Marco Civil da Internet tenta pôr ordem naquilo que se esvai pelo ar

08 abril 2014 às 13h29

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Foram mais de 18 anos sem que haja uma regulamentação direta para a comunicação virtual. Agora a legislação caminha para ser aprovada e sancionada. Como vai ficar a situação no mundo digital?

Elder Dias
A internet no Brasil já é maior de idade. Deixou o círculo fechado das universidades nacionais para começar a entrar na vida dos cidadãos em 1995 e, desde então, causou alterações comportamentais inimagináveis em prazo tão curto — mudanças de hábitos que deixaram a televisão a anos-luz em termos de influência no dia a dia. Hoje em dia, nas cidades, vive-se no ritmo imposto pelo wi-fi, pela banda larga e pelo 3G. A navegação ficou em tempo real, não importa onde esteja: deixa as estações de trabalho, caminha pela rua, entra no carro e chega em casa sã, salva e conectada. A internet mudou o jeito de ser profissional, de aprender e — o mais importante e grave — o de se relacionar.
Ocorre que essa inovação chegou à maioridade sem documento de identidade. São mais de 18 anos sem que haja uma regulamentação direta para o setor, o que, dizem alguns especialistas, tem causado transtornos jurídicos. Para servir de base para esse universo virtual cada vez mais expandido é que o Congresso lida com o projeto de lei 2.126/11, mais conhecido como Marco Civil da Internet, de iniciativa do Poder Executivo e que foi aprovado em 26 de março pela Câmara dos Deputados. Agora no Senado, o projeto será relatado por Luiz Henrique (PMDB-SC) na Comissão de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA). Espera-se que o trâmite transcorra com certa fluidez e que sua sanção pela presidente Dilma Rousseff (PT) se dê ainda neste semestre.
A discussão não é nova. A proposição do Marco Civil teve como um de seus primeiros defensores o professor Ronaldo Lemos, da Fundação Getúlio Vargas (FGV). Doutor pela Universidade de São Paulo (USP), ele é também especialista na área tecnológica e trabalha com temas como internet, mídia e privacidade. Em 22 de maio de 2007, na “Folha de S. Paulo”, Lemos publicou o artigo “Internet brasileira precisa de marco regulatório civil”, que acabou por se tornar uma espécie de ponto zero na discussão. Nos anos seguintes houve algumas discussões e uma primeira fase dos debates — que colheu mais de 800 sugestões — ocorreu no espaço de dois meses, entre outubro e dezembro de 2009.
Essa matéria-prima originou a minuta do anteprojeto e foi discutida em debates públicos em abril e maio do ano seguinte. A fase final de elaboração juntou 42 propostas que corriam pelo Congresso e que visavam algum tipo de regramento para o mundo digital no Brasil. Foram geralmente projetos de lei que surgiram após algum caso emblemático na rede, como mais recentemente ocorreu com a atriz Carolina Dieckmann (que teve fotos íntimas expostas na web após deixar no computador pessoal, levado por ela mesma para a assistência técnica, fotos tiradas com seu celular), em 2012; e a descoberta de espionagem virtual dos Estados Unidos após as denúncias do ex-CIA Edward Snowden sobre o sistema de vigilância global da NSA, agência de inteligência norte-americana.
Não se pode dizer, portanto, que sua primeira aprovação no Congresso, não tenha se dado sem discussões mais amplas da sociedade e tempo para maturação. Afinal, foram sete anos desde o “texto-fundador” de Ronaldo Lemos até se tornar a “Constituição da Internet”, como o havia batizado, em 2010, o então ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto. Mesmo assim, há quem discorde do quanto um instrumento como o Marco Civil poderá ser, de fato, inovador. O advogado e professor Frederico Glitz, com doutorado em Direito Privado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) considera que a regulamentação dará diretrizes gerais, mas dependerá de outras regras mais específicas. “O Marco Civil é orientador, deixa mais evidente outras legislações dentro do ambiente mais informatizado. Mas ainda há um caminho a ser construído”, ressalta.
Glitz tem uma visão um tanto cética quanto ao advento do Marco Civil. “O Brasil tem uma tradição de que tudo se resolve na lei, fruto da tradição francesa do Direito. O Marco Civil é mais uma legislação, é o Estado se intrometendo na vida das pessoas. Se isso é bom ou ruim, vai depender de como será isso”, afirma. Ele considera que mesmo o mundo virtual, apesar de suas novidades a cada dia, pode ser interpretado pela legislação já existente, embora admita que o novo instrumento de legislação servirá para deixar mais evidenciadas outras legislações dentro do ambiente da informática. “O próprio caso ocorrido com Carolina Dieckmann mostra que não seria necessário um dispositivo dessa forma.”
Frederico Glitz se preocupa especificamente com os interesses envolvidos e com a aplicabilidade da lei. “É uma ilusão acreditar que tudo vá ser regulado, é uma utopia. Como vamos aplicar uma legislação dessas em um ambiente que não é territorial?”, questiona. O professor do Centro Universitário Curitiba (Unicuritiba) cita o caso de seu Estado, o Paraná, que tem uma legislação de proteção a compras na internet, com regras que, porém, só se aplicam a sites do PR. Uma empresa de Goiânia, por exemplo, pode e consegue fazer vendas sem ser alcançada pela legislação paranaense. Ele considera a aplicabilidade do Marco Civil “complicadíssima”. Pode ser uma lei bonita na teoria, mas bastaria um site deixar de ser hospedado no País para deixar de ser submetido às regras nacionais.” De fato, a tecnologia possibilita que um site possa estar “localizado” na Califórnia pela manhã e à noite ter migrado para o Japão. O advento das informações “nas nuvens” — “cloud computing”, ou computação em nuvem, pela qual o armazenamento se dá por serviços a ser acessados de qualquer lugar do mundo, a qualquer hora, sem prévia instalação de programas ou ter dados arquivados.
Na questão dos interesses governamentais, há o filão da tributação: o Marco Civil pode influir, segundo Glitz, também na questão do pagamento de taxas e impostos. A alta carga tributária é um dos motivos pelos quais empresas como a gigante Amazon, como exemplifica o professor, ainda não atuam de fato em território brasileiro. Para atuar no Brasil, a Amazon ataca “pelas bordas”, negociando com as editoras para ter e-books, direitos sobre reprodução de músicas e vídeos e outras mídias que podem ser negociadas sem ser alcançadas pelo Fisco.
Ele contesta também algumas expressões estampadas na lei. “O artigo 7º do Marco Civil, por exemplo, diz que ‘o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania’ e elenca uma série de vários direitos assegurados ao usuário. Mas como garantir tal situação em um país ainda de tantos miseráveis? Isso ainda é utópico. E como se exerce a cidadania pela contratação de algo que precisa ser pago, como previsto no inciso IV [direito ‘à não suspensão da conexão à Internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização’]?”, questiona. “A própria expressão é estranha nesse sentido, já que acaba se contradizendo, porque é uma lei que é também voltada aos excluídos que naturalmente não poderiam pagar pelo serviço.”
Lei estabelece obrigações de usuários, empresas e governos

