Intolerância, um mal que pede mais de si mesmo para poder proliferar
10 janeiro 2015 às 12h37

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Gandhi já dizia ser este um sentimento inimigo da “compreensão correta”. O caso do atentado ao jornal “Charlie Hebdo” comprova o poder negativo que tem o desrespeito ao contraditório
Elder Dias
Um motorista enfrenta o calor e o trânsito tumultuado em uma avenida qualquer de Goiânia. O transtorno é grande para todos, o caos é uma coisa democrática. Assim como o estresse. Enfim, surge alguma folga no meio do comboio e ele pode pelo menos passar à terceira marcha. Mas, de repente, dentro da normalidade daquele distúrbio, o condutor leva uma fechada que o deixa lívido. Do susto à raiva são frações de segundo.
Ato contínuo, ele persegue o carro, até conseguir o emparelhamento, já simultaneamente abaixando o vidro. Estava pronto para soltar o xingatório, quando vê o senhor de idade lhe falar, bem manso: “Perdão, meu amigo, fiz uma besteira ali atrás e quase fiz você bater seu carro no meu, desculpa!”. Desmonta-se instantaneamente toda a ira armazenada na língua-míssil de nosso personagem. O motorista fica sem reação em um primeiro momento e acaba sob a ação da vergonha, em um segundo. Fim de guerra.
Donatien Alphonse François de Sade, mais conhecido como Marquês de Sade, dizia que “a tolerância é a virtude dos fracos”. Vivia em um mundo diferente, com outras demandas, mas talvez já estivesse errado naquele tempo. Mahatma Gandhi, líder da independência da Índia sob o dogma da não violência, tinha outro viés sobre o tema, que lhe era um dos mais caros. Uma de suas frases mais emblemáticas: “A raiva e a intolerância são as inimigas gêmeas da compreensão correta.”
Raiva e intolerância movem ações. Mas apenas da primeira — ainda que tenha como sinônimos termos tão escandalosos como “ira” e “ódio” — se pode extrair algo positivo. Sim, a raiva tem um lado bom: pode potencializar a solução de alguns problemas, talvez faça agir com uma necessária maior rapidez ou levar alguém a produzir mais. Foi a raiva que levou à solução o problema do motorista — embora o desfecho do caso, esse sim, tenha sido imprevisto por ele.
Mas da intolerância não se pode tirar absolutamente nada de positivo. De negativo, muito se colhe. A falta de uma “compreensão correta” citada por Gandhi já vitimou centenas de milhões de pessoas, em genocídios mundo afora. Não há santos nem povo escolhido. Na Antiguidade, a intolerância de judeus e romanos matou Jesus Cristo e milhares de cristãos; na Idade Média, cristãos dizimaram milhares de heréticos, judeus e muçulmanos nas Cruzadas e nos processos da Inquisição; na Idade Moderna, europeus passaram por cima da cultura de povos colonizados em todos os continentes; nos séculos passados, líderes como Hitler (Alemanha), Stálin (União Soviética), Mao Tsé-tung (China), Pol Pot (Camboja) e Leopoldo II (Bélgica) ajudaram essa conta em perda de vidas a chegar à casa de nove dígitos: foram centenas de milhões de mortes nascidas no seio maligno do totalitarismo.
Presidente que liderou os Estados Unidos durante a Guerra Civil e que aboliu de seu país a escravidão, Abraham Lincoln é tido como o autor de uma frase simplificada para uso popular e constante: “Quase todos os homens podem ser resistentes à adversidade; mas se você quer testar o caráter de um homem, dê-lhe poder.” Quer conhecer alguém? Dê-lhe poder. Nesse sentido seria interessante imaginar como teriam sido Hitler, Stalin, Mao e tantos outros sem a mão de ferro. Fossem pessoas comuns, seriam mais do que qualquer amigo, mais radical na militância de certa causa, que se tenha no trabalho, na escola ou na rede social? E o contrário, como seria? Tornar-se um monstro sanguinário é, então, uma questão de oportunidade?
