Maior favela do Brasil fica na divisa de Goiás
31 agosto 2023 às 15h49
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Raphael Bezerra e Cilas Gontijo
Ivete Bandeira, 52, é natural do estado do Maranhão e fundou a primeira creche comunitária em Sol Nascente, no Entorno de Brasília. Foi em 2008, quando ela percebeu que, assim como outras mães da região, não tinha com quem deixar os filhos. Na fila para usar o único orelhão da cidade, ela ouviu a aflição de uma mulher que usava o telefone público conversar com o patrão e pedir o dia de “folga”, e se identificou com a situação. “Quando eu cheguei em casa, eu imaginei: tenho espaço na minha casa para cuidar de algumas crianças, então, por que não?”.
A notícia sobre a nova creche de Ivete Bandeira se espalhou e ela precisou recorrer à ajuda da população. “Algumas davam R$ 100, 150 ou 50, mas grande parte não tinha condições”, revela. A filha e o esposo entraram no negócio para ajudá-la, e o local foi sendo ampliado.
Por ter se transformado em um negócio improvisado, a Defesa Civil embargou o local onde Ivete Bandeira acolhia as crianças. Ela conta: “Isso me deixou muito triste, quase desisti, mas recebi forças de Deus e continuamos mesmo assim. Levamos a creche para um local aqui perto onde funcionava o lava-jato do meu filho, onde funciona até hoje, com o nome Pingo de Ouro.”
Atualmente, o espaço não atende somente as crianças, mas também mulheres, que fazem ginástica no local. Ao todo, são 140 crianças e adolescentes, e mais 50 mulheres; em um total de quase 200 pessoas atendidas pelo projeto.
A pedagoga Ellyanna Morais lembra que se apaixonou pelo projeto e pela possibilidade de ajudar outras pessoas e, por esse motivo, não pensou duas vezes. “Acredito que tudo isso ainda vai funcionar do jeito que sonhamos. Eu cuido da parte de projetos e registros junto aos órgãos públicos. Lembrando que não sou remunerada, é meu marido que me sustenta, aqui tudo é por amor à causa mesmo”, diz Ellyanna.
Candidatos aproveitam
Ivete Bandeira fala da dificuldade de obter ajuda governamental, que a tribui à burocracia e ausência do Estado. “Até hoje, não conseguimos todos os registros necessários. A gente convida os políticos para virem conhecer nosso trabalho, mas ninguém vem. Aliás, alguns anos atrás, uma candidata a deputada veio aqui e prometeu nos ajudar. Diante das promessas, nós resolvemos trabalhar pela eleição dela. Mas, como os políticos sempre fazem, essa senhora sumiu e só reapareceu quatro anos depois, e nós a colocamos para correr daqui. Ela não foi reeleita”, conta.
Ivete destaca que as coisas na comunidade vêm melhorando após o desligamento do Sol Nascente da administração de Ceilândia. “Quando era ligada à Ceilândia, a cidade ainda era pior. Nos últimos dois anos, surgiram obras de infraestrutura. O administrador do Sol Nascente, Cláudio Ferreira Domingues, tem procurado ajudar a creche no que ele pode, e surgiram alguns parceiros para o nosso projeto”, conta.
Poeira, lama e lixo
Edmara Rayssa, 23, lavradora e natural do Maranhão, mora na comunidade há três anos com o esposo e os filhos. Com todas as dificuldades, diz com firmeza que não quer mais voltar para o seu estado de origem. Edmara vinha da escola, onde foi buscar um dos dois filhos pequenos, quando parou para conversar com o Jornal Opção.
“Aqui, precisamos de asfalto nas ruas; é muita poeira e lama. Precisamos de creches para deixar as crianças e irmos trabalhar. Em minha casa, somente meu marido trabalha e recebemos uma ajuda do Bolsa Família. Mesmo assim, aqui é 100 vezes melhor que no Maranhão”, informa.
Lucas Moreno (nome fictício) é dono de um comércio de carne em Sol Nascente e denuncia que em frente a seu estabelecimento existe muito lixo na rua, ocasionando a perda de clientes por causa do mau cheiro. “Cara, aqui é muito lixo em toda parte. Olha aí para o senhor ver. É muita poeira na época da seca e muita lama na chuva. É difícil manter o local limpo, mas a gente tenta. Os políticos precisam vir aqui olhar a nossa condição. Nós precisamos de melhorias urgentes”. Lucas garante que, em relação à segurança, não teve do que reclamar até o momento.
Sem ter para onde ir
Lucimar Cavalcante tem 40 anos e é moradora da Chácara Nove, bairro de Sol Nascente. Em sua opinião, falta tudo, porém, não há outro lugar para onde ir. Lucimar vive na localidade há mais de dez anos e conta que somente agora, com a conversão de Sol Nascente para uma Região Administrativa, as obras começam a chegar.
A diarista esperava em um ponto de ônibus há mais de 20 minutos enquanto conversava com a redação do Jornal Opção, e comentou: “A saúde é péssima, só tem dois postos de saúde, mas é muito longe. O coletivo demora muito e, quando chega, enche a gente de poeira, por isso vivo com problemas respiratórios. Não temos segurança, a coisa mais difícil é ver uma viatura passando por aqui. Não temos nenhuma infraestrutura e os políticos só vem aqui em época de pedir votos”, reclama, Lucimar.
