Na Lava Jato, a hipocrisia ganha salvaguarda da imprensa a serviço de interesses nada republicanos

14 abril 2017 às 11h17

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Afinal, se somos todos hipócritas em maior ou menor grau, como sentenciou o patriarca da Odebrecht, por que não assumir de vez o teatro?

Elder Dias
É um texto para falar de Operação Lava Jato e de hipocrisia. Mas antes é necessário voltar no tempo. Trinta anos atrás, o Brasil ainda recomeçava seu caminho na democracia, após 21 anos sob governos militares dos mais variados matizes, da truculência extrema à dissensão da abertura. O presidente era José Sarney, que já afundava seu governo com planos econômicos tão mirabolantes quanto malsucedidos; Michel Temer era suplente de deputado federal prestes a assumir a cadeira; Luiz Inácio Lula da Silva iniciava seu primeiro e único mandato como deputado federal de um PT ainda radical no socialismo e que só tinha uma prefeitura de capital – Fortaleza, com Maria Luiza Fontenele; Marcelo Odebrecht era ainda um adolescente de 16 anos que não tinha nem prestado vestibular para Engenharia Civil.
Muita coisa mudou, desde então, nessas três décadas. Basta ver o que se tornou cada um dos personagens do parágrafo acima: Sarney se aposentou da política como “dono” de dois Estados, Amapá e Maranhão – este considerado o mais pobre do País; Temer é o presidente da República após um impeachment controverso que lhe deu o poder, mas com o claro compromisso de assumir a agenda da chapa derrotada nas eleições de 2014; Lula é ao mesmo tempo ex-presidente, pré-candidato, réu da Lava Jato e possível inquilino da cadeia da Polícia Federal em Curitiba; lá já está o bilionário Marcelo Odebrecht, cumprindo pena de 19 anos e quatro meses por corrupção ativa, lavagem de dinheiro e associação criminosa.
Mas nem tudo é tão diferente daqueles longínquos anos 80. Basta tomar a recente declaração do pai do então garoto Marcelo, Emílio Odebrecht: “O que nós temos no Brasil não é um negócio de cinco anos, dez anos atrás. Nós estamos falando de 30 anos atrás. É um negócio institucionalizado. É uma coisa normal. Em função de todo esse número de partidos.”
As aspas são do depoimento dado pelo ex-presidente da construtora Odebrecht, Emílio Odebrecht, no acordo de delação premiada, a procuradores da Lava Jato. Ele falava de como o conluio entre políticos e empresas – uns recebendo propinas e caixa 2, outras financiando campanhas para receber benesses em licitações – é antigo e solidificado. Talvez o veterano Emílio tenha sido até condescendente: embora tenham ocorrido no período silenciador da ditadura, obras faraônicas como a Rodovia Transamazônica, as usinas hidrelétricas de Itaipu e Tucuruí e a Ponte Rio-Niterói têm sobre si consideráveis suspeitas de corrupção, fato que pode ter originado a fortuna de muita gente. O próprio general Ernesto Geisel confessou, com registro em livro, que a corrupção nas Forças Armadas era “tão grande” que a única solução para o Brasil seria “fazer a abertura”.
Arrecadar recursos para o partido, para os políticos, para o caixa de campanha. Emílio diz que “isso é há 30 anos que se faz (na política)”. E, como ele admite, é difícil, nesse contexto e depois de tanto tempo, “as coisas não passarem a ser normais”. Mas tem algo que ainda o surpreende – e o incomoda –, diante de todo o quadro: o comportamento da imprensa “tratando isso como se fosse uma surpresa”.
Aqui chegamos a uma palavrinha interessante, de origem grega, cunhada para o ato de os atores usarem máscaras de acordo com o papel que encenavam numa peça. A alguém que oculta a realidade atrás de uma máscara de aparência a Grécia antiga deu o nome de “hipócrita”. Magoado com a sanha dos órgãos noticiosos pelas novidades da Lava Jato, Emílio não tem dúvidas em apontar a hipocrisia da imprensa. Afinal, em que país viveram os repórteres durante essas três décadas?
Com a divulgação dos nomes da política arrolados pelo ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), e que serão investigados a partir da delação de seu filho Marcelo, dos outros executivos da Odebrecht e de si mesmo, o empresário coloca em xeque esta questão: a imprensa participa do jogo e o jogou tal como lhe interessava durante muito tempo.
E basta ver, pela intensidade, maior ou menor, com que os principais veículos de comunicação do País se dedicam aos personagens envolvidos, qual é o nível de interesse em relação a cada um. A defenestração do PT e principalmente de seu cabeça, Lula, é algo evidente e que seria até normal, já que há uma tendência – não apenas da imprensa, mas do ser humano em geral – em sapatear sobre a onça morta. Curiosamente, a “jararaca” – como o próprio petista se denominou, quando saiu da ação coercitiva que lhe foi encomendada pelo juiz Sérgio Moro, no ano passado – está viva, dizem as pesquisas de intenção de voto.
Por outro lado, a grande novidade da lista de Fachin talvez seja a presença do nome do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (PSDB), cuja ocorrência não deveria surpreender, haja vista que – como disse Emílio Odebrecht – a ação de dilapidação da moral em troca de favores entre políticos e empresas ultrapassa os governos petistas e chega ao de Sarney e de Fernando Collor – também citados e investigados. Por que seria diferente com o de FHC, tendo os mesmos personagens em tela?
Sim, a imprensa tem sido hipócrita. A criminalização do PT como “o partido corrupto” não se sustenta mais, mas o PT continua a ocupar o centro do noticiário da Lava Jato, mesmo que a novidade venha dos demais partidos. Não há nenhum petista no ministério de Michel Temer e lá há oito ministros investigados – inclusive os companheiros de primeira hora Moreira Franco (Secretaria-Geral da Presidência), o “Angorá” da lista da Odebrecht, e Eliseu Padilha (Casa Civil), o “Primo”. Da parte do PSDB, são oito senadores e um governador sob investigação, entre eles os três candidatos nas últimas quatro eleições (José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves).
E assim, pela via da hipocrisia, se constroem, na falsa democracia dos meios de comunicação, as desculpas para os grandes transtornos: o governo Temer, com seus oito cabeças investigados, não pode sofrer crise de governabilidade, porque isso pode atrapalhar as “importantes reformas” – votadas por um Congresso com a credibilidade dos Irmãos Metralha; as empresas atingidas por escândalos não podem ser fechadas, porque causariam um impacto incomensurável no já alto índice de desemprego do País; as leis ambientais tem de ser mais flexíveis para não segurar o PIB do agronegócio. A partir disso fica uma dúvida no ar: seria honesto incluir também a indústria da multa como salvaguarda dos que atropelam as leis de trânsito nas ruas?
Afinal, somos todos hipócritas, em maior ou menor grau, sentenciou Emílio Odebrecht. Por que não assumir de vez o teatro?