Enquanto um veículo da mídia glorifica a tragédia que tem a polícia como emissária,
outro tipifica negativamente a ação dos militares. Como fica o jornalismo?

Favela do Vietnã, local da ação da PM: à margem do Capim Puba e da sociedade | Foto: Tadeu Alencar Arrais
Favela do Vietnã, local da ação da PM: à margem do Capim Puba e da sociedade | Foto: Tadeu Alencar Arrais

Elder Dias

É mais um desses vídeos patéticos dos programas policiais da TV do pós-almoço do meio de semana. De paletó e portando-se como quem vai começar uma pregação (e vai), o apresentador se esgoela para chancelar os cinco cadáveres resultantes da ação da Polícia Militar em uma viela às margens do Córrego Capim Puba, zona central de Goiânia. É o local conhecido como “favela do Vietnã”, um nome que tem sua razão de ser. Calculadamente histérico, o homem faz de seu stand-up um teatro de qualidade nada duvidosa – é ruim mesmo – em total apoio à rasa tese “bandido bom é bandido morto”. Enquanto são mostradas, em close, as faces desfiguradas dos mortos no confronto – só faltaria um “bom apetite!” irônico –, ele esbraveja na tela.

“Aqui não tem esse negócio de defender bandido, não!! ‘Ah, tem de investigar’, é o cacete!!! Tem de mandar ainda mais vagabundos para o inferno!!! Foi pouco!!!”. Poucas talvez sejam também as exclamações aqui colocadas em comparação ao destempero planejado do showman. Que, então, acende uma vela preta, comemorando a ida dos cinco homens “para encontrar o satanás”, e começa uma espécie de ritual satânico-pastelão, cantarolando, com um simulacro de voz gregoriana:

— Esses cinco vagabundos vão roubar mais algué-ém?
Uma claque improvisada do próprio estúdio responde:
— Nã-ão!
E segue na melodia trôpega:
— Esses cinco vagabundos vão trocar tiros com a Rota-am?
— Nã-ão!
— Esses cinco vagabundos vão sair por aí tirando vida de inocen-tes? Vão trafica-ar? Vão dançar na boquinha da garra-fa? Vão dançar fun-k?
— Nã-ão! Nã-ão! Nã-ão! Nã-ão!

Por fim, o homem de paletó preto e camisa azul sopra a vela, enquanto tocam o verso “quem não for filho de Deus tá na unha do capeta”, da música “A Coisa Tá Feia”, eternizada por Tião Carreiro e Pardinho. Seria apenas funesto se tudo não fosse muito sem noção. Sem noção de humanismo, sem noção de jornalismo, sem noção do mais básico bom senso.

Não é essa a visão de polícia que a população precisa. E se esta parece querer – os programas policiais trazem consigo essa inferência por causa da audiência que alcançam pela curiosidade mórbida, o que causa um tipo de retroalimentação do fenômeno —, não é algo que devesse ser corroborado pela própria instituição, por formatar uma ideia macabra do que deveria ser o braço protetor da sociedade.

O mesmo assunto foi tema de capa do principal diário da capital, o jornal “O Popular”, mas com um viés totalmente ao avesso desse. Nada de loas à PM – pelo contrário, a notícia geraria reações indignadas na corporação. O veículo estampou uma pequena e polêmica chamada sobre o caso: “Chacina mata cinco na favela do Vietnã”, com o curto texto “duas vítimas seriam menores de idade” em seguida. Na matéria interna, fala-se em “suposta troca de tiros”, o que levou um leitor a ironizar, nas redes sociais, dizendo que a notícia foi publicada por um “suposto jornal”.

A chamada de capa do jornal pode, sim, ser considerada infeliz. Usa um termo forte (“chacina”), que traz uma definição que não deveria ser aplicada fora de um contexto específico. Jornalisticamente, não é um termo nada neutro e demarca uma tomada de posição por parte do veículo. Pode-se mesmo dizer que o diário opta por uma conclusão do caso feita “a priori”, já que a investigação nem havia começado na data de publicação (segunda-feira, 4) da nota. Até o momento, não há evidências que possam levar a algo como “chacina”, já que moradores relataram um tiroteio duradouro naquela noite de sábado.

Em casos como esse, a polícia tem o direito de reclamar, com razão, de que na imprensa falta, muitas vezes, uma preocupação maior com o detalhamento da informação. A primeira página de um jornal muitas vezes não tem nada a ver com o trabalho de reportagem — o termo “chacina” não é usado hora alguma no texto interno — e, no fim, isso pode ser jogado também na conta do “adiantado da hora”. O chamado “deadline” (prazo de fechamento da edição), assim como a busca do “furo” são sempre armadilhas perigosas ao bom jornalismo.
De toda forma, há algo que poderia servir como uma possibilidade de reduzir os danos à boa informação – e que partiria da própria polícia: usar de forma mais proativa sua própria comunicação. Geralmente, a assessoria atua de modo passivo, como fornecedora de informações requeridas pela imprensa ou transmissora de dados básicos sobre ocorrências mais graves. Talvez uma medida para evitar títulos que considere inexatos fosse colocar em pauta os meandros das ações, dar transparência ao que se segue imediatamente após o ocorrido, notadamente aquelas que causam maiores discussões, como foi o caso da favela do Vietnã. Ora, se há cinco mortos, bandidos ou não, em uma operação policial, não há dúvidas de que isso precisa mesmo ser bem esclarecido.

O caso Vietnã mostra um sanduíche feito com dois pontos de vista da mídia totalmente divergentes entre si sobre o trabalho da polícia: enquanto um glorifica a morte que tem a PM como emissária, outro tipifica negativamente a ação dos militares. Em verdade, imprensa e polícia nunca foram instituições muito irmanadas. Se fossem países, seriam algo como Rússia e Estados Unidos, gigantes com mais tapas do que beijos entre si, sempre dispostos a investir numa pitada de guerra fria. Exemplos há, vários, e o caso da ação policial no fim de semana passado trouxe de novo à tona essa falta de sintonia entre os dois poderes: o do papel e o da arma.

Uma observação antes do fim: tudo isso ocorreu em meio a uma população fragilizada, moradora de área de risco. Muitas daquelas pessoas (a maioria, certamente) são miseráveis mas honestas, obrigadas a conviver com a falta de dignidade e com a autocensura para garantir a sobrevivência. Ou alguém tão vulnerável, morando em uma zona de tráfico ousaria contar o que viu, seja sobre a ação dos bandidos ou a da polícia? Obviamente, não. Como humanizar o tratamento jornalístico a essas pessoas, de modo que saiam dos limites entre a indigência e a descartabilidade? É um desafio duro, mas necessário, para toda a imprensa.