O carpinteiro Sebastião Brasileiro Macêdo, de 55 anos é nordestino e morador da Chácara Dois. O homem, que levava as duas netas para a escola, comenta que reside na comunidade desde 2009 e viu o crescimento do povoado. Segundo ele, foi igual a um formigueiro. “Isso aqui cresce até hoje. Parecem formigas. Tem gente de todo canto do Brasil”, disse. “Graças a Deus, depois de 14 anos, estou vendo chegar algumas benfeitorias para nós como, o asfalto, e estão colocando a rede de água e esgoto. Agora, precisam arrumar a coleta de lixo; é muito lixo jogado pelas ruas, e todo o lixo que o povo joga não cabe nas cubas que foram construídas. Também faltam mais escolas”, protesta. Apesar de tudo, Sebastião diz que gosta de morar no Sol Nascente. “Aqui é minha casa, não pretendo sair, ainda verei o progresso dessa cidade. Não gosto que a chamem de favela”.
Desigualdade
A Favela Sol Nascente fica há 35 quilômetros da esplanada dos ministérios e do planejado Plano Piloto, onde está o nono maior Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil. Considerada periferia do Distrito Federal, a região administrativa do DF cresce de forma desordenada. O nível de escolaridade de 45,15% da população é o do ensino fundamental incompleto.
Até 2019, antes de ser uma região administrativa do DF, o conjunto habitacional pertencia à cidade de Ceilândia. Boa parte da população (48%) é oriunda do Nordeste brasileiro, segundo pesquisa de 2015 realizada pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal. ao todo. O estado do Maranhão é a principal origem dos moradores do Sol Nascente, com 19,1% da população vinda de lá. Em segundo lugar está o Piauí com, 18,1%. De acordo com a pesquisa, os principais motivos para a mudança são “acompanhar parentes”, com 47,1% e em “buscar trabalho”, com 17%.
A comunidade do Sol Nascente tomou o título de maior favela da América Latina, deixando para trás a favela da Rocinha no Rio de Janeiro, segundo a classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Apesar de os moradores não concordarem com a nomenclatura “favela”, o instituto tem uma definição precisa para o conceito. O IBGE considera favela qualquer aglomerado subnormal, com no mínimo 51 domicílios, que ocupa de forma desordenada e densa os terrenos e que não possui acessos a serviços públicos essenciais como, água potável, saneamento básico, além de ter baixa qualidade das residências e insegurança quanto ao status das propriedades.
No centro
Avessa à categorização, que considera preconceituosa, a moradora Monique Romeira diz que há ainda muito para melhorar, mas que existe no Sol Nascente um forte sentimento de comunidade. Ela elenca a vontade de lutar por dignidade como um dos aspectos centrais da identidade dos moradores. “Gosto muito do meu cantinho”, conta.
Sem condições de comprar uma casa em uma das regiões com o metro quadrado mais caro do Brasil, Monique Romeira vivia em Ceilândia antes de se mudar para o Sol Nascente. Trabalhando em uma casinha com paredes de madeirite improvisada dentro do Centro Administrativo da Região, ela reclama: “Aqui não é favela. Aqui tem lugares com casas, sobrados, muitas lojas. Como chama isso aqui de favela?”
O local, construído com tapumes de madeirite, abriga ainda uma clínica veterinária pública, que realiza exames e aplica vacinas nos animais da região. Maquinários e materiais para construção dividem espaço com a “prefeitura” que abriga reuniões entre os dirigentes e representantes do Governo do Distrito Federal.
Situação de risco
A região do Sol Nascente, que tinha 7.472 habitantes em 2000, hoje possui mais de 100 mil moradores. Com a expectativa de crescimento populacional de para este ano, a Defesa Civil se preocupa com a remoção das pessoas em áreas de risco. Órgãos públicos debatem a realocação de moradores que construíram onde as obras de infraestrutura devem passar.
Marcela Zago, gerente de Regularização Fundiária da Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Distrito Federal (CODHAB), diz que está trabalhando para fazer a contratação dos serviços de regularização. “Temos, dentro do Sol Nascente, o Trecho 1 e o Trecho 2 que já são regularizados. Mas para fazer a adequação dessas áreas, vamos precisar de uma Lei Complementar para desafetar moradores e indenizá-los”, avalia.
O administrador da região, Cláudio Ferreira Domingues, aponta que algumas construções irregulares obstruem a expansão de obras públicas, como a construção de galerias pluviais e obras de asfaltamento. A discussão passa pelo corpo técnico do governo do DF e da região administrativa (RA), mas enfrenta resistência por parte dos moradores.
Cláudio Ferreira Domingues afirma: “No Novo Horizonte, por exemplo, tivemos uma situação de famílias que foram retiradas pela Defesa Civil, mas que retornaram algumas semanas depois para o mesmo local. A regularização dessas pessoas passa também pela compensação dessas famílias, especialmente com o fornecimento de uma nova habitação”, aponta.
O Coronel Pedro Aníbal, Coordenador de Gestão de Riscos de Desastres da Defesa Civil do Distrito Federal, aponta que há uma evolução das áreas de risco durante o período chuvoso. “Começamos a reclassificar as áreas de risco para atualizar o quantitativo também das pessoas assistidas. Com algumas obras em andamento, como a criação de lagos para reduzir a força da enxurrada, esse número pode reduzir em relação ao ano passado”, garante.