O fato é que o sentimento de intolerância é mais comum do que se possa pensar, embora geralmente não apareça de forma concreta nem faça vítimas físicas. Infelizmente, isso talvez seja por pura falta de oportunidade de dar poder a pessoas comum. Estudos científicos clássicos já mostraram que todo homem tem certo potencial de violência. Uma pesquisa do norte-americano Stanley Milgram verificou que o ser humano só precisa de um pequeno incentivo e uma justificativa para usar sua maldade contida. O poder seria só a cereja do bolo.
Mas poder existe de vários tipos. A comunicação, e então a imprensa em destaque, exerce poder e fascínio. O semanário francês “Charlie Hebdo” virou notícia da forma mais triste na última semana por ser uma oportunidade de um grupo de cartunistas descompromissados com qualquer sentimento politicamente correto desaguar seus pensamentos. Era o poder que tinham para usar as ideias que tinham, nada favoráveis a crença alguma nem a partido algum. Como o exerceriam se, em vez de uma redação, estivessem no exercício de um mandato, no comando do Poder Executivo? Uma pergunta que talvez incomode.
Para os radicais islâmicos, os intolerantes eram Charb, Cabu, Tignous, Wolinski e seus colegas de jornal. A morte do quarteto e de mais oito pessoas na sede do jornal seria, em tese, apenas uma resposta há muito desejada por extremistas islâmicos às publicações que brincavam com símbolos muçulmanos, especialmente a figura do profeta Maomé.
“Brincavam”, aliás, é um termo leve, um eufemismo. Atacados em 2011 pela primeira vez, os cartunistas do “Charlie Hebdo” responderam ao atentado com uma charge de um muçulmano beijando na boca um colega de redação deles. E a frase “O amor é mais forte que o ódio” coroava a ilustração. Humor irreverente, de quem, a seu modo, estava respondendo no mesmo tom. Sem tolerância com a intolerância.
Aqui é preciso deixar claro que não há nada de pessoal do “Charlie Hebdo” contra o islamismo. O jornal tem 45 anos de existência e nasceu fruto de uma crítica a um político icônico da França por ocasião de sua morte, Charles de Gaulle, em 1970. Fizeram uma manchete satirizando o acontecimento em outro veículo e, vetada sua publicação, criaram o “Charlie”. E assim sua equipe passou quatro décadas e meia: lápis e pincéis são sua “metralhadora giratória” — imagem que, sintomaticamente, apareceu em ilustrações-homenagens de cartunistas do mundo inteiro, como reação à tragédia de Paris.
Ideologicamente, o semanário se define como libertário. A partir disso, sobram provocações a todos os lados: do Partido Comunista francês ao extremismo de direita de Jean-Marie e Marine Le Pen, do conservadorismo católico ao fundamentalismo muçulmano, atacam todos os flancos. Uma forma bastante controversa de usar a liberdade de expressão, como se observa em suas capas e em seu conteúdo.
O verdadeiro alvo do terror era os Le Pen; “Charlie Hebdo” foi um inocente útil

Assim como o ataque às torres gêmeas do World Trade Center atingiu muito além de dois prédios e milhares de famílias americanas, também há toda uma simbologia neste terrorismo cirúrgico de Paris. É que na terra que consagrou como lema o tríduo “Égalité–Fraternité–Liberté” (“Igualdade, Fraternidade e Liberdade”), o atentado à sede do jornal foi tratado como uma violação ao terceiro princípio. Foi essa força identitária que levou à adesão ao “Je suis Charlie” — o “eu sou”, “nós somos”, enfim, o “ser” é um verbo cada vez mais em voga para expressar solidariedades fáceis, superficiais e à distância, acentuado pelas redes sociais.
Não será coincidência que o atentado tenha sido planejado pela Al Qaeda. O grupo que revelou Osama bin Laden ao mundo pode não ser tão sanguinário como o Estado Islâmico, que segue seu furor no Oriente Médio, mas sabe como nenhum outro a maneira de pôr o Ocidente inimigo em polvorosa. São terroristas que jogam xadrez. E a aposta em atacar o “Charlie Hebdo” pode ter sido nada mais do que um ótimo pretexto para se disseminar em território francês.
