Cepa indiana pode impulsionar terceira onda no Brasil
30 maio 2021 às 00h00
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Pelo menos três Estados já confirmaram transmissões locais da nova cepa, em um total de oito pacientes. Variante se mostra mais transmissível
A Austrália foi um dos países a melhor controlar a Covid-19. Com uma razão de 3,6 mortos por 100 mil habitantes, apenas 910 australianos foram vítimas da doença. Entretanto, a província de Victoria, no sul do país, atualmente passa por um rígido lockdown de sete dias. A medida é uma tentativa de interromper a transmissão da variante B.1.617.1, também conhecida como uma das três cepas indianas.
O chefe de saúde de Victoria, Brett Sutton, disse que a taxa de reprodução da cepa ainda não foi determinada, mas pode ser de cinco ou mais, o que significa que uma pessoa infectada pode transmitir a variante a outras cinco. Para ser classificado como uma variante de preocupação, a cepa deve representar um risco para a saúde pública maior do que o vírus de Wuhan original.
Essa ameaça é medida em termos de mudanças na transmissibilidade (a facilidade com que se espalha), gravidade da doença, sua capacidade de evitar a detecção por testes de diagnóstico viral, eficácia reduzida dos tratamentos ou uma capacidade de escapar da imunidade natural ou induzida por vacina.
As informações sobre o B.1.617 ainda estão sendo levantadas, mas os primeiros relatórios indicam que ele se espalha mais facilmente do que a cepa original. É provável que se comporte de forma semelhante a B.1.617.2, pois é geneticamente semelhante, segundo os registros do NHS Test and Trace (Serviço Nacional de Saúde) inglês.
A medida que os casos aumentam em todo o Reino Unido, as variantes indianas estão assumindo o controle como a cepa do Sars-CoV-2 dominante, segundo a Dra. Deepti Gurdasani afirmou à Sky News. “Não há dúvida de que a variante indiana está assumindo o controle. A proporção de sequenciamentos em muitos lugares no Reino Unido mostram que a variante indiana representa 60% dos casos”.
No Brasil, o cenário pode não ser muito diferente. Embora a falta de vigilância genômica nos deixe no escuro quanto à genética dos vírus que circulam na população, pelo menos três Estados já confirmaram transmissões locais da nova cepa em um total de oito pacientes. Maranhão, Rio de Janeiro e Minas Gerais tiveram casos confirmados da variante B.1.617 até esta sexta-feira, 28.
Euclides Matheucci Junior é doutor em bioquímica e co-fundador da DNA Consult, empresa de biotecnologia especializada em análise genética. Para o especialista, é preciso cautela e medidas rígidas de distanciamento social. “Já completamos mais de um ano nessa triste realidade e ainda não estamos perto de uma solução factível. Além da vacinação lenta, a busca por exames tem diminuído nas últimas semanas. Podemos notar a falta de aderências às normas sanitárias, com shoppings lotados, bares e restaurantes cheios e as pessoas sem máscaras. Estes fatores, juntos, vão produzir sérias consequências”, explica Matheucci.
“É preciso que exista um plano de isolamento social mais firme e uma campanha de conscientização maior para a população, enquanto a vacinação permanece em um ritmo lento. Além disso, as empresas e organizações que estão realizando atividades presenciais devem endurecer as regras dentro do ambiente de trabalho e aumentar o controle de contágio por meio da testagem de seus colaboradores. Se isso não acontecer, dificilmente mudaremos a circunstância em que nos encontramos. A pandemia não acabou, não está controlada e as pessoas ainda estão morrendo”, comenta Euclides.
O que é a cepa indiana
Segundo o cientista, é natural que os seres vivos acumulem alterações em seus genes a cada geração. “São mutações aleatórias”, diz o bioquímico, “algumas são boas para o vírus e outras (a maioria) são ruins porque atingem sequências importantes do material genético do vírus. Acumulamos mutações a cada geração, mas os vírus se reproduzem muito rápido e em grande quantidade, o que faz com que mutações sejam mais perceptíveis em um curto período de tempo”.