No fim do primeiro semestre do ano passado, o aplicativo Whatsapp era desconhecido da quase totalidade da população brasileira. Menos de um ano depois, o programinha de conversação invadiu os celulares — obrigando seus usuários a aderirem aos modelos smartphone, diga-se — e detonou com outra tecnologia “tradicional” (para os padrões de velocidade da internet): os torpedos via SMS.
As mensagens por celular eram uma máquina de fazer dinheiro das operadoras. Atingidas pela inovação, o que poderiam fazer contra a corrente? Em tese, poderiam passar a uma “operação padrão” para derrubar a velocidade do Whatsapp. Uma sabotagem comercial como autodefesa, pouco ética, é verdade. Pelo Marco Civil da Internet, no entanto, esse tipo de manobra estaria vetado: o princípio da neutralidade assegura igualdade de tratamento a todos os clientes e é uma das formatações mais polêmicas da nova lei, que tem fundamentos básicos (veja quadro nesta página) que mudam, ou tentam mudar, a relação hoje estabelecida.
Tanto as empresas, como pessoas e governos terão de emendar passos para se readequar. Há um capítulo especial sobre as obrigações do Poder Executivo com a condução da internet. Em Goiás, a Secretária de Ciência, Tecnologia e Inovação (Sectec) é a pasta-chave para o “caderno de encargos” do Marco Civil. O titular, Mauro Faiad, não se mostra preocupado com as possíveis mudanças. Pelo contrário. “Em Goiás, as tarefas que serão pedidas já estão em execução.”
Faiad enumera os avanços que a administração está implantando na área digital. “Fomos o segundo Estado do País a implantar o programa de banda larga popular [com baixo custo para aquisição de rede pelo usuário], o Goiás Conectado, que já chegou a 250 mil domicílios. Foi um crescimento de 54% de 2011 até hoje”, cita. Entre outras medidas do governo estão a expansão da rede — desde junho de 2011 não há nenhum dos 246 municípios goianos sem acesso à internet, segundo a Sectec — e a inclusão digital, que é suprida pelo trabalho do Bolsa Futuro, programa que já atendeu a 500 mil pessoas.
Outro passo, em avanço, é a desburocratização via digital. “O governo tem por obrigação fornecer facilidades para o cidadão resolver sua vida, pagar impostos ou tirar uma certidão”, diz o superintendente executivo da Sectec, Reilly Rangel. Estudioso do Marco Civil, ele diz que a lei é “importantíssima” e estabelece um ponto de viragem na condução da política para o mundo digital no Brasil. “Há uma legislação que contempla o mundo real. O Marco Civil é uma grande conquista para a parte virtual em que nos inserimos, cada vez mais. É preciso que seja assim para proteger o cidadão no mundo virtual”, afirma.
Advogado e professor em Direito Digital, Rafael Maciel acha que o sucesso do Marco Civil dependerá do Judiciário para ser exercido em sua plenitude. “O tempo de maturação acabou trazendo um bom projeto. Foi aprovado de forma diferente da proposta inicial, como é praxe na democracia, mas sem heresias ou absurdos tecnológicos. Contudo, alguns pontos permaneceram imperfeitos ou trazem alguma preocupação, como a guarda de dados pelos provedores de aplicações de internet”, argumenta Maciel.
Cinco pontos básicos do Marco Civil
Direitos
No artigo 7º, o texto pontua que “o acesso à internet é essencial ao exercício da cidadania”. Pela lei, a rede torna-se ferramenta fundamental para a liberdade de expressão e deve ajudar o brasileiro a se comunicar como lhe convier, nos termos da Constituição. O internauta passa a ter garantia de inviolabilidade da vida privada e até da qualidade da conexão.
Neutralidade
O princípio da neutralidade da rede é, talvez, o grande “pulo do gato” do Marco Civil. Com isso estabelecido, as operadoras estarão proibidas de vender pacotes de internet pelo tipo de uso — algo que não pôde ser evitado, por exemplo, com as TVs por assinatura — ou de discriminar um portal de alguma forma, como na questão da velocidade do tráfego. A “quebra” da neutralidade só se daria em situações extraordinárias: se isso fosse indispensável para a prestação dos serviços ou no caso de priorização de serviços de emergência. Nesses casos, quem estivesse na cadeira de presidente da República precisaria se remeter ao Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel).
Guarda de informações
As informações dos usuários da rede ficam mais resguardadas. Os provedores de internet e serviços serão obrigados a repassar informações pessoais apenas se receberem ordem judicial. Os dados de registros de conexão ficarão mantidos pelo menos por um ano e os registros de acesso a aplicações por seis meses. E empresas que operem no Brasil, mesmo estrangeiras, terão de se submeter à legislação e entregar informações requeridas, sob pena de sofrer de advertência até proibição de atuação, passando por multa sobre seu faturamento e suspensão das atividades.
Responsabilização pelo conteúdo
Quem fornece a conexão não será responsabilizada pelo conteúdo de seus clientes e quem oferece serviços como redes sociais, blogs, vídeos etc. (ex: YouTube, Facebook, Twitter) pode ser culpabilizado, se não retirar o material quando avisado judicialmente.
Obrigações do governo
As gestões públicas (União, Estados e municípios) terão determinações a cumprir e deverão incentivar a expansão e o uso da rede, ensinando os cidadãos a lidar com a tecnologia. Outro passo é a integração dos serviços de governo em ambiente eletrônico para acelerar as burocracias.
OPINIÃO
Uma nova lei ou uma lei a mais?