A França é o país mais multirracial da Europa. A conquista da Copa do Mundo em 1998 foi enfatizada por mostrar vitoriosa uma seleção com descendentes de árabes, eslavos, argelinos — como os pais do astro Zinedine Zidane —, entre outros. Mas o fluxo migratório intenso e a crise econômica aumentaram a concorrência entre os nativos e quem chegava.
Nesse meio é que vai florescendo o que há de mais distorcido em toda a democracia francesa: as sandices da Frente Nacional — o partido de extrema-direita, mas com cada vez mais seguidores —, hoje liderado por Marine Le Pen, filha de Jean-Marie Le Pen. Após o ataque ao “Charlie Hebdo”, a página de Marine no Twitter se tornou uma das mais acessadas. Uma de suas declarações deixa claro qual é seu sentimento (e, por extensão, o de quem a segue) pós-ataque: “O islamismo, esse totalitarismo religioso que mata todo dia centenas de inocentes no mundo, declarou guerra ao nosso país. Devemos responder sem fraquejar”, falando à “Folha de S. Paulo” em uma versão estendida de um post publicado na quinta-feira, 8: “Ce sont les islamistes qui ont declaré la guerre à la France” (“São os muçulmanos que declararam guerra à França”).
É preciso reparar que a líder radical não modaliza o discurso em sua declaração: não fala em “muçulmanos radicais”, “terroristas islâmicos” ou algo similar. Segundo ela, foram os “muçulmanos” (“islamistes”), sem qualquer subclassificação, que agiram e, por seu ato, declararam guerra ao país. Atiçar franceses de ascendência francesa contra franceses sem tanto sangue europeu nas veias pode lhe trazer mais votos juntos na próxima eleição, além de acossar ainda mais o atual governo.
É só isso que a Al Qaeda e os terroristas islâmicos querem. Nada mais: a resposta ao terrorismo gera a caça e a guerra que o terrorismo queria provocar. O terror quer sangue para fazer sangue, e isso se faz insuflando o outro extremo. Nesse sentido, pode-se dizer que o “Charlie Hebdo” não foi mais do que um inocente útil em relação ao verdadeiro alvo perseguido pelo ataque: a Frente Nacional e os Le Pen. Seriam eles os que primeiramente a morder a isca da intolerância e reagir com discursos radicais. Em tempo: a “mordida na isca” passa um sentido de vítima do processo que, em realidade, não existe. No intuito de buscar seus objetivos extremistas, os ataques em Paris são ganhos políticos para ambos, terroristas e ultradireitistas.
As autoridades do governo francês ficam em uma situação duplamente complicadora: sem ter escolha que não seja agir e dar resposta, vão sofrer críticas de ambos os lados. Ainda está cedo para saber onde todas essas ações vão desaguar, mas, com a morte dos irmãos Said e Sharif Kouachi, acusados pelo massacre na sede do jornal, já se pode deduzir que os terroristas falarão em vingar o sangue dos “mártires” que vingaram o ultraje a Maomé.
Obviamente, apesar de realmente muitas das ilustrações dos cartunistas do “Charlie Hebdo” serem de mau gosto, apelativas e desrespeitosas — seja com muçulmanos, com cristãos, com judeus e com crenças em geral —, o máximo de justiça por um eventual dano causado teria de ser obtido via processual. Mas é um estado de civilidade a que a intolerância, acostumada a ritos sumários, não consegue se adequar. Então, também não deixa de ser um sintoma o fato de Marine Le Pen querer a institucionalização da pena de morte na França.
Mais do que tudo isso, a intolerância prolifera mais prosperamente ativada por condições de desigualdade. É bom lembrar que a Europa é, cada vez mais — mesmo em crise — uma ilha de bem-estar social diante de uma África colonizada, cuja devastação agora leva a fatura à metrópole. Resta aos antigos donos do continente saber lidar da melhor forma com aqueles refugiados que aportam para lhw cobrar. Fechar fronteiras, cercar embarcações, expulsar famílias inteiras? Tudo isso será só mais fonte de intolerância. E, como foi dito, nunca se conseguiu nada verdadeiramente benigno por aí.