O Sars-CoV-2 já acumula centenas de mutações desde seu surgimento, mas Euclides Matheucci explica que aquelas mais preocupantes são as que atingem os trechos de seu material genético (RNA) que codifica e expressa a proteína Spike (ou proteína S). “Essa proteína é responsável por fazer a ligação entre o vírus e o receptor na célula humana. Todos os vírus se ligam às células através de uma proteína específica – eles têm uma espécie de chave que se encaixa em uma fechadura específica”. O pesquisador afirma que uma enzima na membrana de nossas células, chamada ACE2, é a receptora explorada pelo vírus para adentrar as células humanas.
Um estudo brasileiro mostrou que as novas linhagens verificadas no Amazonas (P.1) e Índia (B.1.617) apresentam variações que ocorrem nos aminoácidos da região do gene que codifica a proteína Spike e que altera sua ligação ao receptor ACE2. “Essa mudança faz com que o vírus entre de maneira mais eficiente no receptor ACE2. O vírus se liga com maior facilidade, fica mais infeccioso, e não é prejudicial para o vírus porque altera apenas um dos seus milhares de aminoácidos”, afirma Euclides Matheucci.
O Reino Unido vê um aumento no número de casos sem que o protocolo de isolamento tenha sido alterado. Isso alerta cientistas para um fator que possa explicar o aumento na taxa de transmissão do vírus. O estudo brasileiro que se propôs a analisar as linhagens circulantes em amostras de 37 pacientes de Covid-19 no Brasil encontrou que 13 indivíduos (ou 42% do total) estão infectados com novas linhagens.
Mellanie Fontes-Dutra, biomédica e doutora em neurociência, afirmou sobre o assunto: “Sabemos, por exemplo, que a descoberta e rápida disseminação de B.1.1.7 e B.1.351 destacam a importância de dados abertos e em tempo real para rastrear a disseminação de SARS-CoV-2 e para informar futuras intervenções de saúde pública e conselhos de viagem. Inclusive a nova variante pode fazer com que países de várias partes do globo bloqueiem voos vindos de países infectados. No Reino Unido, o primeiro-ministro Boris Johnson já admitiu essa possibilidade”.
Não há evidências, entretanto, de que as novas cepas do Sars-CoV-2 consigam escapar da imunização produzida pelas vacinas em desenvolvimento, já que para afetar a eficácia de vacinas de forma significativa, mutações têm que afetar várias regiões da proteína. Conforme expõe pesquisa que testou em 20 participantes a imunização produzida pela vacina da Pfizer, pacientes apresentaram respostas imunes equivalentes às novas e antigas cepas do coronavírus.
Mesmo a testagem via PCR-RT (que detecta especificamente o material genético do patógeno) é capaz de encontrar as diversas variantes do coronavírus, explica Euclides Matheucci Junior. “A DNA Consult, que desde 1998 trabalha com análise de DNA e RNA, procura em seus exames de PCR-RT duas regiões do genoma do Sars-CoV-2. Trabalhamos com os genes N1 e N2. São genes estáveis, pois mutações neste trecho do genoma causam a inatividade do vírus. Entretanto, publicações do FDA (equivalente americano à Anvisa) alertam para a possibilidade dos testes não serem capazes de identificar vírus por mutações. É possível que aconteça. Por isso é importante usar bons testes que identificam 2 regiões do genoma do vírus”, conclui Euclides Matheucci Junior.
Vacinas
Segundo um estudo divulgado pela agência de saúde pública do Reino Unido, Public Health England (PHE), no sábado, 22, as vacinas contra a covid-19 desenvolvidas pela Pfizer e pela AstraZeneca são altamente efetivas contra a variante indiana do coronavírus. A pesquisa apontou que os dois imunizantes, ambos em uso nas campanhas de vacinação do Brasil e do Reino Unido, se mostraram quase tão eficazes contra a cepa indiana quanto contra a variante britânica após a segunda dose.
