa Junior deu continuidade àquilo que foi iniciado por Leonino Caiado: a industrialização do Estado. Talvez pelo fato de que três dos quatro governadores eram engenheiros, houve muita contribuição –– seguindo o que foi pelo governo federal –– nos aspectos de infraestrutura estadual.
Costa Junior havia sido diretor-técnico e presidente da Celg durante o governo de Leonino Caiado. Com conhecimento na área, ao ser indicado governador, foi atrás de recursos para eletrificar, por exemplo, o Vale do Araguaia, que ainda tinha energia elétrica gerada a motor. Fora isso, tendo sido prefeito de Anápolis, no governo, optou por instalar lá o Distrito Agroindustrial, que atualmente guia, de certa forma, a industrialização de Goiás.
Aliás, concede-se ao fato de ter sido prefeito de Anápolis sua indicação ao governo, como ele mesmo diz: “Descobri que estava em observação juntamente com outros dois nomes: Manoel dos Reis, então prefeito de Goiânia, e Rubens Guerra, que era o presidente da Saneago. Por uma razão qualquer, acabei sendo apontado como o candidato de preferência do governo federal. O presidente [Ernesto] Geisel e o chefe do Gabinete Civil, general Golbery [do Couto e Silva], devem ter observado minha atuação como prefeito de Anápolis, que era área de segurança nacional. Como essa escolha era completamente sigilosa, nem eu mesmo fiquei sabendo quais foram os critérios que pesaram.”
Empossado ao lado de seu vice, José Luiz Bittencourt, foi diplomado no dia 4 de outubro de 1974 em sessão solene na Assembleia Legislativa sem a presença da bancada de oposição, à época composta pelos deputados Adhemar Santillo, Clepino Araújo, Derval de Paiva, Iturival Nascimento, João Felipe, José Avelino, Juarez Magalhães, Lúcio Lincoln, Luiz Soyer, Ronaldo Jayme e Tobias Alves. Contudo, só tomou posse no dia 15 de março de 1975, tendo como uma de suas principais marcas de governo: a reforma do Teatro Goiânia, cuja inauguração contou com a presença da, à época, famosa bailarina Margot Fonteyn; além da construção do Ginásio Rio Vermelho.
Embora não diga, Costa Junior chegou ao governo por articulação. É certo que o então governador Leonino Caiado não o queria como substituto. Porém, tendo sido nomeado prefeito de Anápolis –– que era área de segurança nacional, devido à presença da Base Aérea e por sua importância econômica e demográfica. Logo, é certo que ele tinha contatos importantes com a cúpula militar.
E no intervalo entre sua diplomação e a posse, Costa Junior se preparou para governar e fez um plano de governo. “Fiz um plano de governo. Trouxe profissionais da Fundação Getúlio Vargas e pus em contato com um grupo de pessoas mais experimentadas de Goiânia. Trabalhamos uns três ou quatro meses nesse plano e fizemos levantamentos por todo o Estado, que naquela época incluía também a área que hoje é Tocantins”, relata.
O fator general Geisel
Ao entrar no escritório do ex-governador Irapuan Costa Junior, logo é possível ver uma sequência de fotos penduradas na parede acima de sua mesa. Todas em preto e branco, elas apresentam ao visitante a proximidade entre aquele sentado logo a sua frente e um ex-presidente do Brasil: Ernesto Geisel.
Um dos responsáveis pela subida do então general Humberto Castello Branco à Presidência, Geisel foi chefe de seu Gabinete Militar. Ele ascendeu ao poder na metade final da década de 1970 já com intenções de abertura, tanto que promoveu, aos poucos, a revogação dos Atos Institucionais, principalmente o 5°. Outro fator que demonstra as intenções de abertura por parte de Geisel foi a garantia dada por ele a certa liberdade de propaganda, algo inexistente desde a edição do AI-5 no fim da década de 1960, embora Geisel tenha utilizado de suas prerrogativas em algumas oportunidades para punir alguns, inclusive um tenente da Aeronáutica envolvido com corrupção em Rondônia.
