A mesma população que acredita que “bandido bom é bandido morto” tem medo de ser vítima da PM. Como explicar isso?

Flagrante do momento em que PMs disparam contra carro que Tiago Messias conduzia como refém | Imagem: Reprodução

Em tese, vivemos numa democracia plena desde 1988. Foi quando houve a promulgação da nova Constituição Federal, depois de um regime de exceção de 21 anos seguido de uma eleição de um presidente via Congresso, em 1985, após o movimento Diretas Já, no ano anterior. Mas por aqui ainda não existe a democracia em plenitude, embora seja por isso que qualquer povo anseie – ou deveria ansiar. Em tese.

Em tese também, como em qualquer outro sistema de governo regido por princípios democráticos, o texto constitucional garante às forças policiais o monopólio da repressão e do uso da violência legítima. É um conceito trabalhado por Max Weber há um século e que, no fim, quer garantir que não se possa esmurrar o vizinho porque ele fechou sua garagem – ou vice-versa – ou que populares não amarrem no poste e linchem o pivete que levou a bolsa da senhorinha no ônibus. Por esse princípio legal, querer fazer justiça com as próprias mãos tornou-se usurpação de uma função exclusiva da polícia.

Salvo em casos excepcionais – como a legítima defesa –, é a polícia que deve ser chamada para resolver casos que eventualmente necessitem de uso da força. O “como” essa força deve ser usada pelos agentes é algo regulamentado, justamente para evitar os excessos. Apesar disso, o uso virar abuso nunca foi fato raro, em qualquer lugar do mundo. Pelo contrário, é algo tão comum que é até explicado pelas ciências humanas e biológicas. Baseadas no princípio de que para conhecer o que está dentro de alguém basta lhe dar poder, várias pesquisas sobre o comportamento já comprovaram que o excesso está sempre batendo à porta.

Em países como o Brasil, muito mais ainda. O País passou por uma ditadura tida por alguns como “branda”, mas foi durante ela que a Polícia Militar talvez tenha se tornado uma instituição com uma presunção de poder maior do que caberia dentro das leis. Nos anos de chumbo, ninguém com algum juízo ousaria contestar a ação excessiva de um sargento ou encarar fixamente um soldado. Da mesma forma, como personificações da lei, os policiais se desacostumaram a ser questionados.

Diante disso, é interessante observar dois apontamentos de uma mesma pesquisa, do Datafolha, divulgada há pouco mais de um ano, em novembro de 2016, e realizada para o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Em um dos resultados, 57% da população brasileira diz aprovar a máxima “bandido bom é bandido morto”; em outro de seus tópicos, também mais da metade da população diz ter medo de ser vítima de violência por policiais: 53% temem os agentes civis e 59%, os PMs.

São dados que devem ser levados em conta pela discrepância que escancaram: ora, mais da metade emite concordância com a afirmação do parágrafo anterior (“bandido bom é bandido morto”). Assim, infere conceder uma espécie de salvo-conduto para que a polícia decida sobre a vida e a morte de quem é suspeito de algum crime.

Por outro lado, mais da metade da população assume ter medo de ser vítima das ações policiais. Não pode ser que todas as respostas a essa questão tenham sido dadas por bandidos. Disso conclui-se que a polícia – em especial, a PM – é motivo de pavor para grande parte dos brasileiros – até mesmo entre os que acreditam que ela deveria ir além de seu papel institucional.

Muitos dos que temem a polícia, para formar essa imagem, guardam ainda no imaginário resquícios de arbitrariedades sofridas ou testemunhadas no período da ditadura; porém, a maioria dos que têm medo se encontra em uma situação de vulnerabilidade por algum fator: aqui estão, com certeza, os pobres, os negros e os que “moram longe”.

Tiago Messias: vítima de ação desastrosa | Wallacy Maciel: alvejado ao tentar descer do carro // Fotos: Reprodução

Senador Canedo, a 27 quilômetros de Goiânia, foi o “longe” da vez, em um caso desastroso ocorrido no sábado, 25, no qual fica evidente o porquê de tanta gente ter tanto medo da polícia. O auxiliar de produção Tiago Messias Ribeiro foi levado da porta de casa em seu carro, tomado como refém em um assalto. O suspeito era um menor, de 17 anos. A polícia foi informada do caso e uma viatura do Grupo de Patrulhamento Tático (GPT) foi deslocada. Perseguiram o veículo, um Gol branco, e o resultado da ação foi horrível: suspeito e vítima acabaram mortos.

A primeira versão divulgada foi o relatório dos policiais: uma troca de tiros – o que já seria lamentável, tendo em vista os agentes saberem ser um sequestro em curso. O pior veio com a divulgação de imagens de câmeras e gravações de celular: os PMs abriram mão da abordagem de praxe e desceram atirando. Mataram o menor, com vários tiros, e a vítima do sequestro, com uma bala no peito. Depois, forjaram a cena, incluindo disparos feitos contra o para-brisas de dentro do veículo.

Meses atrás a vítima de uma ação totalmente fora dos padrões foi o marceneiro Wallacy Maciel de Farias, que estava sozinho quando foi parado pela polícia e alvejado ao descer do carro de madrugada, em uma rua deserta do Residencial Canadá, na região sudeste da capital goiana. Morreu na hora. Para “esquentar” a versão que iriam sustentar – a de que o rapaz estaria armado e teria se movimentado bruscamente –, uma arma foi ajeitada na mão direita do corpo. Só que o rapaz era canhoto. Drogas também foram espalhadas no veículo. Não adiantou: toda a ação de montagem foi desmontada por câmeras de circuito interno da vizinhança.

Uma queixa muito comum na polícia é justamente pelo fato de se divulgar apenas o que é “negativo” em relação à corporação. Não é verdade: a imprensa corre atrás daquilo que é excepcional, para o bem ou para o mal. Na semana passada, jornais e portais registraram o heroísmo de agentes da Polícia Militar após ver um veículo cair dentro um córrego próximo ao Anel Viário, em Aparecida de Goiânia. Fizeram isso sem qualquer equipamento de segurança, com a roupa que estavam – eram do serviço de inteligência, por isso estavam à paisana. Salvaram da morte três adultos e duas crianças.

Pela Constituição, a segurança é um item de responsabilidade do serviço público. É este o papel da polícia: se tornar instrumento em favor da população quando ela mais necessitar de seus serviços. E, principalmente, da população menos favorecida, aquela que não dispõe de serviço de segurança particular, que não pode blindar seu automóvel, que não tem como encher a casa com um arsenal de câmeras, alarmes e equipamentos antifurto.

É por proteger a vida que a polícia deve ser exaltada, não por matar bandidos. A morte de pessoas em confrontos deve ser sempre vista com ressalvas, no máximo como uma ação que não teve como ser mais bem-sucedida. A polícia não precisa ser objeto de uma fé cega que, mais tarde, pode se tornar uma faca amolada contra o próprio cidadão. l