Em uma cidade já por demais “espalhada”, o que leva políticos a aprovarem novos loteamentos, aumentando o custo dos serviços públicos aos contribuintes?

Residencial Orlando de Morais, antes da pavimentação: a mais de 4 quilômetros do antigo perímetro urbano da capital | Foto: divulgação
Residencial Orlando de Morais, antes da pavimentação: a mais de 4 quilômetros do antigo perímetro urbano da capital | Foto: divulgação

Elder Dias

A semana passada foi de ira para moradores dos setores Orlando de Morais e Antônio Carlos Pires, os últimos bairros no limite norte de Goiânia, já quase na metade do caminho para Santo Antônio de Goiás, a próxima cidade. Revoltados com a situação de abandono da Rodovia GO-462, a única via de acesso, dezenas de manifestantes interromperam o tráfego e queimaram pneus no asfalto.

Exigiam intervenção urgente no sentido de executar, pelo menos, uma operação tapa-buracos. Buracos que eles fizeram questão de contar: aproximadamente 50 grandes “panelas” no trecho rumo ao centro da capital.

Com a deterioração do asfalto, o risco de acidentes de maior gravidade ficou mais alto, principalmente por causa do aumento do fluxo nos últimos anos. A população de lá se sente isolada.

Não tem bairros vizinhos, o que aumenta a vulnerabilidade em relação à segurança; como é ainda uma área habitacional relativamente nova, carece ainda de muitos equipamentos básicos de serviço; a pavimentação asfáltica está com problemas ainda sem ter sido concluída em todas as ruas; o transporte coletivo, ainda mais do que no restante da cidade, opera com precariedade. O conjunto dos fatores faz o sonho da casa própria se tornar, senão um pesadelo, a imposição de sacrifícios individuais e familiares.
Para chegar até o Orlando de Morais é preciso avançar por quatro quilômetros e meio na GO-462, que começa no trevo da Universidade Federal de Goiás (UFG). Até alguns anos atrás, era ali, entre as escolas de Agronomia e de Veterinária, o marco final da extensão do perímetro urbano na região norte da capital. Em outras palavras, o fim da linha da zona urbana do município.

O bairro foi criado em 2008 por meio do Decreto n° 1451, de 16 de junho de 2008, assinado pelo então prefeito Iris Rezende (PMDB). Ele aprovou um projeto de parcelamento prioritário de interesse da Agropecuária Boizinho Feliz Ltda. (como sociedade do cantor goiano Orlando Morais e de sua mulher, a atriz Glória Pires), promovendo uma expansão urbana à base da canetada.

Interesses financeiros à parte — e não se pode descarta-los —, foi uma baita jogada política. A aprovação do loteamento destinaria, por exigência de lei, uma parcela do terreno à administração municipal, para execução de projetos de moradia popular. Algo bem ao estilo de Iris Rezende, que costuma ver primeiramente se a questão se adequa aos interesses eleitoreiros do que observar a pertinência do que está em xeque, em termos de responsabilidade social e urbanística.

Sete anos e meio depois da aprovação do empreendimento, já há muita gente morando no Orlando de Morais e no Antônio Carlos Pires. E, como mostra a abertura deste texto, sofrendo as consequências da segregação urbana: a manifestação da semana passada se deu por conta dos buracos da rodovia, especialmente no trecho que segue do trevo de acesso à UFG até os setores.

Fora toda a falta de estrutura de qualquer bairro novo, a distância impõe a necessidade de deslocamento. E o aumento no fluxo dos carros — especialmente para uma rodovia que até tempos atrás tinha trânsito bem menor — vai causar impacto negativo na pavimentação, que provavelmente não estava preparada para tal tráfego. Isso sem falar no risco de acidentes no trajeto.

Essas são só algumas das consequências da falta de inteligência no planejamento urbano. Falta de inteligência? Talvez. Mas pode ser, também, apenas excesso de interesses. Na realidade, isso é uma fatura que acaba cobrada de toda a população; no fim de todo o processo, para dar assistência e estrutura a mais um núcleo criado fora da área “original” do perímetro urbano, o que haverá, por parte da gestão pública é a necessidade de mais dinheiro dos impostos pagos pelo conjunto dos cidadãos investido em obras e serviços. Um gasto que, com o surgimento de uma nova aglomeração urbana em local tão afastado, passa de não previsto a obrigatório.