O presidente permitiu, inclusive, a utilização da TV por todos os candidatos de ambos os partidos –– Arena e MDB –– durante os dois meses que antecederam as eleições de renovação do Legislativo –– assembleias, Câmara e Senado ––, em 1974. Esse fato, aliado ao esgotamento do chamado “milagre brasileiro” e à atuação da esquerda no país, provocou a diminuição da força política governista, uma vez que a oposição conseguiu eleger 16 senadores contra 6 arenistas. Na Câmara, o Arena diminuiu sua bancada de 223 para 199 deputados, enquanto a oposição passou de 87 representantes para 165.
Fora isso, o MDB venceu as eleições nos principais Estados da Federação –– São Paulo, Guanabara, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Pernambuco. Contudo, não deixou ter pulso firme, sobretudo com a chamada “linha dura” militar, representada em seu governo pela figura do general Sílvio Frota, que tentou fazer com Geisel aquilo que Costa e Silva fez com Castello Branco. Isto é, minar o governo e ascender à substituição na presidência, o que tentaram fazer também com Costa Junior em Goiás.
O ex-governador diz que apenas conheceu o presidente Geisel após sua posse. Mas, a partir daí, o contato foi intenso. “Ele veio várias vezes a Goiás e deu um auxílio grande ao governo. Posso citar: a eletrificação do Vale do Araguaia, que foi feita com verba federal; o Distrito Agroindustrial de Anápolis, o Daia; e o transporte de massa de Goiânia, construído a partir do projeto feito pelo urbanista [e ex-governador do Paraná] Jaime Lerner, e que está como foi construído até hoje, quase 40 anos depois”, conta Costa Junior. Uma das ocasiões em que o presidente veio ao Estado foi durante a inauguração da terceira etapa da usina de Cachoeira Dourada.
O ex-governador não esconde a admiração que tinha por Geisel. “Ele era uma pessoa muito preparada. Conhecia o país inteiro e havia sido presidente da Petrobras, logo entendia muito do setor de energia. Era um militar como hoje não existe mais”, diz ele que também aponta Juscelino Kubistchek como um exemplo a ser seguido. “Geisel e Kubistchek tinham uma preparação que nenhum outro presidente teve. Fizeram governos planejados e com visão de futuro. Hoje, não se planeja. Acho que, por isso, nos aproximamos, sobretudo no final de seu governo, quando tentaram derrubá-lo, o que também provocou conspirações por parte da ‘linha dura’ ao meu governo”.
Em seu governo, Irapuan Costa Junior não precisou se preocupar muito com a oposição feita na Assembleia pelo MDB, visto que era minoria, embora ruidosa. Os maiores problemas encontrados pelo governador se deram por divisões dentro de seu próprio partido: o Arena. A chamada “bancadinha” –– composta inicialmente pelos deputados Ibsen de Castro, Clarismar Fernandes, Nelson de Castro, José Adorno, Mário Cavalcante, Sérgio Caiado e Raimundo Marinho, a “bancadinha” terminou 1979 apenas com os três últimos –– atrapalhou, de certa forma, o governo de Costa Junior.
Fora isso, o governador também precisou lidar com os problemas criados pelo secretário de Governo, o ex-diretor do Serviço Nacional de Informações (SNI) em Goiás capitão do Exército Marcus Fleury. Apontado como o principal nome da repressão em Goiás, inclusive como um grande torturador de prisioneiros. Há inclusive uma história de que, no dia de seu próprio casamento, ele teria deixado a festa para ir torturar um militante de esquerda preso no 10° Batalhão de Caçadores (BC).
Contudo, Fleury é apontado por Costa Junior como uma pessoa tranquila e que nunca demonstrou desvio de conduta em suas relações dentro do governo. “Até duvido das afirmações que fazem dele como esse monstro. Ele era meu auxiliar, inclusive com grande influência na minha indicação ao governo. Tínhamos um relacionamento muito bom e sempre o respeitei como o auxiliar competente que era. Mas essa rachadura ideológica nos separou”, diz Costa Junior.
Fleury estava alinhado com o general do Exército que liderava a “linha dura” militar na época, Sílvio Frota. Ele tentava minar o governo de Geisel para se tornar seu substituto. Contudo, Geisel foi mais rápido e o afastou do poder, isolando-o. Foi assim que Geisel conseguiu fazer seu sucessor –– general Figueiredo –– e dar continuidade a sua intenção de promover a abertura política do País, como relata Costa Junior.