No decurso da existência da humanidade, alguns fatos viraram ritos de passagem da civilização. São inovações e adventos pelos quais a história virou História: a descoberta do fogo, a invenção da roda, depois a escrita, a pólvora, a imprensa, a eletricidade, a manipulação do átomo, a transmissão via satélite, o computador e, no fim do século 20, a chegada ao mundo virtual, com a comunicação em rede.
Não houve nada mais revolucionário, na última década do milênio passado, do que a chegada da internet. Assim como que não há nada mais premente, neste início de milênio, do que o aprimoramento do uso da rede, com as redes sociais e as ferramentas de pesquisa, como o Google — na elaboração dessa reportagem, o site de buscas foi utilizado dezenas de vezes para consultar currículos, pesquisar imagens e artigos e checar informações.
Os humanos, mesmo os mais isolados, estão cada vez mais enredados pela web. Há procedimentos que não se fazem mais presencialmente, “só pela internet”. A universalização é uma questão de tempo, talvez só alguns anos. Provavelmente o sinal 3G vá chegar antes do que a luz elétrica em muito rincão Brasil afora. Para isso — e pela nossa tradição de botar lei para tudo, como diz o professor Frederico Glitz nesta reportagem —, parecia ser realmente necessário que se fizesse uma legislação específica para este novo mundo. Brasileiro só passou a usar cinto de segurança depois que começaram a cobrar multa e a puni-lo com pontos na carteira.
Fica a pergunta: o Marco Civil, na prática, vai conseguir ser uma “lei que pega”, algo exótico e tão natural neste País? Vai funcionar? Afinal, não há terreno mais escorregadio e cheio de entremeios do que a seara virtual. Bastaria falar de “deep web” [a internet paralela que esconde e protege bizarrices, espionagens e crimes], mas nem é preciso mergulhar tão fundo.
Glitz é cético: “O grande problema é tentar legislar sobre a inclusão tecnológica, porque a legislação é obsoleta já quando é publicada.” De fato, quando o Marco Civil for sancionado novos desafios já terão sido colocados em pauta. Se o mundo moderno se movimenta em velocidade que espanta, com seres e máquinas multitarefas, o ambiente da internet consegue servir de locomotiva para esse deslocamento se acelerar ainda mais.
O Brasil é um país em que tudo precisa estar no papel. O que vale é o que está escrito. A população se acostuma de tal forma com isso que basta ver a divulgação de um crime mais bárbaro para pedir mudanças na lei. Mas como pôr no papel algo tão volátil como o meio virtual? Será a hora de buscar, a partir da “Constituição da Internet”, os parâmetros para tentar escapar da utopia. Ou se aproximar mais dela, o que pode ser até mais interessante. (Elder Dias)