Há 19 anos ocorria a desocupação do Parque Oeste Industrial, que marcou não só a vida de adultos, mas também de crianças de mais de 3,5 mil famílias. Mesmo depois de anos, a ação militar autorizada pela Justiça durante o governo Marconi Perillo, considerada um dos episódios mais violentos e marcantes de Goiás, ainda segue fresca na memória dos moradores expulsos da terra privada.

Tudo começou em maio de 2004, quando foram erguidas as primeiras barracas na área particular. Nove meses depois, as casas se multiplicaram e deram origem a residências de alvenaria. A evolução foi acompanhada de perto pela população e pela imprensa até que, nove meses depois, houve a operação para desocupar o terreno.

Era manhã do dia 16 de fevereiro de 2005, quando máquinas para demolição levaram abaixo as paredes das últimas casas da ocupação. Quando as famílias foram retiradas do local, no que ficou conhecido como “massacre do Parque Oeste”, pouco se sabia sobre que destino que teriam. 

“No dia da desocupação, eles [policiais] desligaram a nossa energia e nos deixaram sem comunicação. Todos os direitos humanos foram violados naquele dia e toda a ação foi violentamente desumana, criminosa. Nosso barracão foi derrubado com tudo dentro, sai só com a roupa do corpo e uma sandália”, explicou a empreendedora Eronildes Nascimento, de 46 anos.

A mulher integrou uma das primeiras famílias a ocuparem a região. Na época, com 27 anos, ela se mudou para o local com o marido, Pedro Nascimento da Silva, e o filho, após saírem do Setor Pedro Ludovico em busca de moradia própria. Pedro, então com 27 anos, foi uma das vítimas fatais da intervenção militar.

Além dele, Wagner da Silva Moreira, de 20 anos, também foi baleado e morreu durante a ação. Os dois foram velados no dia seguinte na Catedral Metropolitana de Goiânia, mesma data em que a casa da viúva Eronildes foi demolida com tudo que havia dentro. Ao todo, 14 pessoas ficaram feridas no cumprimento das ordens judiciais, uma delas paraplégica, e 800 foram detidas.

“Meu marido foi assassinado com um tiros pelas costas enquanto corria para se proteger das balas que a polícia atirava contra os moradores. Ele morreu por ter tido a ousadia de lutar pelo direito à moradia. Minha vida nunca mais foi a mesma – são tantos anos – mas até hoje não o que é uma noite toda de sono, ainda escuto barulho de gritos, tiros, bombas e choros”, afirmou.

A empreendedora explica que a ação policial começou 15 dias antes da desocupação. As equipes militares, de acordo com Eronildes, se revezavam durante à noite disparando tiros, jogando bombas e fazendo barulho com as sirenes das viaturas ao redor da ocupação. 

O trauma também se estendeu a Celina Teixeira de Araújo, uma das feridas. A mulher conta que, por falta de opções, decidiu se aventurar na ocupação devido a dificuldades financeiras, não conseguindo mais arcar com aluguel e tendo dificuldades em alimentar a família. Recém divorciada e com dois filhos, Celina foi uma das primeiras moradoras da ocupação.

Questionada se valeu a pena a luta e se teria se arrependido de ter participado da invasão, Celina, assim como Eronilde, foi direta: não. Para as mulheres, mesmo com toda a perda, conquistar a casa própria era um sonho antigo e, até então, impossível.

“Quase morri durante a operação. Levei um tiro no boné, que chegou a perfurar. Por pouco eu não fui morta, foi um milagre. Fizemos barricadas, mas quando a polícia invadiu a gente precisou correr para lotes vizinhos. Me cortei bastante nos arames farpados, mas não me arrependo de forma alguma. Temos que lutar pelo que queremos”, contou.

Eronildes e o marido Pedro enquanto moravam na ocupação | Foto: arquivo pessoal

Abrigos desumanos 

Depois da ação de expulsão, para a maior parte das famílias, a única alternativa era permanecer ali até a desapropriação, quando seria criado o bairro Sonho Real, como se chamava a ocupação. Isso, no entanto, não ocorreu e assim aquelas pessoas foram abrigadas durante meses em dois ginásios de Goiânia, nos bairros Capuava e Novo Horizonte. 