“Acontece que o general Geisel, antes de assumir a Presidência, reuniu o Estado Maior e disse que promoveria a abertura política. Creio que ninguém acreditou que seria verdade, mas foi o que ele fez. Assim, começaram as conspirações por parte da ‘linha dura’. E aqui não foi diferente. O Marcus Fleury conspirou para minha queda por meio do SNI. Ele enviava informações, que eram meias verdades, e aquilo foi me enfraquecendo. Pelo menos ele achava que estava me enfraquecendo. O próprio general Figueiredo, que era o chefe do SNI, me alertou sobre as ações dele. Então, o demiti juntamente com as pessoas ligadas a ele. Avisei o Geisel e ele deu todo o apoio”.
Conspiração abortada
O general Sílvio Frota, que era ministro do Exército do governo Geisel, tinha armado a queda do presidente, que sabia das articulações. Assim, já havia um plano para uma possível resistência armada contra a turma de Frota, como conta Irapuan Costa Junior: “Eu conversava muito com o presidente e com o general Golbery. Nós inclusive cogitávamos uma possível resistência do Geisel contra a ‘linha dura’ e se fosse necessária a retirada do presidente de Brasília, tínhamos um plano. Um avião pequeno iria sair de Goiás e descer não no aeroporto, mas em frente o Quartel General do Exército. Afinal, a pista de desfile lá é larga o suficiente para isso.”
Contudo, diz o ex-governador, “ficou tudo no planejamento. No dia da derrubada do general Frota, eu e o Golbery nos falamos bastante”. O contragolpe de Geisel aconteceu no dia 12 de outubro de 1977. O presidente chamou seu ministro a Brasília e o demitiu. Como era feriado nacional, nenhum dos aliados –– muitos do Alto Comando do Exército –– do general estava na cidade. Ele então os chamou à capital federal. Geisel, porém, antevendo essa tática, mandou pessoas de sua confiança esperá-los no aeroporto, o que impediu que Frota os encontrasse e tentasse resistir à demissão.
Ary Valadão: o último governo civil-militar
Ary Ribeiro Valadão tinha 57 anos quando tomou posse como o último governador do período militar de Goiás no dia 15 de março de 1979. Ele subia ao governo a contragosto de seu antecessor, Irapuan Costa Junior, de quem havia sido secretário do Interior e Justiça. O único entre os quatro governadores do período militar que não havia se formado em engenharia. Bacharel em ciências jurídicas e sociais pela faculdade de direito da Universidade Federal de Goiás (UFG), Ary Valadão foi prefeito de Anicuns, sua cidade natal, entre 1947 e 1959.
Era, já nessa época, o principal líder político local e presidente do diretório municipal da UDN. Deputado estadual por dois mandatos, Ary Valadão teve atuação destacada na queda do então governador Mauro Borges no dia 26 de novembro de 1964, uma vez que era presidente regional da UDN. Foi líder do governo na Assembleia Legislativa na gestão de Otávio Lage durante o ano de 1966, ano em que foi eleito deputado federal. Em 1970, fez um curso na Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra. Já no terceiro mandato na Câmara, em 1977, se licenciou para assumir a secretaria estadual no governo Costa Junior.
Valadão, aos 92 anos, continua conversador. Doente, não pôde receber a reportagem. Mas conversou, brevemente, por telefone para dizer que gostaria de falar sobre seus cinco anos no governo de Goiás, mas que, naquela semana, não conseguiria. Com sorte, há registros que tratam de suas realizações, inclusive falas suas referentes às obras que mais gozou realizar. A primeira delas foi o Projeto Rio Formoso, que ainda continua ativo no Tocantins –– à época, todo o território ainda era parte de Goiás. O projeto consiste em utilizar sistemas de irrigação do tipo inundação para cultivo de arroz irrigado no período chuvoso, e subirrigação para soja, milho, feijão e melancia no período seco.
“A duras penas”, narra Valadão em uma entrevista concedida ao jornalista Hélio Rocha, “consegui, através do ministro Golbery a ida dos ministros [do Planejamento Antônio] Delfim Netto e [da Agricultura Ângelo] Amaury Stabile para assistir à colheita e eles ficaram surpreendidos, mas a primeira etapa nós fizemos só com recursos do Estado porque ninguém acreditava no projeto e nem mesmo Goiás, porque a primeira cooperativa nós tivemos que buscar um grupo de gaúchos para assumir”.