Está cada vez maior e mais populosa. Mais do que isso, desde sua fundação Goiânia sempre cresceu aceleradamente. Um fenômeno que fez, nos últimos 30 anos, praticamente dobrar o número de habitantes. Novos contingentes chegam a cada dia na cidade, em busca de vida melhor, notadamente migrando de Estados acima da latitude de Goiás.

Sem muitas perspectivas imediatas, essas pessoas e famílias ficam vulneráveis e, depois, acabam pressionadas a se acomodar nas “pontas”, em parte por causa do preço elevado dos móveis, mas também em parte (e em maior parte, no caso) por conta da forma com que se dá a política de ordenamento urbano em Goiânia.

O discurso da “cidade planejada” parece cada vez mais apenas isto: discurso. Longe de alguma efetividade, pelo contrário, surge sempre a sombra de uma nova expansão urbana pairando sobre a cidade. Na Câmara de Goiânia, já há mais de um ano existem boatos de que uma proposta dessa matéria deve chegar à Casa a qualquer momento.

Não é somente esse ponto que vem sendo conduzido de uma forma bastante equivocada pelo poder público. Outra prova da falta de rumo foi a votação da semana passada em que os vereadores da capital aprovaram, ainda em primeiro turno, a desafetação de várias áreas pertencentes ao município. Em outras palavras, deram sinal verde à venda de áreas públicas — o objetivo da Prefeitura de Goiânia é fazer caixa para cobrir o saldo das contas, que insiste em ficar no vermelho.

Abrir mão de patrimônio para pagar dívidas é atitude desesperadora, algo para quem está nas últimas, sem qualquer saída. Não parece ser o caso, já que a situação dos cofres do município já foi considerada pior do que a atual, inclusive pelos atuais gestores.

Expansão urbana é um instrumento que faz parte do planejamento urbano e pode ser usado. Mas, embora cada caso seja um caso, e cada cidade, uma cidade, raramente serve a um interesse social genuinamente legítimo e desapegado de circunstâncias econômico-eleitoreiras.

E Goiânia já é “espalhada” o bastante. Pode se conter em si sem nenhuma necessidade breve de novos parcelamentos. Essa é uma visão quase de “ponto pacífico” entre urbanistas. Mas estranhas coisas acontecem — e podem acontecer a qualquer momento. Inclusive um novo pacote de áreas para expansão.

Prioridade deveria ser desenvolver a ocupação racional de toda a região metropolitana

Vereador Eliaz Vaz (PSB): “Não faz sentido algum falar em expansão urbana enquanto nós tivermos 110 mil lotes vagos em Goiânia” | Foto: Eduardo Nogueira/Câmara de Goiânia
Vereador Eliaz Vaz (PSB): “Não faz sentido algum falar em expansão urbana enquanto nós tivermos 110 mil lotes vagos em Goiânia” | Foto: Eduardo Nogueira/Câmara de Goiânia

Já em sua quarta legislatura na Câmara de Goiânia, Elias Vaz (PSB) não agora se tornou um crítico à forma de ocupação da cidade. Sempre defendeu, como uma de suas bandeiras, a adoção do imposto progressivo para os lotes vagos que ocupam a atual mancha do perímetro urbano, como forma de pressionar seus proprietários a deixarem a especulação de lado e colocar seu terreno a serviço da cidade. Por isso, quando se fala em expansão urbana, sua resposta já vem praticamente pronta: “Não faz sentido algum falar em um assunto desses quando temos 110 mil lotes vagos em Goiânia”, resume.