Depois, houve a transferência, a princípio temporária, para o Acampamento Grajaú, no setor de mesmo nome, que abrigou os sem-teto durante quase dois anos. Posteriormente, foi criado o Residencial Real Conquista, em 2006, a fim de garantir o direito de moradia às famílias de forma definitiva. 

Porém, só depois de quase 15 anos, no final de janeiro de 2020, 464 famílias que viveram na ocupação finalmente receberam escrituras das casas. A entrega foi feita pela Agência Goiana de Habitação (Agehab), do Governo Estadual. Ao todo, o órgão construiu mais de 2.400 unidades habitacionais no Residencial Real Conquista, no período de 2007 a 2014. A falta de infraestrutura básica dos imóveis era visível. 

“Recebi minha casa sem água, sem energia e na poeira. Ficamos quase um mês nessa situação. Íamos para o córrego tomar banho, lavar vasilhas, roupas. E quando começou o período chuvoso, a enxurrada que descia do setor de cima entrava toda na minha casa”, diz a agente comunitária de saúde Edna Maria Rodrigues, de 49 anos, que viveu por 10 meses na ocupação junto do marido e três filhos.

Mulher e criança feridos durante ação militar | Foto: reprodução/documentário Sonhos, Verdades e Mentiras

Infância e adolescência 

A desocupação, a migração para os abrigos temporários e o começo desafiador nas novas moradias impactaram diretamente a vida das crianças. A publicitária Marcela Guimarães da Silva, de 25 anos, tinha 7 anos quando presenciou o “massacre”, como ela descreve. 

Mesmo criança, a jovem natural do Maranhão, diz que se lembra de toda a ação policial e governamental. Eles ficaram por quase um ano na propriedade privada depois de serem despejados de uma residência de aluguel.

“Este acontecimento norteou muitas coisas na minha infância e adolescência, como educação, ciclo social e formação. Três anos depois da desocupação, a moradia foi concedida a minha família, que é onde os meus pais moram hoje. O que eles reivindicaram, lutaram, conseguiram. Acho que se meu pai soubesse, ele não passaria por aquilo tudo de novo. Tenho certeza que procuraria outro método”, disse.

Marcela ao lado dos irmãos e da mãe que ainda vive no Setor Real Conquista | Foto: arquivo pessoal

Documentário 

A desocupação virou assunto de documentários que, inclusive, foram apresentados a nível nacional e internacional. Um dos exemplos é a produção “Sonhos, Verdades e Mentiras”, que acompanhou o drama das famílias de novembro de 2004 a fevereiro de 2005. Mais de 100 pessoas foram entrevistadas, inclusive, o ex-deputado federal por Goiás e atual chefe da Secretaria Nacional de Assuntos Legislativos, Elias Vaz.

O cineasta Marcus Vinas fez parte da equipe responsável pelo documentário. Ela afirma que os profissionais souberam da ocupação e, então, decidiram cobrir e registrar o trâmite. Em um primeiro momento, ele conta que pensavam produzir um documentário sobre o nascimento de um novo bairro em Goiânia. No entanto, presenciaram no que ele chama de “campo de concentração”.

“O dia da desocupação está marcado na minha memória para sempre. Ouvir os policiais gritando faca na caveira, vou beber seu sangue e ver crianças se agarrando aos pais em estado de total terror é uma das imagens indeléveis em minha mente. O que ocorreu depois, a forma como as pessoas foram literalmente depositadas nos ginásios, sem as menores condições de higiene e privacidade, foi muito difícil”, conta.

“O processo de captura foi o mais tocante. Tivemos contato direto com a realidade das pessoas que habitavam ali e era uma realidade dura, de muita necessidade e de muita esperança. Depois da captura dos depoimentos, tivemos que agir muito rápido na parte da edição, pois queríamos exibir o doc no fórum social mundial que estava acontecendo, em Porto Alegre. Por isso há uma série de erros de edição e falhas no desenho de som”, concluiu.

Marcus com o colega enquanto entrevistavam Eias Vaz sobre a desocupação | Foto: arquivo pessoal