Ainda que muitas vezes seu funcionamento se dê aos trancos e barrancos, a máquina pública precisa estar ativa. A burocracia, tida por muitos – principalmente por empreendedores – como um grande empecilho, na verdade não é um mal em si: ela é necessária para que as rotinas se organizem; para que as irregularidades sejam observadas e corrigidas; e para que as ilegalidades sejam flagradas e neutralizadas. “A lei é dura, mas é a lei”, já diz em latim, desde a antiguidade, o velho ditado.

E quando não existe lei? Ou, pior, quando a lei simplesmente deixa de existir – está “lá” em um dia e, no outro, desapareceu? Parece algo absurdo, mas pode acontecer. O que não pode acontecer é deixar isso acontecer. Mas em Goiânia aconteceu.

Sob a contestação de muitos urbanistas, engenheiros e outros profissionais da área técnica, o novo Plano Diretor de Goiânia foi votado e aprovado pela Câmara de Goiânia e, em 4 de março, sancionado pelo prefeito Rogério Cruz (Republicanos). Na ocasião, ele afirmou que a nova lei era uma “conquista” para “impulsionar o desenvolvimento da capital nos próximos dez anos, com geração de mais empregos”. Em relação ao próprio documento, a Prefeitura poderia ter feito a parte dela para que, pelo menos, sua própria máquina não parasse de andar. Mas não fez.

É que o Plano Diretor, como o próprio nome diz, traça as diretrizes para o funcionamento da cidade em todo seu território e em suas mais variadas atividades. Por isso mesmo, depois de aprovado e sancionado, precisa de leis complementares que ditem de forma detalhada como se darão, na prática, as diretrizes traçadas. A contar da sanção do prefeito, havia o prazo de 180 dias para que a administração municipal enviasse aos vereadores tais leis e que, ainda dentro desse intervalo, elas fossem votadas e aprovadas.

Ocorre que a primeira das leis complementares chegou à Câmara de Goiânia apenas no dia 30 de agosto. Ou seja, no limite do tempo, com total impossibilidade de ser analisada e votada no prazo. O que ocorre a partir daí é que, desde 1º de setembro, não existe mais lei para qualquer obra ou construção na capital. Nenhum processo será aberto, aprovado ou reprovado, sem que haja, antes disso, o trâmite completo no Legislativo municipal.

Ou melhor, não “seria” aberto. É que, após duas semanas nesse limbo jurídico, na sexta-feira, 16, em edição suplementar do Diário Oficial do Município, a Prefeitura, por meio da Secretaria Municipal de Planejamento Urbano e Habitação (Seplanh), baixou a Portaria nº 74, que visa normatizar as regras para a abertura e análise de parte dos processos administrativos que estavam obstaculizados pelo vácuo legal. O documento foi assinado pelo titular da Seplanh, Valfran Ribeiro.

O secretário diz que o processo para discussão das leis complementares acabou tendo um prazo curto para a quantidade de textos a se produzir. “Mesmo assim, não dava para atropelar. Então, fizemos essa discussão em jornadas de debates com as entidades do setor, com o Compur [Conselho Municipal de Política Urbana] e em audiências públicas. No fim, encaminhamos com 120 dias de média, para a Casa Civil”, relata.

A Casa Civil é o órgão por onde têm de passar todos os trâmites relacionados à administração, para que sejam, então, encaminhados ao órgão executivo responsável, ou ao Poder Legislativo. No caso, as leis complementares, depois de recebidas pela Seplanh, foram encaminhadas para a Procuradoria-Geral do Município.

Solução improvisada
O problema é que as leis complementares, das quais a cidade precisa para que o novo Plano Diretor passe a funcionar, só chegaram ao Legislativo no fim de agosto. A solução para o vácuo criado para as maiores emergências foi a portaria, que, apesar de não ter o peso de lei, segundo o secretário não incorre em nenhuma ilegalidade. “Na verdade, o que fizemos foi discriminar o que estava em contiguidade com as legislações”, ressalta. Ou seja, o que foi disciplinado pela portaria diz respeito ao que não foi modificado, no novo Plano Diretor, em relação ao anterior.

No caso, a portaria se refere às atividades econômicas com menores graus de incomodidade (1 e 2) que não seriam afetadas pela lei complementar correspondente, a única aprovada até a semana passada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara de Goiânia. “Esperávamos que o texto [da lei complementar sobre as atividades econômicas] fosse ao plenário na quinta, mas não houve quórum. Então decidimos pela portaria”, disse Valfran.

Dessa forma, a não ser que haja alguma decisão judicial em contrário, os documentos de uso do solo para atividades econômicas especificadas pela portaria – com grau de incomodidade 1 e/ou 2 e que ocupam área de até 90 metros quadrados – serão publicados em até 24 horas, após pagamento da taxa do processo. Já as demais atividades e os pedidos de uso do solo voltados à aprovação de projeto terão de esperar um pouco mais: seus processos serão analisados caso a caso, a fim de verificar se estão de acordo com o novo PDG para, se tudo estiver de acordo, serem publicados.

O advogado Rogério Paz Lima, que por quatro anos foi também diretor legislativo da Câmara de Goiânia – quando do início da tramitação da proposta do que se tornou o atual Plano Diretor –, é bem crítico ao analisar a situação como a Prefeitura as leis complementares. É como se dissesse aos vereadores algo como ‘se virem’. Não tem como discutir nada de forma adequada”, diz. Mais do que isso, ele nota um método na conduta do Executivo: “É tudo em cima da hora. A Prefeitura ‘cria’ a urgência e envia para a Câmara. Foi assim com a tramitação do IPTU, depois com o envio do Plano Diretor e agora, novamente, com as leis complementares”, exemplifica.

O vereador Mauro Rubem (PT), de todos o que faz oposição mais concreta ao governo municipal considera que há descaso do Executivo com a cidade. Para ele, o envio das leis complementares neste momento não corresponde a uma atitude de quem está realmente preocupado com desenvolvimento do município. “Estamos no pior dos momentos. O prefeito foi irresponsável de enviar (os textos) duas semanas antes das eleições”, diz.

Para quem vê “de fora”, a sensação não é a mais confortável. A forma como se dá o processo acaba levantando dúvidas sobre se a conduta é ou não deliberada

Para quem vê “de fora”, a sensação não é a mais confortável. Querendo crer – o que seria, sem dúvida, menos inquietante – que o descuido com os protocolos administrativos não seja proposital, algo que ultrapassaria a linha da negligência, a forma como se dá o processo acaba levantando dúvidas sobre se a conduta é ou não deliberada.

De qualquer maneira, é preciso que a rotina dos procedimentos da Prefeitura, que acabam sempre envolvendo múltiplos interesses e interessados, seja tão transparente quanto bem comunicada ao público. O envio das leis complementares, assim como a votação das mudanças no IPTU e a tramitação da proposta do novo Plano Diretor, é mais um alerta laranja para a administração municipal de Rogério Cruz. Com quase dois anos de gestão e emitindo esses sinais confusos para a população, caso houvesse uma oposição mais numerosa, a situação do prefeito poderia estar se complicando.