Mas ele vai além no tema: é preciso discutir o zoneamento urbano não só da cidade, mas de todos os demais municípios que compõem a zona metropolitana de Goiânia. A capital faz divisa com nove — a partir do norte, e em sentido horário, Nerópolis, Goianápolis, Senador Canedo, Aparecida de Goiânia, Aragoiânia, Abadia de Goiás, Trindade, Goianira e Santo Antônio de Goiás. Além desses, outros, como Inhumas e Hidrolândia, influenciam a vida da capital e dela sofrem influência direta. Ao todo, são 20 municípios e uma população de quase 2,5 milhões que interagem.

A questão é como tem se dado essa “convivência” intermunicipal. O transporte coletivo integrado, por meio da Rede Metropolitana de Transporte Coletivo (RMTC), é algo que funciona em teoria, mas deixa a desejar na prática. Entretanto, ainda é uma das poucas tentativas efetivadas de buscar uma forma de diálogo entre os municípios.

Quando se fala em planejamento territorial e zoneamento urbano, porém, tudo vira uma torre de Babel. Cada município tem sua própria lei e o que ocorre, no fim, é a prevalência dos interesses de uma minoria de empresários e políticos (às vezes empresário “e” político) em detrimento de toda a população. Não são raros os relatos — de boato, mas também de fato — de detentores de cargos públicos ligados a empreendimentos imobiliários em sua zona de administração, evidenciando-se um pernicioso e óbvio conflito de interesses.

Esse conluio certamente aparece como pano de fundo em algumas das invasões (ou ocupações) de que Goiânia é alvo por parte de famílias sem-teto. Quando elas começam a ocorrer, logo surge alguma voz na Câmara para sustentar a necessidade de novos loteamentos “porque a cidade não está comportando mais” espaço para as pessoas.

É uma inverdade. Basta voltar algumas parágrafos acima e ler a fala do vereador Elias Vaz (PSB). A solução é relativamente simples, com um pouco de boa vontade das secretarias de Planejamento e de Assistência Social para verificar a situação real dessas famílias das áreas ocupadas e locais possíveis para integrá-las dentro da malha urbana já constituída.

Não precisa ser nem mesmo um terreno amplo. Em São Paulo, por exemplo, o prefeito Fernando Haddad (PT) tem optado pela política de instalar os sem-teto em prédios desabitados do centro da capital. É uma forma inteligente de revitalizar uma área eventualmente degradada e racionalizar o uso do espaço urbano, sem ampliar seu perímetro.

Região metropolitana de Goiânia: é necessário um ação conjunta para resolver a questão do planejamento urbano
Região metropolitana de Goiânia: é necessário um ação conjunta para resolver a questão do planejamento urbano

Falta a solução intermunicipal. Alguns municípios, como Goianira, por exemplo, têm reincidido na prática de aprovar loteamentos na divisa com a capital. É uma forma oportunista de salvaguardar o caixa com os tributos municipais — como o Imposto Territorial Urbano (ITU), o Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e o Imposto Sobre a Transmissão de Imóveis (ISTI) — e repassar os ônus para o vizinho, já que, pela distância entre um núcleo e outro, o cidadão vai fazer a conta e escolher o que pode lhe dar maior retorno, como no caso de um serviço ambulatorial de saúde.

Nesse caso, para dirimir injustiças e distorções, seria necessária a formação de uma comissão intermunicipal para a aprovação de novos loteamentos. Isso poderia ser conduzido por uma pasta estadual que cuidasse dos interesses do Entorno de Goiânia. Até 2014, havia na estrutura do governo a Secretaria Estadual da Região Metropolitana, um canal que mediaria um tema dessa envergadura. Com a reforma administrativa, ela virou só parte da quilométrica sigla da Secretaria de Meio Ambiente, Recursos Hídricos, Infraestrutura, Cidades e Assuntos Metropolitanos (Secima).

Em suma: expansão urbana deve ser um assunto fora de pauta para Goiânia. E o planejamento urbano deve ser um assunto de pauta intermunicipal. A capital não pode mais decidir seu caminho sem conversar com seus vizinhos. Nem eles podem comprometer a cidade polarizadora de seus habitantes. O contrário disso é o caos urbano e, como já tem sido observado, o aumento de fatores de risco à cidadania e à civilidade.