Outra realização vista como importante por Valadão foi a construção do Colégio Hugo de Carvalho Ramos, militar desde o ano 2000. No livro “Os inquilinos da Casa Verde”, Valadão relata que a criação dessa unidade escolar aconteceu por ele achar que “Goiás precisava ter um colégio para preparar intelectuais para ocupar posições no governo federal e ajudar Goiás. Daí pensei no Colégio Hugo de Carvalho Ramos. Foi um colégio modelo que teve concurso para os professores e também para a admissão dos alunos. Entravam às 8 e saíam às 17 horas. Lá tinha alimentação, monitor, circuito de televisão e a primeira turma desse colégio saiu e não fez cursinho. Quem queria Medicina, Engenharia, Odontologia, Advocacia passou e eu conheço vários deles”.
Sem êxito em fazer a sucessão
Otávio Lage foi o único dos governadores goianos do regime militar eleito pela população. Governou de 31 de janeiro de 1966 a 15 de março de 1971. Poucos dias depois de sua posse, o governo federal, sob o comando do então presidente Castello Branco, baixou o Ato Institucional n° 3. O AI-3, editado em 5 de fevereiro de 1966, fixou a realização de eleições indiretas para os governos estaduais em setembro e para a presidência em outubro, mas garantiu o pleito direto para o Legislativo no mês de novembro.
Dessa forma, todos os governadores entre ele e Iris Rezende –– eleito em 1983 –– foram indicados pelos militares. Porém, nenhum conseguiu fazer seu sucessor. Por quê? Nem mesmo os governadores sabem dizer. Mas é uma coisa é certa: eles julgavam serem mais fortes. Otávio Lage foi substituído por Leonino Caiado. Mas não porque quis. É certo que ele preferia nomes como o de Joaquim Guedes Amorim e Luiz Menezes. Porém, sem unção de Brasília, nenhum dos nomes prosseguiu para o Palácio das Esmeraldas.
Em entrevista publicada pelo escritor e jornalista Hélio Rocha em seu livro “Inquilinos da Casa Verde”, Otávio Lage diz: “O Leonino era companheiro nosso, meu auxiliar, auxiliar de importância. A única restrição era aquela ocupação que o Castello me falou: ‘olha, nem Ludovico nem Caiado’. Achava que era um tronco que deveria ser afastado, mas que eles fossem defeituosos, um tipo de imagem que dava o Estado, por que só Ludovico e só Caiado, né? Eu já era uma exceção, então achava que se ficasse, era até bom continuar assim. Quer dizer, um sangue novo, uma mentalidade nova. Não pensariam igual a mim, mas seria diferente o que eu acho que nós tivemos. Eu gosto demais do Leonino, então eu achava que ele daria certo lá por causa dessa preocupação do próprio Castello, que se não tivesse morrido, talvez a história de Goiás fosse diferente”.
Já Leonino Caiado, quando da escolha primária de seu substituto, havia três nomes: Manoel dos Reis, Rubens Guerra e Irapuan Costa Junior. Desses, segundo consta, o que estava em pior condição era o último, então prefeito de Anápolis. O governador tinha preferência por Rubens Guerra, como aponta o próprio Costa Junior: “Eu diria que o Leonino tinha maior simpatia pelo Rubens Guerra, mas não tentou criar nenhum obstáculo à minha chegada. Pelo contrário, eu havia sido seu auxiliar, na Centrais Elétricas de Goiás, a Celg, e foi ele quem me indicou para a Prefeitura de Anápolis, quando a cidade foi transformada em área de segurança nacional. Desse modo, não houve obstáculo por parte dele”.
Costa Junior, por sua vez, também teve suas dificuldades em indicar seu substituto. Ele queria o então deputado José de Assis. Mas quem veio foi Ary Valadão, que havia sido secretário de seu governo. Veio a contragosto e, pior: em seu governo, tratou de afastar seu antecessor logo que pôde. Com a saúde debilitada, o ex-governador não pôde receber a reportagem. Costa Junior, porém, esclarece que, embora quisesse outro, não criou dificuldades para a posse de Ary Valadão.