A fórmula da Pfizer, desenvolvida em parceria com a alemã Biontech, apresentou efetividade de 88% contra a doença sintomática causada pela mutação indiana duas semanas após a segunda dose – contra a variante britânica, a efetividade foi de 93% no mesmo estudo. Já o imunizante da AstraZeneca, desenvolvido com a Universidade de Oxford, se mostrou 60% efetiva contra a variante indiana – ante 66% contra a cepa britânica – também duas semanas após a aplicação da segunda dose da vacina.
Além disso, ambos os imunizantes apontaram efetividade de 33% contra a doença sintomática causada pela variante indiana já três semanas após a primeira dose, em comparação com 50% de efetividade contra a cepa britânica no mesmo período. O estudo analisou informações coletadas em todas as faixas etárias desde 5 de abril, para cobrir o período em que a variante indiana, denominada B.1.617, começou a surgir no Reino Unido.
A pesquisa apresenta dados de efetividade das vacinas, ou seja, mede o impacto real do imunizante na população. Os dados de eficácia, por outro lado, avaliam a proteção de uma vacina em testes clínicos, e não na vida real. O artigo ainda não passou por revisão de outros cientistas, nem foi publicado em revista científica.
Mas as descobertas já foram descritas pelo ministro da Saúde do Reino Unido, Matt Hancock, como “revolucionárias”, num momento em que a mutação originária da Índia já se tornou dominante em algumas áreas do país europeu, segundo autoridades de saúde locais.
“Estou cada vez mais confiante de que estamos no caminho certo, porque esses dados mostram que a vacina, depois de duas doses, funciona com a mesma eficácia [contra a variante indiana]”, afirmou Hancock. “Mais de 20 milhões de pessoas, mais de uma em cada três, já têm proteção significativa contra essa nova variante [no Reino Unido].”
Novíssima cepa
O ministro da saúde vietnamita afirmou no sábado, 22, que o país descobriu uma nova variante do coronavírus – um híbrido de cepas encontradas pela primeira vez na Índia e no Reino Unido. Nguyen Thanh Long afirmou que cientistas examinaram a composição genética do vírus que infectou alguns pacientes recentes e encontraram que a nova versão do vírus pode se espalhar mais facilmente do que suas outras versões.
Long afirmou que a nova variante pode ser responsável por um aumento recente no Vietnã, tendo se espalhado por 30 dos 63 municípios e províncias do país. O Vietnã foi inicialmente um sucesso notável no combate ao vírus, registrando pouco mais de 3.100 casos e 35 mortes desde o início da pandemia. Nas últimas semanas, entretanto, o Vietnã confirmou mais de 3.500 novos casos e 12 mortes, aumentando o número total de mortos no país para 47.
A maioria das novas transmissões foi encontrada em Bac Ninh e Bac Giang, duas províncias densas com zonas industriais onde centenas de milhares de pessoas trabalham para grandes empresas, incluindo Samsung, Canon e Luxshare, parceira na montagem de produtos Apple. Apesar das rígidas regulamentações de saúde, uma empresa em Bac Giang descobriu que um quinto de seus 4.800 trabalhadores tinha testado positivo para o vírus.
Na cidade de Ho Chi Minh, a maior metrópole do país, com 9 milhões de habitantes, pelo menos 85 pessoas tiveram resultado positivo em um grupo em uma igreja protestante, disse o Ministério da Saúde. Os fiéis cantaram e rezaram juntos, sem usar máscaras adequadas ou tomar outras precauções. Desde então, o Vietnã ordenou a proibição nacional de todos os eventos religiosos.
Nas grandes cidades, as autoridades proibiram grandes reuniões, parques públicos fechados e negócios não essenciais, incluindo restaurantes, bares, clubes e spas. Até agora, o Vietnã vacinou 1 milhão de pessoas com imunizantes da AstraZeneca. Na semana passada, o país fechou acordo com a Pfizer para 30 milhões de doses, com entrega prevista para o terceiro e quarto trimestres deste ano. Também está em negociações com a Moderna, que lhe daria injeções suficientes para vacinar 80% de seus 96 milhões de habitantes.