Ele, aliás, foi o único em cuja indicação ficou clara sua articulação. Ary Valadão era amigo do general Golbery do Couto e Silva, chefe do Gabinete Civil do governo Geisel. Em entrevista publicada pelo jornalista e escritor Hélio Rocha, em seu livro “Inquilinos da Casa Verde”, o ex-governador esclarece: “O peso na minha escolha residiu exatamente no poder que tinha de decisão, na cúpula governamental do País, meu compadre Golbery do Couto e Silva. Já éramos amigos há tempos, havíamos tido contatos permanentes. E, na verdade, minha amizade com ele influiu decisivamente na escolha do meu nome para o governo do Estado.”
E a articulação se deu da seguinte maneira: Ary Valadão pediu a Golbery uma audiência com o presidente Geisel, por volta de 30 dias antes da escolha definitiva do governador de Goiás. Nessa visita falou sobre as políticas econômica e internacional (certamente orientado por Golbery, pois Ary não entendia do assunto), pois o presidente havia voltado há pouco tempo da Alemanha. Após a explanação providencial de Valadão, Geisel perguntou se era candidato ao governo, e ele respondeu que sim. “Como em conversa militar se usa dizer que se cumpre missão, eu disse que estaria pronto para cumprir a minha, caso fosse escolhido”, relata o ex-governador.
Processo repressivo sem ligação direta com os governos estaduais
Durante o mandato do presidente Emílio Médici –– 1969 a 1974 ––, ligado à “linha dura” militar, as restrições às liberdades públicas e as denúncias sobre violação dos direitos humanos haviam atingido níveis inéditos em relação a seus antecessores. Talvez devido a esse fator, o período em que Leonino Caiado –– 1971 a 1975 –– esteve no poder é apontado como o mais repressivo dos quatro governos. Sua gestão marcou o maior número de desaparecimentos em Goiás, entre os quais constam nomes famosos como: Divino Ferreira de Souza –– o Nunes –– que, envolvido na Guerrilha do Araguaia, desapareceu na região do Bico do Papagaio; José Porfírio de Souza, que sumiu, em Brasília, e seu filho Durvalino Porfírio de Souza, desaparecido em Goiânia. Todos em 1973.
Porém, é necessário dizer que a repressão não dependia muito dos governos estaduais, visto que era realizada, sobretudo, pelo Exército. Isto é, pelo governo federal. Isso não significa, obviamente, que os governadores saíram isentos da repressão aos chamados subversivos. Prova disso está na fala do próprio Leonino Caiado, em entrevista publicada pelo jornalista Hélio Rocha: “Eu não podia admitir perseguições políticas, embora isso me fosse cobrado a todo momento. Criei muitas inimizades dentro das próprias bases porque o pessoal me cobrava perseguições políticas porque a vendetta era, na verdade a grande coisa e eu não podia admitir isso. Então, consegui levar, graças a Deus, dentro de um clima que eu achava certo, de opinião mais livre”, afirma em entrevista publicada no livro “Os inquilinos da Casa Verde”.
Já Irapuan Costa Júnior, apontado por ter conduzido o governo de forma moderada, diz que tinha, em relação aos grupos de esquerda, “uma separação completa”. “Era época da Guerra Fria, da Guerrilha do Araguaia, etc. Nunca tive conflitos diretos com essas pessoas, mas estávamos de lados opostos. Eu era uma pessoa preparada para qualquer tipo de situação, inclusive tentativas de sequestro. Tanto que o episódio mais grave que tive não foi com os comunistas e sim com um agente da própria SNI. Ele estava me seguindo no Rio de Janeiro e o prendi de revólver na mão. Achei que fosse um sequestrado”, declara.
Sobre a repressão realizada pelo militares, inclusive as mortes e torturas, o ex-governador é enfático ao dizer que o clima, à época, era tenso e que os grupos de esquerda “não brincavam em serviço”. “Havia atentados armados. As pessoas de esquerda, que hoje posam de heróis e democratas, não brincavam. Eles eram perigosos e nós vivíamos preparados para todo tipo de situação. Quando se fala em ‘Anos de Chumbo’ é por conta do pessoal de esquerda. Foram eles que trouxeram o chumbo de países como Cuba e China. Ou seja, um grupo de jovens que vieram armados para tentar derrubar um exército. Uma estupidez enorme. Então, morreram”, relata Costa Junior.